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quarta-feira, 28 de abril de 2021

Eu parei para pensar se há vida em outros planetas, e dei de cara com o Grande Filtro

Olá!

Começo este texto domingo à noite e estou em Taubaté. Vim trazer a mudança da filha mais nova, que finalmente conseguiu passar em um concurso e vem mudando de mala e cuia com o namorado, para tentar sua vida. Não é um grande salário, nem dela, nem do rapaz, mas a maior das caminhadas começou pelo primeiro passo, na manjadíssima frase atribuída a Confúcio. Quando eu casei, comparativamente ganhava bem menos, e eu me virei, ainda mais tendo os filhos para criar. Ao que me consta, não há netos a caminho, apenas o inefável Homem-Cueca, a quem dei a conhecer neste texto. Então, boa sorte aos dois!

Ela sabe dos meus projetos, e quer que eu já os leve a cabo, para ficar um pouco mais perto. Realmente, já estou bem prestes a procurar um recanto tranquilo, e tenho começado a procurar mais seriamente uma casa para mudar. Há entraves: a indefinição pelo home office permanente no trabalho e os sogros, mas penso que qualquer lugar onde eu possa chegar no máximo em quatro horas a São Paulo já satisfaça essa condição. Da lista de lugares que tenho pesquisado, as mais próximas de Taubaté são Santo Antônio do Pinhal e São Luiz do Paraitinga, e a mais longe é São Thomé das Letras. Puxa, tudo nome de santo.

Movido pela combinação entre a vida nos céus atribuída aos santos e pelo certo ar místico que estas cidades carregam, lembro dos relatos das visões de óvnis que tanto povoam o imaginário de quem procura esses lugarejos, assim como Curvelo, Corinto, Prudentópolis, Varginha, Peruíbe e mesmo Brasília. Embora não seja uma relação obrigatória, há uma certa associação com consumo de substâncias onde se relatam muitos avistamentos, principalmente pelos detratores das duas ideias.

Tudo isso é bobagem, evidentemente. Nunca vi óvnis, com ou sem substâncias. Mas o encantamento gerado por essas cidades revela uma grande curiosidade que se funde a um tanto de gosto pelo perigo. Afinal de contas, não foi só um filme que retratou os extraterrestres como forasteiros que tentam nos colonizar, pobres e inocentes terráqueos.

Existe uma área de pesquisa chamada ufologia. Dependendo de quem a exerce, pode ser plenamente científica, ou pode ser puro engodo, ou ainda aqueles claros casos em que o viés de confirmação está a milhão, aproveitando tudo o que confirma teses e descartando o que contradiz. É comum, né?

O que eu acho disso tudo? Bem…


Nesse momento é preciso se colocar no humilde posto de ser humano e tentar se quantificar como o mínimo átomo que sou. Pensando no universo como uma imensa bolha finita, porém tão gigante que foge à minha possibilidade de compreensão, parece a mim muito tentadora a suposição de que o planetinha não tem nada de especial que não possa ser reproduzido alhures. Não vou conseguir propor exemplos, porque nada do que eu conseguir pensar vai dar algum tipo de dimensão das possibilidades de números tão incomensuráveis. Mas sou teimoso e vamos lá.

Imagine que você é uma mocinha padrão, e haverá uma festa à noite. Mocinhas geralmente não gostam de se confrontar com roupas iguais às de suas confreiras, porque existe aquela história de liquidações e baciadas. Então digamos que você escolha uma cor que não seja tão comum, nem tão démodé. Digamos que você escolhe uma peça solferino, que fica entre o vermelho e o roxo, cujo nome se origina da comuna de Solferino, na Itália, onde se travou uma das mais sangrentas batalhas da Guerra de Independência Italiana. Na sua festinha, pode ser que a estratégia funcione às mil maravilhas, e você brilhe sozinha em sua cor inusitada. Mas supondo agora que você more em uma cidade grande, imagine se seria possível o mesmo sucesso em ser única em todas as festas desta mesma cidade. Já aqui teremos uma exclusividade mais difícil. Alongue sua imaginação e pense em todas as festas de seu estado. Não, não… pense nas festas do seu país inteiro,  de cada pequeno rincão até as mais populosas metrópoles. Será que mais ninguém usará algo semelhante ao seu alegre vestidinho solferino? Estenda o exercício mental ao continente e, finalmente, ao mundo inteiro. A possibilidade de que sua roupa seja um fenômeno único, irrepetível, sem igual vai se tornando muito, muito menor, a ponto de se achar impossível que mais ninguém tenha usado exatamente o mesmo estratagema, ou que seja comum uma peça deste gênero em outras plagas. E olha que eu estou usando uma amostra absolutamente desproporcional, ridícula em termos de comparação com o universo inteiro.

Serve bem para imaginar o quanto é uma visão egoísta supor que a vida seja um atributo único deste combalido planetinha azul, cercado das nuvens cada vez mais maléficas do efeito estufa. Em tanta extensão espacial, não existirá nenhum outro recanto onde haveria condições de se reproduzir as condições para o surgimento da vida?

No entanto, o fato é que não a vemos. Tirante os relatos episódicos e as falsificações grosseiras, não há nada materialmente concreto que possamos confiar sobre visitas à Terra. Por outro lado, nossas escapadinhas espaciais também não resultaram em descobertas. Julio Verne previu, ainda no século XIX, a chegada do homem à Lua, de um modo bastante próximo ao que de fato se deu, mas não achamos selenitas por lá. Os tão decantados marcianos também não, nem jupiterianos, saturninos, etc. Já não se buscam homenzinhos verdes, mas vestígios de micróbios, ainda que fósseis. Miram-se agora os satélites dos planetas exteriores, que parecem conter água e fumarolas, ingredientes que fundamentaram o surgimento da vida cá em planetinha.

Esse é o paradoxo de Fermi, ou o “Grande Silêncio”. Esse cara era um físico italiano importantíssimo na área das reações nucleares e da física de partículas, incluindo no âmbito teórico que levou às bombas atômicas, mas que não estava em um laboratório quando lançou exatamente essa questão, e sim em uma mesa de bar, filosofando com os colegas. Se temos um universo inimaginavelmente gigantesco, deve haver mais vida por aí. Mas cadê? Em que diabos de lugar estão nossos vizinhos cósmicos, que não fazem barulho, não acendem luzes radiantes, não martelam em nossa laje?

Eu faço a mesmíssima pergunta, sob os mesmos fundamentos. E a resposta que eu mesmo me dou tem mais de Filosofia do que de Ciência, pelos mais óbvios motivos: sou professor de Filosofia e a coisa ainda vai mais pelo campo da especulação do que das evidências.

É preciso dividir o problema em duas partes. Se levarmos em consideração qualquer forma de vida, coloco-me na posição da menina que escolhe a roupa da exótica cor. É praticamente inimaginável que não haja algum tipo de molécula que tenha se agrupado com outras e, por meio das reações químicas adequadas, tenha conseguido se multiplicar. Mas elas não dão em árvores, e tudo será muito diferente do que podemos comparar conosco. Já com relação a civilizações com um mínimo de semelhança à terráquea, coloco-me no posto rigorosamente cético. Não o ceticismo "dogmático" de alguns, que batem o martelo sobre a questão da inexistência, mas na dúvida quase infantil de quem aprende. E o que temos de empírico hoje sobre civilizações tecnológicas consiste apenas novamente nele, o planetinha azul cada vez menos verde. Para imaginar o que seria uma sociedade extraterrestre, temos somente nós mesmos como referência.

E o que isso significa? Que o tempo que levamos para chegar onde chegamos deve ser aproximadamente o mesmo tempo que outra civilização levará para chegar ao mesmo ponto. Em algum outro canto do universo, alguma forma de vida inteligente estará olhando para o céu e enviando coisas parecidas com foguetes para seu sistema local, imaginando que à distância sideral haverá povoação semelhante, talvez com os mesmos problemas filosóficos (garotas com vestidos solferino?). Eles estarão cercados da mesma impossibilidade de comunicação que nós temos hoje. Poderão estar mais avançados? Sim, mas isso não dá para adivinhar, e o fato continua sendo um só: não temos nenhuma evidência de vida extraterrena, nem porque nossos instrumentos foram incapazes de detectá-la, nem porque tenhamos recebido qualquer visita comprovada. Enquanto isso, eu vou me pondo na turma dos incréus.

O economista estadunidense Robin Hanson escreveu um interessante artigo que parece lançar um pouco de luz à ausência dos vizinhos espaciais. Há alguns marcos no desenrolar daquilo que chamamos de vida que são decisivos no destino de uma espécie. Um deles, ou mesmo vários, podem constituir autênticas barreiras para a expansão a longas distâncias, e, como as mesmas são sucessivas e dependentes do bom termo de uma para o início da outra, a dificuldade estaria na própria conjunção desses fatores, o que tornaria a vida e sua manifestação fenômenos muito raros.

Hanson enumera várias dessas barreiras, mas como ele mesmo não as coloca em um escopo fechado, tomo a liberdade de selecionar as mais importantes. A primeira é o próprio surgimento de alguma coisa que se pode chamar de vida: um tipo especial de agrupamento de moléculas que consegue reproduzir a si mesmo e trocar energia com o ambiente. É preciso que o astro em questão reúna algumas condições básicas para que os coacervados e aminoácidos possam se catalisar em algum tipo de meio (considerando, claro, condições semelhantes à Terra). O próximo salto é o aparecimento de microestruturas que vão tornar o agrupamento uma célula autêntica. Por exemplo, é preciso que haja algo como uma membrana para reter todos os elementos juntos, algo como organelas para exercer funções orgânicas e algo como um núcleo para reter as informações de reprodução. O próximo filtro é que essas coisas semelhantes a células possam se organizar e se agrupar, de forma a constituir organismos maiores e mais complexos. O que vem em seguida? Que alguma das espécies geradas por esses organismos cada vez mais complexos consiga adquirir consciência e reconhecer a si mesma como existente. Em resumo: vida inteligente. Por fim, no filtro seguinte temos a necessidade que essa vida inteligente seja movida a se organizar com seus semelhantes, de modo a formar uma sociedade, que ainda por cima olhe para o céu e sinta a mesma vontade de explorar o espaço que nós temos.

Pode ser que um ou vários desses fatores seja o Grande Filtro, uma etapa que seja absolutamente insuperável para qualquer forma de vida se dar a conhecer. Esse imenso obstáculo pode ser ainda alguma etapa que nem sabemos qual seria. E aí vem a grande pergunta: onde nós mesmos, seres humanos e planeta Terra, estamos com relação a este filtro? Se nós os ultrapassamos, é possível que outra civilização ainda o faça, e poderemos ainda ter algum tipo de comunicação, ou também pode ser que em outro sistema planetário onde a sonda Pioneer chegar e puder ser capturada, os nossos irmãos de cosmos leiam e interpretem os elementos distintivos lá colocados*, e, quem sabe, tenham referências para nos encontrar ou ao menos mandar sinais. Por outro lado, se nós ainda não enfrentamos o Grande Filtro, temos a notícia segura de que arcaremos com problemas como espécie. A pior delas é meio óbvia: não há estabilidade suficiente em uma vida planetária para que haja tempo de se desenvolver a tecnologia necessária para a comunicação com outras civilizações. Também é possível que haja um limite na evolução biológica, que faz com que o tempo de vida seja eternamente insuficiente para empreender viagens espaciais verdadeiramente longas, já que o silêncio de Fermi abrange certamente os astros mais próximos, e somente das distâncias menos mensuráveis é que viriam os tais sinais. Há também a expectativa de problemas no meio físico. Haverá materiais que resistirão a intempéries imprevisíveis quando vistas daqui da Terra? Haverá tecnologia de armazenamento ou meios de coleta de energia em todos os pontos do caminho para outras terras habitadas?

Sendo assim, temos duas dificuldades: a de assegurar a existência de outras civilizações e a de poder conhecê-las, e é exatamente aí onde encaixo meu ceticismo. Não se trata de duvidar que a vida exista fora daqui, ou, pior ainda, cair na falácia fácil da poça d’água, e achar que somos mais especiais do que realmente somos, e sim de que não temos como saber, mui simplesmente. Por isso, de um ponto de vista mais filosófico do que científico, creio ser altamente provável existir vida, mas não posso me tirar da dúvida que ela seja minimamente semelhante à que temos em nossa casa de paredes descascadas.

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Como se diz por aí, Júlio Verne era um visionário. Em vários dos seus livros, ele acabou por dar predições do que viria pelo futuro, com um bom grau de acerto. Porém, diferentemente dos Nostradamus da vida, seus prognósticos se baseavam na evolução da Ciência que ele via no seu tempo, e não em transes místicos. Além disso, é ótima literatura.

VERNE, Júlio. Da Terra à Lua. Barcelona: RBA, 2018.

O artigo sobre o Grande Filtro, de Robin Hanson, está disponível na internet para que quiser consultar. Segue a citação.

HANSON, Robin. The Great Filter. Are We Almost Past It? Disponível em <https://mason.gmu.edu/~rhanson/greatfilter.html>. Acesso em 27.04.2021.

 

* Pioneer é o nome de um programa de sondas estadunidenses cujo objetivo era investigar o espaço sem a necessidade de levar astronautas a bordo. Uma delas se tornou célebre por carregar uma placa com uma série de dicas para ajudar uma eventual civilização a ter referências sobre nós. Na imagem acima, coloco uma cópia desta placa.

Ela tem as seguintes representações:

  • A transição do hidrogênio
  • Modelos de corpos humanos em tamanho comparativo com a sonda
  • A posição relativa do Sol através de pulsares
  • O Sistema Solar

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Sobre a origem da vida e as difíceis provas negativas (Pequeno guia das grandes falácias - 60º tomo: a probatio diabolica)

Olá!

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Dia desses, já tem um bom tempo atrás, eu estava voltando da casa da comadre e passava em frente à igreja do Carmo, uma daquelas famosas do centro de SP. É raro que haja qualquer evento por lá, já que não é uma paróquia de comunidade, nem mesmo um santuário muito frequentado fora das datas da padroeira. Então me chamou a atenção uma faixa estendida no começo de sua escadaria, como uma pequena mudança na aparência habitual. Nela, estava escrito assim: “Dia X, às tais horas, venha rezar conosco as mil ave-marias, pela conversão dos pecadores”. Mil!!! Nem nos meus tempos de maior beatitude, eu levava a cabo um empreendimento desses.

Tive a pachorra de calcular por aproximação a duração de um rito desses. Levando em conta que as senhorinhas que frequentam esses cultos gostam de rezar bem rezado, contei vinte segundos por prece. Isso dá quase seis horas só de aves-marias, sem pausas. Se levarmos em conta que há ainda cinquenta pais-nossos e cinquenta glórias, além das reflexões dos mistérios do rosário e a contemplação das cinco chagas de Cristo, não tem como fazer em menos de nove ou dez horas.

Eu não vou discutir a crença de ninguém. O mais importante é que a pessoa se sinta bem fazendo o que quiser. Eu só acho um exagero estranho, um sacrifício mais da atenção do que propriamente do exercício da fé, que existirá ou não independentemente da realização do combo oracional. É bem verdade que a repetição ad infinitum de preces tem o mesmo objetivo de atingir um transe que os mantras possuem, onde a atenção já não está naquilo que se diz, mas no que se sente, uma espécie de descolamento da realidade física que rodeia o contribuinte.  É um pouco como o sentimento oceânico freudiano? Sim, mas cada um com suas características. Enquanto um vem da perda de noção de limites do corpo com o ambiente, o outro faz uma espécie de colapso na percepção temporal. No primeiro, perde-se a noção de espaço; no segundo, na percepção do tempo. Pelo menos eu acho.

Ocorre que o volume de rezas me fez lembrar de outra coisa, e para explicar para vocês vou ter que contar um pouco da historia do meu TCC. Eu peguei o período do imediato pós-guerra na Itália e observei como um humorista de lá enxergava as agruras, para analisá-lo sob o prisma da Filosofia Política. Trata-se de Giovanni Guareschi, de quem já falei neste post. Seu personagem principal, e pelos olhos de quem ele se aproveitava para contemplar sua Itália em recomposição física e moral, era Dom Camillo, um padre conservador que vivia às turras com o prefeito comunista, Peppone. Em tudo havia debate (e algumas vezes rolava as vias de fato), desde um simples brinquedo de feira, até os conflitos psicológicos na hora do voto. Os personagens tinham personalidades extremamente dúbias, incluindo o cristianismo disfarçado dos comunistas. Certa ocasião, Peppone vai ao padre para confessar um pecado político, cuja absolvição Dom Camillo não pode negar. Seu recurso é impingir uma penitência duríssima: 3 glórias, duas aves-marias e 3000 padres-nossos, muito mais do que nossas velhinhas carmelitas se propõe a rezar à sua padroeira. 

Eu nunca entendi muito bem essa questão da confissão e da penitência. O que vale mais? Um arrependimento sincero ou um pecado confessado? De que vale um pecado confessado mas sem arrependimento? A absolvição vale mesmo assim? Olha só o paradoxo, a ambiguidade, a bivalência, o contrassenso, o antagonismo, a paralaxe, a contradição, a anfibologia. Se eu deixo de confessar um pecado, carrego a culpa dele mesmo que arrependido; se o confesso, sou perdoado mesmo que não arrependido. Essa falta de compreensão me fez dar muitas fintas no sacramento, mesmo nos tempos de carolice. Um dos truques (que nem era um truque de verdade) consistia em fazer a confissão em paróquia desconhecida, onde o vigário de plantão não pudesse guardar de mim a vergonha do "crime" cometido. Além disso, o que eu confessaria de fato? As sórdidas fornicações da juventude? Mas é aí mesmo que eu não tinha arrependimento algum… Os tapinhas na pantera? Ora, isso nunca prejudicou ninguém, nem mesmo a mim (ao que eu pensava na época).

Outra coisa difícil de entender era a dosimetria da penitência. Em principio, para grandes pecados, eram necessárias grandes reparações. Mas a dosagem do remédio não pode ser maior que a do veneno, sob pena de matar o neobeato, ou, desmetaforizando, desestimular que o pecador procure sair do seu erro. Por isso mesmo, o próprio código de direito canônico, o conjunto de regramentos do clericato católico, instrui os padres a não prescrever penas que sejam demasiado gravosas, ou mesmo impossíveis de cumprir. Por exemplo, não se pode exigir um jejum de quarenta dias, ou que o penitente se chicoteie, ou que passe o resto da vida em oração. Com as devidas proporções, é meio difícil de aceitar o volume de padres-nossos impostos por dom Camillo ao pobre Peppone. Esse excesso faz um desfavor à intenção do sacramento, porque mata ou prejudica desproporcionalmente o confidente, e o que era para ser positivo, acaba tomando o serviço inverso, para gáudio da oposição a Deus. E daí nasce um termo que vai se tornar muito comum no direito e na lógica: a probatio diabolica, ou prova do diabo em latim.


A probatio diabolica é uma condição em que se exige uma prova que alguém não tem condições de produzir. Para ser mais específico, talvez não haja uma impossibilidade patente, mas uma extrema dificuldade em conseguir obter prova completa de um argumento qualquer. E isso vai se misturar com o conceito de ônus da prova, de quem a probatio diabolica tira amplo proveito.

O que diz o princípio do ônus da prova? É simples. Cabe a quem faz uma declaração qualquer o dever de prová-la verdadeira. Se eu disser que vi duendes no jardim, implicitamente tenho o dever moral de reconhecer que a prova deve ser minha, pelos meios idôneos possíveis. Não faz nenhum sentido que meu interlocutor receba o encargo de provar que eu estava bêbado. Não, sou eu quem deve apresentar a foto, a filmagem, a gravação, as pegadas, o pote de ouro, o barrete, ou, de preferência, o orelhudo em pessoa. Esse princípio geral pode ser ferido de duas formas fundamentais: a primeira é com a inversão do ônus da prova, onde é repassado para aquele que nega um argumento que produza a prova de verdade. No exemplo em tela, é como se eu exigisse que o meu debatedor mostrasse por A + B que os duendes não existem, sendo que a afirmação da existência é minha. Uma maneira válida de uma negação carregar a obrigação de provar é quando se quer refutar uma verdade consolidada, como é o caso de dizer que a gravidade não existe. Neste caso, o ônus cabe a quem nega. A segunda ocorre quando não se cumpre o ônus da prova, e justamente o vácuo deixado é interpretado como uma verdade, porque a negação também não é provada. É o que chamamos de apelo à ignorância.

Já a probatio diabolica não é um vício aplicado a um erro no polo devedor da prova, e sim na capacidade daquele que possui o ônus de produzir a prova. Em outras palavras, o ônus da prova continua na mão de quem faz a declaração, mas ela é muito pesada (ou até mesmo impossível) de se conseguir. Um exemplo muito simples é possível de extrair do Direito. Sabe-se que a bigamia é ilegal no Brasil, conforme diz o Código Penal...

Artigo 235 do Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940

Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:

Pena - reclusão, de dois a seis anos.

§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou detenção, de um a três anos.

§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

... e o Código Civil:

Artigo 1521 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002

Art. 1.521 Não podem casar:

(...)

VI - as pessoas casadas.

Pois muito bem. O que é preciso fazer para que se prove não ser casado? Como bem sabemos, o fio do bigode já faz um bom tempo que não vale grande coisa (nunca valeu). Portanto, são necessários papeis, emitidos por cartórios, onde o escrivão escreverá que fulano não possui assentos afirmando a contração de matrimônio. Só que a lei não especifica o local onde o casamento ocorreu, o que impede que um cartório determinado mate a charada. Em tese, seria necessário obter certidões de estado civil em TODOS os cartórios de Terra Brasilis, ou, no limite, do mundo inteiro. É virtualmente impossível conseguir levar esta tarefa a cabo: antes de chegar à metade, o casamento já acabou. Para resolver o problema, a lei estipula uma espécie de “presunção de inocência” através de declarações expressas, conforme relacionado abaixo:

Artigo 1525 da Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002

Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos:

(...)

III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar;

IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos;

V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio.

Dessa forma, no nosso exemplo do casamento, a prova é bem mais frágil, apoiando-se em testemunhos do item III e declarações indiretas, já que o texto de próprio punho do item IV pode facilmente ser escrito com má-fé e os registros do item V não asseguram a inexistência de novo matrimônio após o desfazimento do vínculo anterior. Mas, mesmo que não sejam provas cabais, são as provas possíveis. E assim a sociedade segue vivendo.

Outra maneira com a qual nossos causídicos lidam com a questão é com a distribuição dinâmica do ônus da prova. Vamos fazer uma hipótese rápida: você compra uma bola de capotão para o seu filho e o animado petiz a vê murchar no primeiro chute. Ao reclamar na loja, o caso é encaminhado ao fabricante, que alega uso indevido. O caso é judicializado, e o ônus é teu, pai do moleque com pé de tesoura. Mas tudo o que você tem é uma bola furada nas mãos. Não conhece de física, nem de costura, resistência dos materiais, e, em suma, não tem condições técnicas nem meios financeiros para provar que a culpa não é do pequeno. O juiz, nesse caso, pode inverter o ônus da prova, de modo a determinar que o fabricante é quem deverá provar que o furo se deu por má utilização da bola, porque ele tem técnicos, especificações, laudos e testes laboratoriais que permitem mais facilmente a comprovação do que ele (ou o pé de sovela) alegam. Isso é bastante comum em causas do Código do Consumidor.

O Direito, desta forma, sabe como lidar com a prova do diabo. Acontece que nem sempre ela é utilizada nesse âmbito. Veja só que bela armadilha: todos nós sabemos que a atividade científica se baseia na interpretação de evidências, e que a ausência delas pode, no máximo, fazer com que um argumento fique no campo das hipóteses. A cada passo que um cientista dá, exige-se dele uma evidência ainda mais específica, mais ou menos como acontece na falácia das traves móveis, que discorri sobre neste texto. Para não repetir a mesma cantilena, vou exemplificar com outro tema polêmico: o surgimento da vida.

Segundo os diferentes religiosos, a vida surgiu neste depredado planetinha como a manifestação da vontade de um criador, e pronto. É uma resposta enganosamente simples, porque embora dê uma solução imediata para o problema, cria um monte de outros, que tem respostas ainda mais difíceis e carentes de provas. Para que fins foi criada a vida, se um criador autossuficiente se basta em si mesmo? Onde se pode achar fisicamente esse criador? Quem criou o criador? Toda e qualquer resposta será necessariamente incompleta e demandará novas questões, que serão novamente respondidas com argumentos metafísicos, que, na melhor das hipóteses, carregarão lógica, mas não evidências. E isso não serve para a Ciência.

Qual a alternativa, então? Buscar hipóteses que contenham um mínimo de requisitos correspondentes com nossa percepção empírica. Em outras palavras, retirando o componente mágico e escavando fenômenos que são observáveis. Com isso, começamos percebendo que não existe vida que não se origine de outra vida, como provou Pasteur, a não ser uma: a vida original, aquela que deu origem a todas as outras.

Tá. Como poderíamos supor o que seria essa primeira vida?* Sua composição nem seria tão problemática assim. Compostos orgânicos podem ser obtidos a partir das reações químicas que ocorriam no ambiente de alguns bilhões de anos atrás. Uma temperatura muito mais alta que a atual pairava sobre o oceano, com a incidência de violentas tempestades elétricas. Átomos de carbono, nitrogênio e hidrogênio, reagindo a essas descargas imensas de energia, se uniam a outras substâncias para formar coacervados semelhantes aos atuais aminoácidos que compõe os organismos vivos. Na continuidade dos fenômenos climáticos, e agora com a existência de um caldo de coacervados presente nos oceanos primordiais, as moléculas e suas uniões foram se tornando cada vez mais complexas e sofisticadas. Mas para fazer a maquininha da vida funcionar ainda faltariam dois requisitos mínimos: metabolismo e reprodutibilidade. O primeiro diz respeito à necessária alimentação, e a segunda à continuidade da vida através da produção de descendentes. Essas “faíscas” são muito difíceis de se delinear, mas o que é certo é que nada mais são do que reações químicas.

Aleksandr Oparin e John Burdon Haldane, de maneira independente, trabalharam nessa hipótese.  Podem perceber que ela nem recebe o nome de teoria, porque lhe faltam evidências sólidas, ficando ainda muito no campo da suposição. Isso acontece porque há muita limitação em se reproduzir um ambiente minimamente semelhante àquele que tínhamos na Terra a tantos e tantos bilhões de ano, mas ela é plenamente científica, porque embora haja esses óbices à verificação, há todo um mecanismo bem desenhado para fazê-la, com seus respectivos pontos de falseabilidade. À medida que a tecnologia avançar, melhores evidências poderão ser obtidas e dar mais e mais força à veracidade da hipótese.

Só que a ideia do surgimento autônomo da vida dá cólicas mentais em quem se prende a teses criacionistas, pior até mesmo do que acontece com a Teoria da Evolução. Alguns argumentos são os habituais, e combinam retórica com desconhecimento: complexidade irredutível, lacunas no conhecimento, falta de verossimilhança. Mas há muita probatio diabolica também.

Por exemplo. Com a alegação de que as condições climáticas seriam capazes de produzir aminoácidos, pede-se que isso seja provado. Mesmo com todas as limitações laboratoriais, através da inserção dos elementos químicos livres na água e no ar e da sobrecarga elétrica nessa mistura, consegue-se obter algum aminoácido (é uma experiência que de fato foi realizada). A pergunta seguinte é uma probatio diabolica: reproduzam-se todos os aminoácidos existentes na natureza. Ora, isso não é possível. Existem mais de 300 aminoácidos dentre os essenciais e os secundários, e consegui-los através da tecnologia disponível é impossível. Um desafio desses é falacioso porque não visa melhorar a hipótese criacionista, mas tão-somente obstaculizar a hipótese abiogenética.

Não deixa de ser um mecanismo de dispersão, tão típico dos apelos em geral, especialmente porque o retrucar não costuma oferecer nada a mais, o que é um belo defeito desse tipo de argumento, eminentemente retórico. Em suma, se uma explicação é muito difícil, isso não torna o argumento contrário automaticamente válido, como se quer fazer parecer.

Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

O livro de Oparin já é bem antigo, e aperfeiçoamentos se fizeram necessários, principalmente por conta dos achados confirmatórios de sua hipótese. Mas como a ideia base permanece a mesma, é uma leitura bem recomendada.

OPARIN, Aleksandr. A origem da vida. São Paulo: Global, 1989.

O episódio das três mil rezas está no livro abaixo. Embora esteja um pouco extemporâneo, o mundo de Dom Camilo é bastante divertido. Sou suspeito em dizer.

GUARESCHI, Giovanni. Dom Camilo e seu Rebanho. Lisboa: Bertrand, s.d.

* Não mencionei a hipótese da panspermia cósmica, também científica, porque, no fundo, ela apenas desloca o local geográfico de onde teria surgido a vida. Há evidências da existência de microorganismos fósseis em asteroides e meteoros, além de organismos extremamente resistentes às piores condições de sobrevivência, como os tardígrados. Só que, se não foi na Terra que surgiu a vida, foi em algum outro lugar, e a questão continua. Por isso, sigo o princípio da Navalha de Ockham e entendo que, salvo novas evidências muito fortes, a hipótese mais simples deve ser a adotada inicialmente.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Pequeno guia das grandes falácias – 59º tomo: a pergunta complexa (plurium interrogationum)

Olá!

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Pincelada rápida sobre a história político-eleitoral que vivenciei nesses meus cinquenta e poucos anos de vida. Na década de setenta, vivíamos as épocas de ditatura militar. Há quem diga e defenda que o regime era democrático, porque havia eleições. Bom, em Cuba também têm, nem por isso a mesma patota os coloca no campo democrático. Eleições na década de setenta só existiam para cargos legislativos, e ainda assim com limitadíssima propaganda partidária. Era época do bipartidarismo, com a ARENA governista e o antigo MDB representando o autêntico saco de gatos que era a oposição, abrigando desde gente moderadíssima como Tancredo Neves, até quase-extremistas como Miguel Arraes. A lei Falcão limitava a campanha a fotos dos candidatos com uma rápida narração de fundo durante o horário obrigatório, no más.

A partir da década de 80, ares de democracia começaram a soprar em Ilha de Vera Cruz, e as eleições também passaram a tratar de cargos majoritários (menos presidente da república), começando por eleições para governadores. A lei de campanha foi afrouxada e surgiu um autêntico fenômeno eleitoral: os debates.

Em tese, os debates serviriam para suprir, com vantagens, os insossos textos lidos por um locutor, com pouca diferença entre os diversos candidatos. E mesmo que a propaganda política tenha sido flexibilizada, não dá para achar que um candidato vá morrer de sinceridade em um programa feito para exaltar seus atributos. Podendo expor suas ideias e contrapor as dos adversários, os candidatos poderiam deixar mais claras suas intenções, e tinha-se a impressão de que haveria um grande enriquecimento das propostas e melhoria no conhecimento, o que ajudaria e muito nas escolhas do eleitorado.

Acontece que, muito mais do que a troca de ideias e discussão de propostas, os debates se transformaram em combates retóricos, repletos de acusações recheadas de armadilhas linguísticas. Como programa de televisão, funcionou muito bem, porque garantia belas rixas, trocas de ofensas e, por consequências, grandes audiências. Por isso, tais eventos são concorridos até hoje. Só que aquele velho objetivo de tornar claras posições e discutir políticas foi por água abaixo, mais se baseando em perguntas embaraçosas do que na apresentação de propostas.

Talvez eu idealize demais. Lembro-me de ter assistido um debate no programa Complicações, da Univesp, sobre os problemas gerados pela bolha imobiliária de 2008. Sim, eu tenho dessas coisas que o universo considera maçante. Os debatedores eram dois professores de Economia, cada qual de uma corrente diferente, diametralmente opostas. Um era liberal de carteirinha, o outro era marxista de vestir vermelho. A um primeiro olhar, os ingredientes para a rinha de galos estavam todos postos. Entretanto, para minha agradável surpresa, a discussão ficou no campo estrito das ideias, sem ninguém espumando pela boca, nem fazendo caretas e esgares, apenas discordando e concordando, apontando onde cada argumento fazia lógica ou onde necessitava de correção, na opinião do garboso debatedor. O resultado final foi conhecimento, que me trouxe interesse por um tema que eu considerava árido e arenoso, e eu sempre tive a ingênua expectativa de que um dia desses o confronto político fosse nesses termos.

Óbvio que é um sonho de Poliana, a fictícia menina que procurava um lado positivo em tudo (bom tema para um post futuro). Principalmente porque não se trata de não se saber fazer o debate por falta de conhecimento, mas pela intenção deliberada de se ganhar eleitores pela desqualificação dos adversários. E isso é conseguido por discursos gritados para emular firmeza, de promessas infactíveis e, principalmente, de falácias, muitas e muitas falácias.

É possível cometer falácias das mais diversas maneiras e com os mais sofisticados argumentos, pelos mais variados motivos. A classe política é muito dada a apelos, para trazer o emocional das pessoas à baila, ou fazer amplo uso de generalizações e espantalhos, ao sabor da vantagem pretendida, além de envenenar o poço da concorrência toda, mas existe uma delas que é muito específica dos debates, conhecida como plurium interrogationum, ou, mais simplesmente, pergunta complexa.


A pergunta complexa consiste no encadeamento disfarçado de perguntas sequenciadas em uma única interrogação, de modo a não permitir que o interlocutor responda objetivamente com termos simples, sob pena de fazê-lo de modo incompleto.

A pergunta complexa é sempre feita com malícia, porque embute em si um pressuposto. Por exemplo: na pergunta “você ainda se droga todas as noites?” há três perguntas misturadas, amarradas pelo pressuposto de que o cidadão para quem se dirige a pergunta se droga, o que é um ponto muito delicado e discutido em nossas sociedades ocidentais, e que já carrega consigo uma espécie de pré-julgamento. As perguntas são:

a)      Você se droga?

b)      (Se sim) Você se droga há tempos?

c)       (Se sim) Você se droga todas as noites?

Vejam que a resposta à pergunta complexa nunca pode ser reduzida a um simples “sim” ou “não”. Respondendo afirmativamente, concordamos de plano com uma asserção dúbia, que somente pode ser justificada através da descrição dos pressupostos. Respondendo negativamente, uma série de questões fica em aberto. A qualquer uma das três em que se deva atribuir uma negação, fará com que toda a resposta seja dada negativamente, o que acaba fazendo com que nada seja respondido. Pode ser que o cidadão nunca tenha dado um tapa na pantera, pode ser que já o tenha feito uma ou poucas vezes, pode ser que se drogue todos os dias, mas nunca à noite. Qualquer resposta negativa geral fará com que se falte com a verdade, e há, portanto, a exigência de uma resposta complexa para a pergunta complexa.

Um mero advérbio de tempo dá todo um colorido maldoso na pergunta. Uma palavra que modifica um verbo de modo a lhe aplicar uma circunstância, o que pode mudar todo o seu sentido: essa é a delicadeza desse tênue recurso sofismático.

É possível ainda que a pergunta complexa seja ainda mais sutil. Se a pergunta for "quanto lucro suas empresas auferiram com a construção da ponte tal?" não teremos o encadeamento de perguntas, mas de pressuposições. Primeiro, porque ela deixa subentender que uma determinada obra foi realizada para atender um interesse específico do adversário, e segundo que tal obra trouxe não só a satisfação de tal interesse, mas também ganhos. Sendo verdade ou não, a resposta nunca é simples.

O prejuízo causado pela plurium interrogationum em um debate é que eles são organizados para impedir a bagunça generalizada que ocorria nos primeiros eventos, quando um candidato atropelava a fala dos outros e não cumpriam regras básicas de tempo e momento. Com um tempo limitado, perguntas complexas dificultavam a concisão da resposta e deixavam sempre brechas que poderiam ser exploradas à exaustão. Todos os debates passaram a ser pautados na resposta esperada, e não no conteúdo.

Essa lição não foi aprendida simplesmente pela necessidade de se engodar os ouvidos tupiniquins. Vem de longe, muito mais longe, quando a implantação da democracia direta grega, datada de cerca de 500 aC, exigiu dos pensadores um esforço maior para analisar o homem em si mesmo em detrimento à physis que o cercava, dando uma guinada da Cosmologia para a Ética. Os primeiros sofistas, de quem já falei neste texto, tinham pensamentos profundos sobre a existência humana, e inauguraram a visão antropocêntrica que perdurou por toda a época clássica, adicionada dos mais diferentes helenistas. Mas, como sói acontecer com novidades, junto deles vieram as críticas de quem não se conformava com o conhecimento colocado como instrumento de venda, e não um patrimônio livre, acessível por todos os homens. Não era gente fraca: a tríade Sócrates-Platão-Aristóteles viam os sofistas como se tivessem fumaça nos olhos.

E por que os sofistas prosperaram? Como eu disse, a decadência da aristocracia grega levou à implantação da democracia direta. É óbvio que esse regime não tinha nada a ver com as eleições e a igualdade de direitos e cidadania que sonhamos em ter hoje. Os cidadãos eram os únicos eleitores, e eram compostos por senhores de terras, atenienses natos, homens, desobrigados de dívidas e outras coisas mais, e somente a esses competia a escalada do poder. Por ser uma democracia direta, não havia grupos representativos, mas o próprio gogó do interessado, que precisava ser convincente perante os pares para convencê-los de suas propostas.

Os sofistas entraram nesse “negócio” ensinando artes argumentativas aos cidadãos, de modo a ampliar o cabedal lógico de suas ideias e as maneiras como elas poderiam ser aplicadas coerentemente no discurso, o que não era um mal em si. É como se você contratasse um professor que modulasse melhor sua oratória, através da construção das palavras: dizer bem o que se quer dizer é uma ferramenta para ser compreendido e dar convencimento.

Só que, como sempre acontece, a coisa degringolou. Penso nos atuais coachs quânticos e transcendentais. Talvez a profissão de coach não fosse tão digna de desconfiança quando os primeiros consultores perceberam que seu negócio precisava de incremento e se colocaram à disposição da clientela para dar conselhos de organização e planejamento, usando um nome gringo para dar mais cartaz ao empreendimento. Mas, à medida que o negócio se popularizou, a necessidade de apresentar diferenciais degenerou a boa intenção. E aí nasce uma combinação de autopromoção com pseudociência que desembocou nisso que vemos hodiernamente. Com os sofistas aconteceu a mesma coisa, e a ênfase na necessidade de vencer debates independentemente da lógica das ideias criou os erísticos, instrutores na utilização da controvérsia através de jogos de palavras. Esse nome vem da deusa Éris, regente do caos e da discórdia, porque os erísticos eram mestres na arte de fazer um xadrez mental: com raciocínios capciosos, lançavam iscas para os interlocutores com o objetivo de encurralá-los em contradições – não como a maiêutica socrática, que procurava arrancar estados de desconhecimento latentes nos próprios conceitos que os seus debatedores tinham, mas de causar uma impressão de vitória na luta verbal, o que, em um povo nem tão diferente do nosso, passava uma falsa sensação de força.

Essa prática erística ainda se mantém nos dias de hoje. E já declinou desde logo a qualidade esperada dos debates, porque as regras precisaram se tornar tão rigorosas que ficaram meio chatos e pouco espontâneos. Mas eu ando tão de porre com o cenário político atual que eu nem vou me deter muito mais neste tema. Bons ventos a todos!

Recomendação de vídeos:

Os dois vídeos abaixo, um continuação do outro, são a reprodução dos primeiros debates para a disputa do cargo de governador de São Paulo em 1982, ano em que os brasileiros puderam voltar a votar no cargo. Eu acho que, independentemente do que se concorde ou discorde em termos de ideias (estamos falando sobre eventos políticos que ocorreram há quase quarenta anos), e também independentemente da profusa utilização de sofismas, em termos de artes erísticas os oitentistas estavam mais bem servidos do que os eleitores atuais. Maluf, Brizola, Tancredo, Jânio, Montoro, Quércia e outros davam um espetáculo muito mais televisivo do que Alckmin, Dilma, Dória, Amoedo e outros menos votados.

https://www.youtube.com/playlist?list=PL364E3DA7AEE3400C

https://www.youtube.com/watch?v=aJXF2U_4MEo

Já a playlist abaixo é o do programa Complicações, da Univesp TV. Acesse se você está interessado em aprender os conteúdos, e não apenas em assistir um UFC verbal.

https://www.youtube.com/watch?v=grmYNYgEGO4

terça-feira, 6 de abril de 2021

Evolução: o que ela é e o que ela não é

Olá!

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Existe uma série de conceitos científicos que gera confusão na cabeça das pessoas. O motivo é bem simples: não é tudo que pode ser reduzido a explicações de poucas palavras, e muita coisa, inclusive, precisa ser demonstrada por contas ou longos encadeamentos lógicos. Então tem gente que se declara incompetente e prefere apenas ouvir e aceitar. Ou não.

É que têm algumas conclusões científicas que acabam por mexer com as convicções mais caras às pessoas, muitas vezes sem necessidade, e por conta disso a Ciência toma ares de vilania, ou até mesmo de uma certa arrogância. Mas o fato é que cientistas trabalham com evidências, que se contrapõem a explicações construídas na base da especulação ou da crença.

Uma das teorias mais difíceis de passar pela garganta dessas pessoas é aquela que recebe o nome de Evolução, que já tive a oportunidade de tratar por aqui. O confronto é aberto principalmente porque seres modificados indicariam uma suposta imperfeição do deus-criador, seja qual for a fé, o que é inadmissível para os crentes. Acontece que o conceito de perfeição pode adquirir uma plasticidade infinita, de acordo com as necessidades de adaptação da narrativa. E a briga acaba se tornando um certame de razão versus emoção. Isso porque a Ciência toma o lado da racionalidade e a Religião, do sentimento. Isso é problemático, cada um por seu motivo. Por um lado, a racionalidade é chata, difícil de lidar e desconfortável de engolir. Trabalhos como Cosmos, de Carl Sagan (reeditado com maestria por Neil deGrasse Tyson) procuram preencher a lacuna com a ênfase na beleza do universo e a maravilha das dimensões e das transformações, trazendo uma pitada de emocionalismo ao tema, o que serve como uma espécie de cola. Por outro lado, as religiões (e não só elas) tentam dar coerência interna à narrativa de criação e algum vínculo científico à hipótese da criação, mais na base do apelo à ignorância, com meu pedido de perdão aos aderentes à causa, porque eu não quero discussões.

O fato é que dificilmente conseguiremos extrair conhecimento de posições antagônicas. Basta que se veja que é raro saber quais dos filhos começou a briga, e acabamos por aplicar corretivos nos dois. Vou então passar a responder algumas perguntas comuns sobre a Teoria da Evolução, evidentemente pelo viés que acredito, mas sem esquecer da minha experiência religiosa, e sempre lembrando que minha área é a Filosofia, e não a Ciência. Portanto, vou me apegar muito pouco às evidências puramente científicas, como fósseis, anatomia comparada, convergências evolutivas, bioquímica molecular, homologias e analogias, biogeografia, órgãos vestigiais, embriologia, genética e outras, embora eu vá esbarrar vez por outra nos indicativos biológicos. Minha área é outra, e eu vou tentar falar sobre a evolução filosoficamente. O começo é o de sempre: dizer o que a evolução é, para depois dissertar sobre o que ela não é. Vamos nessa.

A evolução nos faz pensar imediatamente em Darwin, mas a ideia não nasce com ele, nem é só dele. Evolução, na verdade, nem é um termo tão correto, porque dá uma ideia de direção para melhorias, o que nem sempre é verdade*. Uma descrição melhor seria descendência com modificações, que já havia sido pensada por Lamarck (leia aqui). De uma geração para outra, minúsculas modificações fariam com que a espécie fosse se tornando cada vez mais bem adaptada ao ambiente onde vive, até o ponto em que o acúmulo dessas modificações originasse espécies novas, distintas umas das outras.

O que é seleção natural?

Seleção natural é o "motorzinho" do processo de evolução das espécies. Vamos fazer uma comparação: já perceberam que sempre aparecem novas raças de cães, de vacas, de frangos? Isso acontece porque os homens selecionam aqueles que atendem melhor ao critério desejado: porte, quantidade de leite, tamanho das coxas. Cruzando indivíduos privilegiados em cada um desses aspectos, a tendência é que seus filhotes mantenham e transmitam os caracteres vantajosos. Na seleção natural, acontece a mesma coisa, sem, no entanto, que ocorra intervenção consciente durante o processo. Neste caso, o seletor é o próprio ambiente, e não um ser humano com intenção, e é dado por fatores físicos, climáticos, geográficos, populacionais e outros.

O que é pressão evolutiva?

É qualquer fator que faça com que indivíduos sejam selecionados. Forçando um pouco a barra, seria uma espécie de vestibular da própria vida. Imagine você criança com sua tropa de amigos. Evidentemente, havia um maior e outro menor. Se vocês precisassem fugir da renca da rua de cima, o mais alto teria mais facilidade para pular um muro, e o menorzinho talvez conseguisse passar por baixo de um portão. Nesse exemplo banal, os dois estariam melhor adaptados para resistir a um fator de perigo, os paus e pedras dos malvados rivais, que sobrariam para os mais frágeis nessa relação: os mais lentos, os mais pesados, os menos atentos. Essa ameaça à preservação da vida é o que se chama de pressão seletiva. Podem ser inúmeras: alterações na temperatura, no regime hídrico, as variações alimentares, o crescimento de outras espécies, e assim por diante. A suposição do meteoro que caiu na península de Yucatán, no México, é uma bela amostra de desencadeador de pressões seletivas. Inicialmente, a queda teria feito surgir uma grande nuvem de poeira que, a princípio, produziu aquecimento pelo efeito estufa, já matando um monte de bicho. Posteriormente, a temperatura global decaiu porque a luz solar estava retida. Isso levou uma montanha de espécies à extinção, incluindo as diferentes formas de dinossauros de grande porte.

A evolução acontece como um acaso?

Esse é provavelmente o maior engano que ocorre com relação à evolução. Se a teoria dissesse que as modificações são meros acasos, eu mesmo não colocaria confiança nela. Em algum lugar, li que a evolução seria como se arremessássemos um monte de tintas em uma tela e surgisse a Mona Lisa à nossa frente. Não, não é assim que funciona.

Vamos colocar algum daqueles dilemas éticos de araque para ver se consigo me fazer entender. Imagine que você tem dez cachorros na sua casa, de todos os tamanhos possíveis, e que você os sustenta a contento. Só que você fica desempregado e precisa bolar um jeito de lhes proporcionar comida. Caso divida o alimento proporcionalmente ao peso de cada um dos bichos, este será insuficiente para todo mundo. Você terá duas possibilidades para manter alguns vivos então: dividir o alimento disponível em parcelas iguais ou colocar a comida que há e deixar o pau quebrar.

Se você usar a primeira opção, os cachorros maiores sucumbirão, porque eles precisam de mais alimentos do que os pequenos. Quando uns três ou quatro deles morrerem, teremos alimentos suficientes para todos os restantes. Estando seu quadro financeiro estabilizado, a prole que se reproduzir carregará a genética dos cães menores, e o seu bioma canino será menor em peso e estatura que o anterior.

Por outro lado, a segunda alternativa favorecerá os cachorros maiores, que impedirão os menores de se alimentar. Teremos seis ou sete baixas, também até o habitat favorecer a manutenção dos três ou quatro grandalhões. Novamente recomposto o bolso, a liberação da festinha fará com que a prole seja potencialmente mais alta do que a média anterior.

Percebam que o único fator de acaso presente nessa pantomima toda é o seu desemprego, que gera uma pressão seletiva pela distribuição do alimento disponível. Nada mais, daqui por diante, se dá por fruto do destino, mas da seleção dos mais aptos: os menores quando há pouco alimento, os maiores quando há necessidade de força física.

E até mesmo aqui é preciso se perguntar o que é o acaso. Os japoneses vivem se preparando para os terremotos que são frequentes em sua terra. Fazem isso porque empiricamente notam que, de tempos em tempos, há chacoalhões mais fortes em seu subsolo. Portanto, um terremoto no Japão não é um acaso, e se tornaria ainda menos ocasional se houvesse tecnologia suficiente para prever quando os sismos ocorrerão. Ou seja, terremotos no Japão não são frutos do acaso, e, no mais tardar, contingencial é somente a data em que eles ocorrem.

Se as mutações são prejudiciais, por que são importantes na evolução?

Mutações não são aquilo que lemos nos gibis da Marvel. Deixemos isso para nossa suspensão da descrença. De fato, as mutações podem fazer com que haja incompatibilidade entre um organismo modificado e a vida. A grande maioria dos casos já faz com que o indivíduo pereça ainda em estágios embrionários. Por essa razão, apenas modificações pequenas e graduais, que estabeleçam vantagens igualmente pequenas e graduais podem ser acumuladas pelo processo de seleção. Uma semente que resista a uma semana a mais de seca que as sementes padrão, porque uma mutação a nível celular lhe permite maior tempo sem umidade, é um exemplo banal de mutação benéfica.

Os macacos ainda chegarão a ser humanos?

Desde os tempos do velho Aristóteles, acreditava-se que tudo tinha uma teleologia, ou seja, uma finalidade. Por conta disso, sendo o homem o ápice da criação, poderíamos entender que a humanidade é o objetivo para onde todas as demais espécies apontam. Isso nos daria a falsa ideia de que um belo dia tudo seria humanidade, não é mesmo? Já agora a ideia parece um pouco mais absurda.

Mas os seres tem um propósito que poderíamos chamar de teleológico: sobrevivência. E, sim, a preservação das espécies, por tabela, também é uma finalidade. As estratégias de sobrevivência (inconscientes) não podem ser vistas apenas como uma prerrogativa dos indivíduos, mas de todo o conjunto daquela espécie. A busca pela sobrevivência inclui mudanças de alimentação, migração geográfica e tantas outras tentativas, e novamente os mais bem adaptados terão melhores oportunidades de se manter vivos.

Ocorre que o surgimento de uma nova espécie não representa o fim obrigatório da espécie da qual a mesma é oriunda. Estudos demonstram que as sanguessugas se originaram das minhocas, e ambas ainda vivem muito bem, obrigado. Isso significa que não é necessário o desaparecimento de uma espécie para o surgimento de outra.

Entretanto, estamos falando em milhares e milhões de anos. As espécies atuais de primatas possuem um ascendente comum que nunca foi localizado, mas que se encontra extinto. As espécies existentes de macacos darão origem a novas espécies, que não serão “evoluções” rumo ao homem, ele também um macaco (leia mais aqui para desfazer confusões). O ser humano não é o aperfeiçoamento máximo de todas as espécies. Pensem apenas no que seria um cataclisma climático – provavelmente só restarão insetos no planetinha, se muito.

A evolução exclui um deus?

Não. Percebam que as doutrinas já colocavam um deus como criador sem necessidade de provas, então continua sem necessidade de provas que Deus seja o responsável pelos movimentos da evolução. É perfeitamente aceitável a especulação de que haja uma divindade por trás do surgimento de novas espécies, e que a seleção natural seja apenas um artifício pelo qual esse deus gera as transformações das espécies. Só não há como provar isso.

Então porque há tantas vertentes religiosas que se contrapõe à evolução?

Porque elas são fixistas, ou seja, preconizam que as espécies tenham sido criadas exatamente como se apresentam contemporaneamente. Não admitem que a criação não tenha sido absolutamente perfeita e, principalmente, que os textos sagrados não tenham sido seguidos ipsis litteris.

Não há que se falar em perfeição. Aquele lago lindo alimentado por uma cachoeira deslumbrante é uma paisagem perfeita no atacado, mas um ecossistema que inclui predação e violência no varejo. E mais ainda: as coisas não funcionam tão redondinhas, como na projeção de um engenheiro. O máximo que podemos pensar é em sofisticação. Abaixe seu dedo mindinho e veja o que acontece com o anular. Ele nem encolhe junto, nem se mantém ereto, ficando a meio caminho, o que mais atrapalha do que ajuda. Não dá pra dizer que isso é perfeito. Mas a mão humana continua sendo sofisticadamente funcional, mesmo com a limitação mencionada.

E quanto às estruturas complexas existentes nos corpos?

Embora os corpos não sejam perfeições absolutas, há certos níveis de sofisticação tão altos que parece absolutamente impossível que tenham surgido sem nenhum impulso inteligente. De fato, quando eu penso em mecanismos como o sistema imunológico, fico meio bolado. Como isso pode ter sido formado sem nenhum dedinho mágico, nenhuma intervenção divina?

Neste momento, eu lembro que sou humano, e, como tal, tenho imperfeições que contrapõem a questão da complexidade. Uma dessas imperfeições é um problema cognitivo, conhecido como descontinuidade mental. Pode parecer incrível que um organismo tenha a capacidade de se defender de micro-organismos, mas minha pobre cabecinha de parcos 86 bilhões de neurônios não consegue visualizar um tempo tão longo, nem mudanças tão lentas. Por esse motivo, sempre terei a impressão de que uma estrutura complexa não teria condições de ser construída sem uma intervenção. Aliás, isso é meia-verdade, porque existe intervenção externa: a do meio-ambiente.

A evolução explica o surgimento da vida?

Não. A evolução é muito mais simples do que isso. Ela apenas explica o que está por trás do surgimento de novas espécies. O surgimento da vida tem hipóteses muito menos corroboradas que a evolução, que ainda vagam mais pelo campo especulativo do que pelo experimental. A própria evolução pode ser observada agora mesmo, quando muitas variantes do coronavírus pululam pelo mundo, adaptando-se a circunstâncias locais e melhorando suas capacidades de nos encher o saco.

Isso não significa que não existam hipóteses para o surgimento da vida e que não possa existir uma divindade por trás da coisa toda. A única coisa é que, mais uma vez, a presença de um deus não poderá ser provada pela Ciência, que interromperá seu estudo quando chegar aos limites de seu método. Tudo o que vier depois disso, será Filosofia ou crença.

Por que dizem que a segunda lei da termodinâmica impossibilita a evolução?

Esse questionamento me obrigou a dar uma estudada em Física. Segundo diz este princípio, um sistema fechado caminha para a entropia, não o contrário. Entropia, no caso, é um termo técnico que significa multiplicidade de estados, o que é, muito mal comparando, uma espécie de “bagunça”. É com base nesse princípio que um cigarro fumado vira cinza, e não tem como voltar a ser cigarro**.  Para que um sistema não se desorganize, é necessário um dispêndio de energia, provindo de uma fonte externa. Como a evolução, em tese, constituiria estruturas mais complexas que as originais (os primeiros organismos seriam unicelulares), a lei da entropia a tornaria impossível.

Juro para vocês que eu entendi muito melhor o motivo pelo qual a entropia não atrapalha em nada a evolução do que o contrário. O que os defensores dessa ideia esquecem facilmente é que o Sol está aí a brilhar, animando nossos verões e propiciando energia a beça ao instituto chamado vida. Além disso, os organismos se alimentam, pois não? E, principalmente, a vida NÃO É um sistema fechado, justamente porque tem fontes externas de energia e se retroalimenta.

Na verdade, o uso deste argumento se fundamenta, mais que no desconhecimento, na vontade de tornar mais científica e complexa uma contraproposta à ideia da Teoria da Evolução.

Que história é essa de que a evolução segue um algoritmo?

Um algoritmo é uma sequência lógica de passos. É um termo que ficou famoso no mundo da informática, porque qualquer programa de computador nada mais é do que isso. Essa mesma lógica pode ser aplicada à evolução porque também ela funciona sempre da mesma maneira. Defrontada com um problema (a pressão seletiva), a evolução sempre tenderá em priorizar o organismo melhor adaptado. Se o sobrevivente não é o mais capacitado, pode ver direitinho que houve outro fator preponderando sobre a regra esperada, e o erro está nela, e não no algoritmo.

Por outro lado, os algoritmos computacionais têm sido construídos de modo a imitar a evolução biológica, justamente porque esta consegue resolver seus problemas sem a necessidade de sistemas externos. Uma das aplicações mais visíveis nos dias de hoje são os mecanismos de aprendizado de máquina, quando o algoritmo decifra qual dado melhor se adapta às respostas necessárias para a solução de um problema. É um tema ao qual voltarei, certamente.

Mas a evolução não é só uma teoria? Não há hipóteses concorrentes? As ideias criacionistas não são igualmente válidas?

Três nãos. Para o primeiro, recomendo a leitura deste texto, que já está completinho e me dispensa de reescrever. No segundo e no terceiro, falo de dentro do âmbito científico. A Evolução é uma teoria consolidada na academia e o máximo que existe são caminhos que já a consideram como um fato. E, por fim, criacionismos não seguem critérios científicos, punto e finito. Isso não é demérito algum, só há um erro de atribuição, como pode ser lido aqui. A não ser que a validade em tela seja filosófica. Aí, são outros quinhentos.

Por aqui já está bom. Percebam que não usei o termo “deus” com letra maiúscula porque não estou me dirigindo diretamente ao Deus cristão, mas a qualquer divindade, embora tenhamos uma tendência natural em pensar nessa religião ao nos confrontar com o problema da evolução. E também, como já disse, não quero arrumar briga com ninguém, apenas dar minha dose de esclarecimento a um tema que gera bastante controvérsia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Ora (direis), se você fica cheio de dedos em dizer que não é biólogo e tal e coisa, por que não aponta simplesmente uma bibliografia e vai descansar? Pelo motivo que mencionei no começo: não há só Ciência por trás da Teoria da Evolução, mas Filosofia também. Para tudo o mais, recomendo o livro abaixo, facílimo de ler.

PEDROSA, Paulo (Pirulla); LOPES, Reinaldo J. Darwin sem Frescura. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2019.

* O parto dos seres humanos é um belo exemplo de como uma aparente desvantagem representou uma salvaguarda para a espécie. Ao contrário de outros mamíferos placentários, que já nascem mais desenvolvidos, o ser humano vem ao mundo prematuro, com grande grau de dependência com relação aos pais, o que, aparentemente, representaria uma desvantagem seletiva. Entretanto, esse foi o rumo que a evolução tomou para que a estrutura corporal das mulheres permitisse um parto, justamente porque esse tamanho menor torna possível a passagem do nascituro sem causar grandes prejuízos.

** É um exemplo meramente ilustrativo, bem distante da realidade física. Mas se eu for me aprofundar, não tenho conhecimento suficiente e vou alongar demais o texto, inutilmente.