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segunda-feira, 11 de março de 2024

Para lá da serra que eu vejo na janela – 6º episódio: Vale do Bom Jardim e o momento em que teremos uma quarta ferida narcísica

(Balançar na rede me afasta do meu mundo, e me leva a pensar qual será o próximo passo para que nos reconheçamos mais e mais inferiorizados)

É que Narciso acha feio o que não é espelho

Caetano

 

Olá!

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Eu me casei em um mês de janeiro e, por conta disso, sempre procuro fazer um agradinho para a patroa quando é chegado esse mês. Até não muito tempo atrás, dados os limites financeiros, costumávamos comer na pizzaria, ao invés de fazê-lo em casa. Hoje em dia, já dá para pensar em alguma coisa mais arrojada, e temos feito curtíssimas viagens, de três ou quatro dias, onde comemos, bebemos e celebramos a vida.

Não foi diferente neste ano. Como é viagem de tiro curto, não dá para errar, e o negócio é fazer uma reserva. Só que eu errei. Sendo janeiro, pensei em pular para o polo oposto e procurar um destino de inverno, e raciocinei: será que desta vez dá para fazer as trilhas de Monte Verde sem chuva? Eu já havia viajado para lá, e peguei um interessante contraste de chuva e sol, e gostaria de revê-la, desta vez a seco. Só que os aplicativos de hotéis não se limitam a pesquisar a localidade desejada, mas uma área ao seu redor com um raio generoso. Estupidamente, olhei uma oferta atraente, vi fotos do lugar e fechei questão. Só que fui parar 20 km de terra longe dali, ainda em Camanducaia, mas em um distrito chamado Vale do Bom Jardim.

“Você deve ter ficado puto”, pensará você. Pior que não. É um lugar muito bonito, tranquilíssimo, que ainda não está na crista da onda do turismo, afastado de excessos de rodas por causa da chegada exclusiva por estradas de terra, mas é inevitável que logo chegue lá, dada a quantidade de construções de casinhas e chalés pela redondeza. Dá para perceber claramente a estrutura geográfica que dá nome ao lugarejo ao observar a paisagem pela estradinha.

Sendo assim, não fiquei aborrecido, muito pelo contrário. O Vale é um lugarejo simples, cheio de morros e fundos, com um clima bem ameno e repleto de caminhos de chão.

Se temos um vale, é sinal de que temos um rio, e este é o Rio Jaguary, cuja nascente não está muito longe dali e que vem formando saltos e cachoeirinhas por todo o seu trajeto. Bem de frente ao chalé que aluguei havia uma, de água muito limpa.

Havia uma mesa esperta bem na beira do rio, e fui matar uma saudade que eu tinha desde o tempo em que as crianças eram pequenas: fazer um piquenique de café da manhã. Parece coisa de namoradinhos, mas ninguém disse que esses pequenos romantismos não dão colorido à vida.

Quando vamos a lugares assim, dizemos que presenciamos paisagens bucólicas. Esse é um termo muito típico do Arcadismo, a corrente literária que pregava um retorno à natureza. Temos muito disso aqui, como as aves pouco conhecidas nos centros urbanos (aqui, temos um coró-coró)...

… as castanheiras que emprestam o nome à colina e ao sítio que as contém…

… daquelas portuguesas, que comemos cozidas ou assadas, e que perfuram os dedos dos incautos…

… as plantações de marmelo típicas do Sul de Minas…

… a igrejinha à qual o povo acorre nos fins de semana e nas festas de guarda, com o sino que retine chamando os fiéis…


… e o sol que se põe atrás da serra, coisa tão rara de se ver em megalópoles como São Paulo.

Um pouco de tecnologia, entretanto, não vai nada mal.

Como estamos na Mantiqueira mineira, não dá para deixar de pensar em comida, naturalmente. A Casa Velha, sem qualquer patrocínio (estamos aceitando) é um daqueles lugares em que comemos gemendo, tamanho o sabor dos pratos ali servidos.

Mas à noite, o negócio é uma italianíssima parceria de pizza e vinho.

E, no fim da tarde, uma atitude simples e reconfortante… balançar na rede e olhar o tempo passando, o céu escurecendo e a noite chegando, enquanto as mariposas começam aos poucos a chegar.

É no balanço da rede que eu me percebo, pelo menos por alguns instantes, fora da grande rede em que se transformaram nossas vidas. E é assim que eu me percebo absorvido por elas: exatamente na sua ausência. Batemos recordes de moléstias mentais, não somente porque hoje elas são reconhecidas como tais, mas também porque vivemos em um mundo onde, como nunca, recebemos informações em quantidade que não conseguimos processar. Eu, que sou low profile em matéria de informática (até mesmo porque trabalho com essa desgraça), estaria recebendo notificações aos borbotões de sites que nunca ouvi falar, mensagens e status de WhatsApp, novos vídeos do YouTube e tantos outros acessórios da vida contemporânea, e certamente estaria tentado a vê-los todos, deixando para lá um contato mais íntimo com o mundo que me cerca.

Tentar achar os porquês das atitudes da vida contemporânea é um desafio que tem incomodado o pessoal das humanas atuais. Não foge muito, no meu entender, do nosso próprio narcisismo, e gostaria de fazer uma tentativa de discorrer sobre isso. Como em filosofia as coisas nunca são tão simples, vou ter que fazer um regresso à mitologia grega, e explicar um pouco como se desenhou o mito de Narciso, o personagem que deu substrato ao modo de vida que vivemos até hoje.

Tudo começa com a ninfa Eco, cuja história vai se entrecruzar com a do jovem mancebo. Uma ninfa era uma espécie de divindade que protegia algum aspecto da natureza, como já falei neste texto. No caso específico de Eco, ela era uma oréade, que estavam ligadas às montanhas e às grutas. Eco era regida por uma autoadmiração, voltada especialmente para sua melodiosa voz, e isso fazia com que ela falasse, falasse, falasse e falasse.

Certa feita, Zeus, um dos maiores especialistas em puladas de cerca que se tem história, estava andando pelo meio das oréades para conseguir um belo desfrute, mas não obtinha favores de Eco, que preferia ficar ouvindo sua própria voz. Entretanto, a ciumenta deusa Hera, desconfiada das longas ausências do marido, resolveu dar uma investigada pelos lados das montanhas. Para não permitir que Hera visse seu marido em pleno ato com suas colegas ninfas, Eco aproveitou de sua verborragia, puxando papos cada vez mais longos com a ciumenta deusa, a fim de permitir que Zeus escapasse. Mais tarde, quando se tocou da falcatrua, Hera condenou Eco a apenas repetir as últimas palavras de seus interlocutores, de modo a não mais praticar sua arte oral. Deprimida, Eco passou a viver isolada pelos bosques, onde ficou até seu encontro com o jovem Narciso.

Este jovem era filho do deus Cephisus com a ninfa Liríope. Sua principal característica era uma incrível beleza, além de uma autossuficiência sem igual. Como a visão da antiga Grécia sobre a sexualidade era muito diferente da que temos hoje em dia, Narciso era visto e desejado por todos, homens e mulheres, e também pelas ninfas, notadamente a já citada Eco. Entretanto, sua vaidade não lhe permitia se ver seduzido por ninguém, nem mesmo pela belíssima tagarela. O encontro dos dois se deu durante uma caçada na região onde a ninfa havia se refugiado. Vendo-o ao longe, a pequena entabulou um diálogo limitado pela sua maldição e, quando finalmente se aproximou, o amor-próprio de Narciso fez com que a pobre moça fosse repelida com duras palavras e soberba infinita. Envergonhada, a menina terminou por se ocultar no fundo das cavernas, e lá definhou até se transformar em pedra, restando viva unicamente sua voz, na forma das repetições tão comuns que encontramos dentro desses lugares.

A arrogância do jovem não passou despercebida da deusa Nêmesis, que, testemunhando a dor de Eco, estabeleceu uma vingança: Narciso pagaria seu ato através de um amor impossível -  a paixão por si mesmo. A concretização se deu em outro dia de caçada. Estando fatigado pela faina, Narciso se aproximou de uma fonte e sobre ela se debruçou, a fim de pegar água. Foi quando se deu a famosa cena da visão no reflexo, e o início de uma paixão irremediável. A cada vez que tocava a superfície, a imagem desaparecia, para se materializar novamente em segundos. Narciso tentava beijar sua imagem, mas o mesmo acontecia. Sem conseguir se distanciar e também sem alcançar seu objetivo, o jovem cada vez mais se depauperava, até perder toda sua força e morrer. No lugar de seu corpo, brotou a bela flor que leva seu nome.

Essa história simbolizava tantas outras na espécie humana que acabou por se tornar a narrativa da autoimagem que suplanta a própria visão que não consegue sair de si mesma, de forma a originar inúmeras inspirações poéticas, como o verso da epígrafe, ou a nominar princípios psicológicos, como fez Freud.

Quando Freud escreveu seu livro “O Mal-estar na Civilização”, as sociedades ocidentais viviam um momento em que se viram defronte a um paradoxo retumbante. No século XVIII, o Iluminismo removia o pensamento das superstições religiosas, enquanto no século XIX o Positivismo creditava à ciência um mundo de avanços em todas as dimensões. O que tínhamos no começo do século XX? A maior guerra que se teve notícia, com recursos tecnológicos nunca sonhados antes. A ciência que traria uma qualidade de vida nunca sonhada era a mesma que produzia os artefatos mais mortais jamais arquitetados. Essa encruzilhada em que a humanidade se colocou vinha agravada pelo descolamento das divindades, que agora não admitiam regresso, tendo em vista as descobertas que o próprio conhecimento científico trazia, e que a retirava do lugar especial que imaginava ter. A humanidade passava a se olhar em seu reflexo e, como Narciso, começa a definhar em sua imagem autoconstruída. Alguns desses eventos eram tão marcantes ao desmonte dessa imagem própria que Freud deu o nome de feridas narcísicas ao fruto dos golpes que os homens, vistos como coletividade, sofreram no seu eu, todas no âmbito científico.

A primeira delas se dá através de Copérnico. Resumidamente, cria-se que o planeta representava o centro do universo e, consequentemente, todos os astros giravam ao seu redor. Quando observados puramente no plano intuitivo, não tem erro. Observamos o Sol, a Lua e as estrelas descrevendo um círculo nos céus e concluímos fácil que estamos no meio. E o que isso significa? Que estamos em uma posição central, que somos agraciados por Deus, que o universo todo foi feito para nós. Se ainda não o temos todo em nossas mãos, é daqui do meio que poderemos alcançá-lo.

Mas, mesmo sendo intuitivo, um olhar um pouco mais atento via coisas inexplicáveis. Por que há estrelas que começam a andar para trás, contrariando todo o movimento típico de leste para oeste? Por que algumas dessas mesmas estrelas parecem maiores ou menores no firmamento, dependendo da época do ano? Para explicar esses fenômenos no contexto do geocentrismo, eram necessárias hipóteses estapafúrdias, como epiciclos e excentricidade. A resolução que Copérnico deu era de uma simplicidade irritante: não, não estamos no centro. Quem está no centro é o Sol. Nós estamos girando junto com os demais planetas, na periferia, em pé de igualdade com nossos irmãozinhos cósmicos.

Um pouco mais adiante, vieram Darwin e Wallace. A princípio, e por séculos, cria-se que todos os seres vieram prontos e acabados através de um criador, que os colocou no mundo de acordo com sua vontade para cumprir uma determinada função. O ápice era o ser humano, um ser mais próximo do que eram as próprias divindades, capaz de criar e de abstrair, que não vive só por viver, como qualquer outro ser.

Entretanto, a observação cuidadosa da realidade já fazia com que a emergente comunidade científica percebesse que os seres não eram estáveis, e que se transformavam no decorrer de longos lapsos de tempo. O que Darwin e Wallace notaram foi que essa transformação não se dava ao léu, mas através de pressões ambientais que levavam à seleção dos entes mais bem adaptados. Mais ainda: como essa pressão era exercida sobre indivíduos, as diferenciações não eram unívocas, gerando distinções dentro de uma mesma espécie. Isso faz surgir o conceito de ancestral comum, sendo que as espécies parentes eram aquelas que guardavam maiores semelhanças. Pepinos e melancias, minhocas e sanguessugas, gatos e leões, macacos e homens. O homem é um primata dentre outros, que um dia no passado foi um único animal, o tal ancestral comum entre nós e os macacos. Nós somos macacos. Nada mal para quem é a imagem e semelhança de deus.

A finalização veio no começo do século XX. Já fora do centro do universo, já um animal como outro qualquer, a humanidade ainda se arrogava a condição da racionalidade. O homem pode crescer como autêntico patrimônio universal porque tem a lógica como seu principal componente e o conhecimento como sua grande ferramenta. Sua genialidade pode ser resumida na fecundidade de seus inventos e descobertas, no avanço tecnológico e na criatividade artística. Nenhum outro animal tem qualquer semelhança com esse bolsão de benesses potenciais.

Entretanto, um esbarrão na rua, que qualquer lógica deduz a falta de intenção, já produz simulacros de MMA entre dois machos alfa. Aliás, a violência é espetáculo que atrai milhões, desde o tempo dos gladiadores até os ringues modernos. A lógica não vale nada diante dos afetos. Os lapsos fazem esquecimentos em momentos vitais. Os atos falhos fazem com que digamos aquilo que não queríamos, e nunca sonhamos o que queríamos, mas o que surge em nossa cabeça, bom ou ruim. Nós estamos sentados em um lugar pacífico, sem nenhuma preocupação aparente, e do nada vem os medos, as vergonhas, as aflições. Nossos afetos fazem com que tomemos atitudes que não têm como serem chamadas de racionais. O controle que temos sobre nossa mente é extremamente menor do que aquele que julgávamos ter. Nossa porção racional é ínfima dentro do conteúdo total da nossa psiquê. Freud descobre que o inconsciente é muito maior e mais atuante do que a consciência. Há uma guerra entre o instinto animal por um lado, e pela repressão socioambiental pelo outro, de forma não perceptível aos sentidos, mas que pressiona a porção consciente de forma muito difícil de lidar, e essa é uma usina de problemas emocionais, neuroses e psicoses à frente. Achávamo-nos racionais, mas não o somos.

Será que esses caras eram malvadões que queriam diminuir a humanidade, que é a pérola da criação divina? Não, nada disso. Eles quiseram uma visão mais realista, mais factual, menos transcendente do que é o universo. É aquela coisa: quando somos crianças, explicações do tipo cegonha são suficientes para satisfazer a curiosidade de como os bebês são encaminhados. Na medida em que crescemos, passamos a querer saber mais, a exigir mais, e estamos sempre aperfeiçoando nossos conhecimentos. Precisamos não só compreender a dinâmica dos nascimentos, mas como se formam os diferentes órgãos, os pulsos nervosos, e até mesmo em que momento exato começa esse fenômeno chamado vida. Foi assim com os novos saberes que resultaram nas feridas narcísicas, e ainda não pararam. Depois de Copérnico, vieram Brahe, Kepler, Hubble. Depois de Darwin, vieram Weiseman, De Vries, Dobzhansky. Depois de Freud, tivemos Wertheimer, Rogers, Gazzaniga.

Em resumo, o nosso narcisismo coletivo, marca de nossas sociedades, é profundamente afetado à medida que a ciência avança e descobre cada vez mais sobre nós mesmos. O homem é encapsulado por muito menos estruturas que pensava e é muito mais parelho a todo o resto da realidade circunstante. A cada golpe desses, o mundo deixa de ser um grande quintal feito sob medida para a humanidade, que passa a se tornar cada vez mais um ponto indefinido em um gigantesco universo. Sozinho. Pelado. Embaixo das pontes.

Estamos à espera da próxima ferida narcísica e isso deve ser um bom motivador para nossa busca incessante por informações, essencialmente para não ser pegos no contrapé, embora as outras feridas tenham demonstrado que isso é inevitável. Seria até possível defender que a quarta ferida já existia antes mesmo da terceira, com a constatação marxista de que os homens nunca conseguem ser neutros, sendo que toda sua ação é ideológica. Tudo o que você come, tudo o que você admira, tudo o que você quer, tudo o que você interpreta e percebe do mundo ao seu redor está banhado de ideologia, de preformatações que se constituíram a partir de uma cadeia de ações e reações vindas das disputas entre as diferentes classes sociais. A ideia não é exatamente nova, lembrando que já o velho Aristóteles dizia que o homem é um animal político. A novidade em Marx vem na forma de alienação, um conceito de Feuerbach aplicado à vida social, onde o homem aceita a condição imposta pelo seu lugar na escala social sem ao menos se dar conta disso.

Mas isso é uma espinha na virilha se comparada com as verdadeiras feridas, e penso que a próxima está em pleno desenvolvimento, paulatino como sempre, mas aparente como nunca, ainda exercendo seu fascínio, mas já despertando seus medos. Vamos a ela.

Eu nunca fui exatamente um entusiasta do xadrez, mas o noticiário fez muito barulho em meados da década de 90, quando o atual campeão mundial da época, o azerbaijano (então soviético) Garry Kasparov, foi convidado a enfrentar um computador em uma partida similar às que aconteciam entre grandes mestres. Não era exatamente uma novidade, que já ocorria desde a década de 80, sempre com vitória humana. Só que, naquele mês de maio de 1997, aconteceu. Era a segunda vez que Kasparov enfrentava o Deep Blue, uma máquina especificamente configurada para jogar xadrez, com ampla capacidade para processamento de cálculos. A vitória foi longe de ser confortável, e poderíamos considerar inúmeros fatores: algum vacilo do humano Kasparov em um dia especialmente ruim, a hiperespecialização do Deep Blue, preparado com um nível de especificidade que não lhe daria mais nenhuma aplicação ou algum tipo de trapaça, vá lá. Houve acusações de que a IBM, fabricante do computador, fez algum tipo de manipulação, porque, de fato, se recusou a fornecer os prints dos logs de cálculo do Deep Blue a Kasparov, alegando sigilo autoral. Houve até mesmo teorias da conspiração dizendo que havia um pool de jogadores assessorando o computador, para forçar a vitória e obter uma sobrevalorização do preço das ações da IBM no mercado. Mas o caso é que o fato foi um ponto de inflexão na maneira como olhamos essa tão comentada disciplina nos dias atuais: a inteligência artificial.

Eu dei pitacos sobre esse tema nesse humilde espaço (aqui e aqui), e imagino que, se for possível reduzir a mente a algoritmos, teremos uma grande possibilidade de construir máquinas que pensem por si. Não é que uma vitória em um torneio de xadrez ou a composição de um texto no ChatGPT, ou ainda um comercial que imite uma cantora famosa vá fazer com que nos consideremos superados em nossa inteligência, mas temos diante de nós um caminho inequívoco e do qual não vamos voltar atrás. Esse é um momento chave, em que reconheceremos em breve que não somos mais os seres que possuem a melhor capacidade cognitiva no planetinha azul já bastante acinzentado, e, nesse momento, teremos a quarta ferida completamente exposta às moscas da nossa inferioridade. Como vamos lidar com essa situação, é uma pergunta que não tenho como responder. Eu, de minha parte, vou fazer como faço com a morte: sem ter como especular, vou esperar, e é tudo.

Para finalizar, resolvi colocar esse texto no conjunto que escrevi que fui à região bragantina, não porque este pedaço de terra fique lá, mas porque falei de Monte Verde naquele contexto, então achei por bem agrupar tudo por lá. Bons ventos a todos!

Recomendações:

É um repeteco, mas não há problemas quanto a isso, principalmente porque é um tema que rende bem mais que um post.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. São Paulo: Cia. Das Letras, 2011.

 

E a música da epígrafe, um grande clássico da MPB:

VELOSO, Caetano. Sampa. in: Muito - Dentro da Estrela Azulada. Rio de Janeiro: Phillips, 1978.

quinta-feira, 7 de março de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – Epílogo: sobre café e objetos de culto que não são sagrados

(Chegando ao fim, com um brinde na forma de um cafezinho)

“Se os deuses, cada um em seu momento, saem do templo e se tornam profanos, vemos que o relativo à própria sociedade humana entra no templo progressivamente”

Marcel Mauss

Olá!

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Este é o texto em que fecho a série sobre mais uma viagem que realizo. Desta vez, procurei todas as cidades em que, de uma forma ou de outra, estive muito perto de vir em outras jornadas, mas que acabaram não acontecendo. Desta forma, dei cabo daquela sensação de incompletude que temos ao olhar para um álbum de figurinhas e o vemos com lacunas, sendo que inclusive tratei do tema em um dos posts. É uma mania que peguei da minha mãe. Ela sempre tratava suas tarefas com esmero, por vezes exagerado. Lembro, por exemplo, de quando ela confeitava bolos. Dava umas onze da noite e a peça estava ótima, dez com louvor. Mas ela ficava ainda por toda a madrugada, buscando detalhes impensáveis, como as manchinhas nas costas das renas de Natal. “Existem renas sem manchinhas nas costas?”, questionava a genitora. Sei lá, dizia eu, na minha insensibilidade valiam muito mais as horas de sono perdidas. É claro que não se compara o que fiz agora, mas parece ter a mesma matriz, e, agora, respiro aliviado, livre da sensação de ter perdido oportunidades em outros momentos. Com isso eu fechei todo o território? Não, sempre falta alguma coisa. Mas quando eu passar por Dom Viçoso, Olímpio Noronha, Natércia, Heliodora, Piranguçu ou mais alguma, acrescento a esta lista e vida que segue.

O mais curioso é que, apesar de ter passado por oito cidades diferentes (e mais uma rápida passada em Caxambu para rever amigos), não me hospedei em nenhuma delas. Viajei em um feriado, imprudentemente, mas consegui uma daquelas promoções de desistência, do tipo pegar ou largar, e fiquei em um chalezinho muito bonito em São Lourenço. Como já fiz um belo texto sobre esta cidade, não vou me repetir, obviamente.

Isso não significa que eu não tenha feito nada pela cidade, muito pelo contrário. Estamos no Sul de Minas, a terra onde se produz o melhor café do Brasil nos dias de hoje, e é natural que, em uma cidade com quase 50.000 habitantes e um tanto grande de turistas, haja bons lugares para se sorver um café como se deve. Bons, não… dos melhores.

Não se trata de fazer propaganda, até porque não estou ganhando um único trocado com isso (mas não seria nada mau). É apenas mais uma maneira de relatar para vocês minhas experiências pessoais e entrecruzá-las com filosofia, o legítimo motor deste espaço. E, no caso, é mandatório que eu relate minhas preferências e o que elas têm a dizer ao mundo. Isso passa pela devoção aos bons cafés, que tanto aprecio, e pelo fato de que estou perto de autênticos templos desta arte.

É que a Unique é uma espécie de Vaticano do café especial, um dos top of minds quando o tema é esse, como é Omo para sabão em pó, Coca-Cola para refrigerantes, Aspirina para comprimidos. Para qualquer pessoa do ramo, essa é uma referência de ponta da língua. A Unique é mais um negócio no mundo do capitalismo, mas que oferece o que esperamos: produtos de alta qualidade com preço razoável.

Só que, para além de produzir seus cafés, a Unique tem uma cafeteria, que, no final das contas, representa esse templo a que me referi. Eu não viria para São Lourenço perdendo a oportunidade de prestar meu culto, sintetizado nas xícaras de arábica de 80+ pontos. 

Aqui nós temos um pacote completo, que inclui explicitamente as etapas de produção, sem que nada fique fora do âmbito da compreensão do cliente. Talvez não tenha tanta relevância para quem se ocupa unicamente de tomar algumas xícaras, mas para quem quer compreender a si mesmo como apreciador, é muito relevante que haja um didatismo desse nível, incluindo o processo de torra e o sensorial que ele causa. Já ouvi falar de muita gente que não suporta o sabor do café, mas ama seu aroma, especialmente quando está sendo torrado. Aqui, é possível ter a experiência definitiva.

Nem só de Unique São Lourenço viverá. A cafeteria CWC vem com outro conceito, menos rastreador de origens e processos, mais voltado à seletividade. Yirgacheffe, sudan, laurina, gesha, starmaya, pacamara e outros grãos de nome difícil estão disponíveis em versões requintadas, servidas em taças e feitos com a água mineral local, para garantir mínima interferência nos sabores.

CWC significa Coffee Work Club, e consiste em um espaço de coworking, um modelo de negócio que se fortaleceu muito a partir da pandemia de COVID, baseado no compartilhamento de espaços para necessidades transitórias, como reuniões de negócios, realização de trabalhos mútuos ou trabalho remoto ocasional. É normal que haja formas de comer alguma coisinha nesses locais, mas aqui a coisa foi levada tão a sério que acabou se tornando o mote, e não o acessório.


Como trabalha com grãos seletos, é irremediável que se queriam estabelecer parâmetros e fazer comparações. Para tanto, eles criaram uma espécie de menu degustação onde são oferecidas três bebidas distintas, para serem tomadas em uma ordem predeterminada e entremeadas por goles de água, para limpar o paladar. É muito bom para conhecermos cafés que são produzidos em outras partes do mundo, e traçar um paralelo com os produtos que tomamos aqui.

Aí vem aquele meu velho e chato interlocutor imaginário (uma espécie de má consciência nietschena com influências de Bilac?) e vem com suas perguntas metidas a embaraçosas: Ora (direis), como um morador da cidade de São Paulo, com seus inúmeros cafés para todos os tipos e gostos, com ambientes instagramáveis, adoção de gatos, métodos e grãos do mundo inteiro, se surpreende com uma cidade do interior? Minha resposta se dá em duas camadas. A primeira é semelhante à intuição de Bergson, de quem tratei há pouco tempo (aqui). Neste exato momento, eu estou cercado de milhares de pés de café por todos os lados, bastando andar três ou quatro quilômetros a qualquer direção que eu vá para dar de frente com eles. Aliás, não. Basta pôr a cabeça para fora da cafeteria que eu já os vejo.


É possível haver conhecimento sem esse contato e consequente apreensão direta? Pode ser que sim, não nego. Afinal de contas, há médicos que não operam, advogados que não vão a tribunais, mas que, de uma forma ou de outra, tiveram o contato mais íntimo possível com seu objeto de estudo. Por que seria diferente com o café? Aqui, há a fusão entre o ponto natural de surgimento com o ponto final do consumo, e isso enriquece a bagagem do apreciador, nem que seja pelo puro prazer de conhecer ou comparar suas tatuagens com um cafeeiro de “carne e osso”.

A segunda é que tanto Unique, quanto CWC sintetizam duas formas de lidar com o café que são ambas interessantes e igualmente válidas. A Unique percorre o ciclo completo do grão, começando da própria terra e chegando até a xícara, cumprindo, dessa forma, todas as etapas da produção. Já a CWC explora outro aspecto: a integração do café à produtividade de outras áreas, a partir do momento em que oferece um lugar onde você pode passar o dia inteiro, inclusive os úteis. São modelos inovadores e que, por isso, guardam encantos especiais como seus cafés.

É normal que a apreciação faz com que tenhamos mais cuidado com os costumes que temos. Onde trabalho, há a indefectível garrafa térmica de café, mas são daqueles produtos que tornam peremptórias as adições, seja de açúcar ou adoçante, dada a baixa qualidade da beberagem. Isso faz com que eu apele a recursos, como um coador que percolará grãos moídos no dia, ou um drip coffee maroto, que exige apenas um pouco de água quente. Mas o ato do preparo chama a atenção dos colegas, e, uma vez interpelado, eu abro a torneirinha mesmo: porque o grão tal, porque o método xis, porque a moagem ypsilon, e assim vai. Nem todos acham isso bonito, muitos, inclusive, observando um certo pernosticismo de minha parte, o que não é mentira. A grande pergunta que me fazem quando começo a falar empolgadamente de café é porque tanta deferência com momento tão fugaz. Tem café na garrafa, para que perder tempo e pagar caro? Bem…

Quem pugna pela utilidade das coisas, geralmente está segregando interesses. Pergunte para um defensor do útil se ele torce para algum time de futebol. Que utilidade tem o futebol? E as novelas? Dificilmente alguém pratica somente coisas úteis, mas aí temos uma questão de parcialidade. Meu lazer é útil, o do outro não é.

Não estou aqui falando do pragmatismo como escola de pensamento filosófico, mas como visão de vida. O pragmatismo filosófico é a corrente de pensamento que pugna por uma visão prática da filosofia, para que a mesma sempre procure resolver problemas, e não se perder em divagações infinitas de pouco aspecto efetivo. Essa é uma visão como qualquer outra, concordemos com ela ou não, e é muito levada em consideração dentro da filosofia estadunidense, apenas para dar um exemplo. Minha questão é com uma certa má vontade com quem quer enxergar além do propósito empírico das coisas do mundo, lembrando que uma das grandes características do ser humano é justamente ser abstrato, transformar fatos em significados, e trabalhar sentido onde ele, aparentemente, não existe.

Quando alguém fala dessas “inutilidades” tira de relevo as coisas que dão colorido para a vida. Basta que se pensem nos sentidos. Não me basta ouvir, mas ouvir boa música; não basta ver, mas ver belos quadros, sentir cheiro de bons perfumes, sabor de ótimos cafés. Se os sentidos só servem para a utilidade, onde estamos sendo diferentes dos demais animais?

É com o nascedouro da apuração dos sentidos que vem um dos melhores designativos da raça humana: sua capacidade de abstração para dar significado a coisas que, em um sentido prático, não teriam valor algum. E isso desemboca, inclusive, em todo o bojo cultural de um grupo, com seus cultos e celebrações inclusos.

Na verdade, há que se compreender um pouco melhor o conceito de lugar de culto. É óbvio que ele sugere a ideia de espaço religioso, mas nem sempre é preciso criar esse vínculo. Existe uma espécie de cola social que faz com que até o mais empedernido dos ateus tenha laços sociais, e ele pode ocorrer de vários modos, sem que haja uma objetividade concreta e palpável. O exemplo mais próximo é o do futebol. Quantos estádios já receberam o epíteto de templo? Wembley, Santiago Bernabeu, Camp Nou, Giuseppe Meazza/San Siro, Maracanã, até mesmo a Rua Javari para a comunidade da Mooca. Aliás, peguemos este último, que costuma lotar nas manhãs de domingo, antes da macarronada na nonna. O pessoal não se reúne naquele pequeno campo simplesmente porque gostam do futebol à moda antiga. Eles estão lá porque há todo um conjunto de representações simbólicas que somente se materializam lá: primariamente, a união em torno de causas comuns, o pertencimento ao tradicional bairro, a resistência da agremiação que o representa, e (por que não?) o prelúdio do faustoso almoço, ele mesmo uma continuação mais particularizada de cada grupo do culto. 

Essa cola social não é tangível, mas é fartamente explicável pela nossa boa e velha necessidade gregária. Talvez seja um pouco cruel com nossas romantizações, mas há uma razão muito prática para que gostemos de estar juntos: a sobrevivência. É claro que tal característica está lá no fundo do desenvolvimento de nossa espécie, e não é crime algum fazer algumas ilações de fundo metafísico sobre essa tendência à reunião.

Já nos primórdios das formações das comunidades, havia algum tipo de especialização baseada em divisão de tarefas, enfatizadas pelas necessidades específicas. Assim, a turma que precisava caçar fazia seu preparo e orava para suas divindades da caça. Estando todos juntos, faziam essas ações com coesão, de modo a fixar ritos. Extensivamente, esse comportamento foi se estendendo para outras atividades, resultando em espaços de culto cada vez mais sofisticados, e que foram desembocar nas atuais igrejas.

Mas uma casa de café pode ser considerada um local de culto? Vai depender do que consideramos como tal. Se é necessária uma transcendência, ela está na importância estética que se dá aos aromas e sabores. Em termos materiais, tomar um café nada mais é do que uma atividade alimentícia, partindo da premissa de que se trata de uma bebida estimulante, e não meramente nutritiva. A partir do momento em que se pensa na questão da experiência íntima com o grão, a coisa atinge níveis de subjetividade que vão para além da mera imanência. A importância da experiência faz com que se saia da prosaica atitude de se tomar um café só para pegar ânimo ou acompanhar um pãozinho, e ganha aspecto ritualístico.

Aí é que está a importância de se conhecer as origens e os processos do café. Alguém é cristão sem conhecer Cristo? Maometano sem conhecer Maomé? Budista sem saber quem é Buda? O mesmo se aplica ao time do coração, ao músico favorito, ao café. É quase o ensinamento de Epicuro: obter prazer em tudo significa simplificar o conceito de prazer. Ora, ora, direis (novamente), o prazer simples, no caso, não seria beber teu café e ponto final? Não é contraditório ter que se aprofundar em um assunto para dele extrair contentamento? É que meu inconveniente interlocutor se esquece de que prazer simples não é sinônimo de prazer preguiçoso. Em um mundo onde a internet nos leva a qualquer lugar em segundos, buscar informações é fácil e completa a experiência. Só que nem isso é necessário. Basta que se pegue a embalagem do café para aprender muita coisa, como o grão que se sorve, as notas que o q-grader indica, o perfil de torra, a origem que lhe explica o terroir e tantas outras informações que não são vitais, mas que dão esse colorido que eu falei e que tiram alguma coisa de seu lugar comum, de sua profanidade. E é assim que temos a cafeteria transformada em ponto de culto: ao reunir em si o ânimo celebrativo de conjuntos de pessoas que compartilham desse mesmo interesse ou, melhor dizendo, dessa mesma paixão.

É assim que se formam novos laços. Quando realizamos uma ação qualquer aqui dentro, estamos não só realizando trocas de dinheiro por produtos, mas de elementos simbólicos. Não estamos apenas comprando e vendendo, mas estabelecendo alianças que se consubstanciam no interesse comum. Eu não dou só meu dinheiro ao vendedor, dou minha confiança de que terei para mim um bom atendimento - uma retribuição. Também quem me recebe espera de mim o reconhecimento pelo bom atendimento - outra retribuição. A cadeia social não se dá somente no comprar e no vender, no dar e no receber, na troca de elementos palpáveis. Dá-se na retribuição. Dessa forma, o café não é mais uma mera mercadoria, mas um compartilhamento, porque, novamente, não há só o material, mas o símbolo: o café que eu tenho nas mãos, e que veio das mãos da garçonete, e que foi feito pelo barista tem um significado de aliança. Estamos todos aqui em seu nome.

É como dizia o antropólogo francês Marcel Mauss: há algo de dádiva em cada ato social que cometemos. Isso significa algo divino? Não, mas sim que em todas as relações humanas não se bastam somente no que há de interesse em jogo, como o café que se compra e o café que se vende, mas aquilo que vai além dessa mera relação comercial. O sorriso ao passar a xícara é dado, não é vendido. Idem com o “obrigado” que é devolvido, não é recebido. É nessas dádivas que as relações sociais se fixam e se intercambiam no interior de cada uma dessas tribos, de modo a lhes dar coesão.

É meio que a prova de que as sociedades provavelmente nunca serão cem por cento secularizadas. A sacralidade não se vincula unicamente a divindades, mas sobre isso, já discorri neste texto, a quem recomendo a leitura.

E vou ficando por aqui. Não sei quando volto a fazer uma nova viagem nesse estilo turnê, mas o fato é que minha pauta está cheinha e preciso correr para não perder o controle. Bons ventos a todos e até a próxima!

Recomendações:

Primeiro, o artigo de Marcel Mauss que trata do conceito de dádiva nas relações sociais.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003


Depois, especificamente com relação a este texto, seguem os endereços das duas cafeterias mencionadas. Se eu tivesse que indicar uma sequência, vá primeiro na Unique e depois na CWC, para pegar balanço e ir se acostumando com esse universo:

Unique: Via Othon de Carvalho, 1020 - Vale dos Pinheiros, São Lourenço - MG

CWC: Av. Comendador Costa, 669 - Centro, São Lourenço - MG


Por fim, a relação de cidades por onde passei, com sua distância calculada a partir do centro da cidade de São Paulo, mais especificamente da Sé, onde moro:

Campanha 285 Km

Soledade de Minas 312 Km

Virgínia 299 Km

São Sebastião do Rio Verde 284 Km

Aiuruoca 357 Km

Águas de Contendas 327 Km

Alagoa 317 Km

Itanhandu 266 Km


Já o chalé em que fiquei hospedado fica na Pousada Campestre, que, embora esteja em área rural, fica muito perto da própria Unique. Recomendo bastante, pela qualidade das instalações, pelo preço convidativo e pela gentileza de seus atendentes.

Pousada Campestre (Loisana e Vlamir): Estrada da Bomba, S/N - Palmela, São Lourenço - MG


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 8º lugar: Itanhandu e o mundo real como base da História

(Como são explicadas as mudanças do mundo? É preciso olhar para fora ou está tudo aqui dentro mesmo?)

“Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina sua consciência”

Marx

Olá!

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Quando vim para as Terras Altas da Mantiqueira pela primeira vez, meu fluxo incluiu alguns vai-e-vem. De Passa-Quatro para Itamonte, de Itamonte para Passa-Quatro, e depois de novo e de novo. Não vou ficar explicando essas idas e vindas, sendo suficiente saber que, entre ambas, tinha uma cidade com uma bela fábrica na beira da estrada, e que eu pensava em entrar, sem nunca o fazer. Com o espírito de resgate deste novo périplo, chegou a hora. Vamos conhecer Itanhandu.

O curioso nome da cidade significa “ema de pedra” em tupi-guarani, embora haja outras interpretações possíveis no site da prefeitura (aqui). De toda forma, está correlacionado à bacia hidrográfica à qual a cidade pertence, em especial ao quase onipresente Rio Verde. Esse fato não passou desapercebido na praça central da cidade, onde vemos a ema que abre este texto.

Itanhandu está naquele pedaço mineiro que foi parte do teatro de combates da Revolução Constitucionalista. Para um paulista como eu, é um tanto estranho perceber como há vanglória em um evento de desunião de um país, mas, vá lá que seja, faz parte da história e precisamos compreendê-lo bem.

A igreja matriz é dedicada, mais uma vez, a Nossa Senhora da Conceição. Essa santa é popular no Brasil por derivação direta da devoção dos portugueses, mas, de lá, a questão parece um tanto difusa, não se apegando a um evento tão direto quanto a contada aparição da Santa na Cova de Iria, em Fátima.

Dentro da igreja, relembramos de dois santos praticamente endêmicos desta redondeza: a Nhá Chica (leiam este texto para saber mais)...

… e o Padre Vítor, famoso por ser o primeiro escravo a ganhar os galardões da beatitude.

Estamos em uma cidade que fazia parte do traçado da antiga rede mineira de ferrovias, que causa saudades em tanta gente (leia mais aqui), e a cidade ainda mantém em boas condições a sua estação. O que está em más condições é a qualidade da minha foto.

Na ponte que cruza o Rio Verde, há um pequeno memorial. Este rio, que repeti tantas vezes nessa jornada, tem em Itanhandu as suas nascentes, e a parte rural tem boas trilhas e cachoeiras, especialmente a do Vô Delfim, a mais popular delas.

Mas e a tal fábrica? É uma empresa de laticínios, que produz tudo o que o leite pode dar, em um esquema muito diferente daqueles que são desenvolvidos pelos pequenos produtores.

Enquanto nos pequenos sítios a produção se fecha em um ou dois produtos, no máximo, aqui o que impera é a variedade, sendo que toda a região vende esses produtos, menos românticos, mas mais em conta.

Nos hotéis, por exemplo, é uma presença quase obrigatória a sua manteiguinha, vendida em pequenos tabletes, para uma refeição única. Até mesmo uma cachacinha se acha por lá.

São todos produtos bons, e, embora seja uma indústria, dá aquele arzinho de campo que seduz a gente. Só que, em uma terra conhecida pelos artigos artesanais, feitos por produtores que receberam seus conhecimentos dos pais e que não sabem se os passarão para os filhos, é um pouco estranha a presença de uma fábrica desse tamanho, uma coisa quase contraditória. Mas é desse material que a realidade é feita, de idas e vindas em que não notamos o que está no meio do caminho, e nem o que está por trás das coisas. Talvez devêssemos dar mais atenção a esses detalhes, porque eles dizem muito e explicam tudo.

Se vocês prestarem bem atenção, para além da poesia das coisas que eu falei, há uma proposta para lançar o olhar para a realidade que vai além do mero senso comum, ainda que de forma muito rudimentar. É um método, uma maneira predefinida para se atingir um objetivo. Quando combinamos esse olhar com a análise social, não há como não pensar na metodologia de Karl Marx. Ora, ora, não saia do texto agora, nem sinta raiva, porque eu não sou marxista e não há como excluir sua importância para a filosofia. Mas todas as vezes que eu vou falar deste pensador preciso fazer um rápido disclaimer, para não atiçar a raiva de cabeças mais suscetíveis. Apenas tente compreender de maneira neutra como funciona sua proposta, e, depois, concorde ou discorde. Vamos tentar?

Quando um aluno de universidade ou pós-graduação está para concluir seu curso, ele precisa passar pelo crivo do horrífico TCC, com seu terrível orientador e sua amedrontadora banca. Normalmente, é preciso declarar a metodologia aplicada nos trabalhos, o que é típico para quase todos os cursos: pesquisa de campo, revisão bibliográfica, experimento laboratorial e assim por diante. Nos trabalhos de filosofia, é necessária uma declaração adicional, que é a abordagem de pesquisa filosófica. São várias, sendo que as mais comuns são a fenomenologia, a hermenêutica, o positivismo e as dialéticas, sendo que aqui o caminho se bifurca: há a via hegeliana ou a abordagem marxista, o materialismo histórico-dialético. É sobre esse último que eu vou me debruçar.

Normalmente, os manuais de filosofia costumam destrinchar esse termo para fazer a explicação, mas há um probleminha. A sequência que o nome da metodologia tem fica um pouco invertida, no meu humilde entender. Seria melhor se falássemos em uma dialética material-histórica. Isso porque o fluxo dialético é o seu grande fundamento.

Quando nós observamos qualquer fenômeno em nossa vida, temos a tendência em recortar átomos de tempo, como se aquilo que temos diante dos nossos olhos fosse um retrato que se bastasse em si mesmo. Como exemplo, vou falar de algo que vi agora pouco, ao cair da noite. Da janela do meu quarto, olho para a esquerda e vejo uns cinco ou seis meninos correndo atrás de uma bola. Há a mãe de um deles em vigilância, enquanto dedilha seu celular perto da porta do bar da esquina. Ah, conheço-a; é a manicure do meu prédio sem metafísica*. Os meninos são seus filhos, além do menino da peruana que vende quinquilharias no Brás e os do cachorro louco do segundo andar. Fico observando os passes ainda meio destrambelhados e os gritos intensos, que se multiplicam ao vazar o goleiro (que usa chinelos à guisa de luvas) e atingir em cheio as barulhentas portas de ferro das lojas de essências, causando estrépito e alvoroço, incluindo do cachorro de um deles.

Olhando assim, parece que temos nada mais, nada menos, que nosso prosaico quotidiano, sem grandes novidades no front. Mas um olhar um pouco mais acurado vai fazer com que levantemos inúmeras questões. Por que aqueles meninos estão brincando na rua, e não em uma quadra, ou clube? Por que é necessário ter uma mãe vigiando a brincadeira dos meninos? Até mesmo pode-se perguntar por que o menino no gol está com os chinelos nas mãos, ao invés de luvas. Todos esses questionamentos desnudam as relações de causalidade que levaram àquele momento que observo, tornando claro que houve um sem-número de componentes que a fizeram ficar como é. Não há nada na realidade que não entre em uma relação de anterioridade:  as coisas são como são porque uma série de fatores antes desembocaram nelas. Em suma: a realidade é processo, e o momento nada mais é do que um estrato desse processo.

Mas agora olhemos com mais cuidado para a tola cena em si. Esse cantinho do centro de São Paulo foi apelidado carinhosamente de Faixa de Gaza. Esse nome se dá pelo “pega prá capar” que acontece entre “noias” e polícia, ou, às vezes entre eles mesmos em sua eterna briga pelas pedras. De que processo esse estágio atual faz parte? Da degradação do centro de São Paulo, que, embora completamente estruturado, não atrai habitantes definitivos; dos erros das políticas públicas, que não soube dar destinação a grandes áreas que perderam seu uso, com o mais clássico de todos sendo a antiga Rodoviária da Luz; do aumento do tráfico e da adição de novas drogas, bem mais viciantes e problemáticas, como o crack e o recente k9; da indefinição de políticas de habitação popular; do desinteresse pela parte dos proprietários de imóveis em dar manutenção adequada aos seus bens, e, como esses, muitos outros fatores. Cada um deles, uma vez isolados, também estão inseridos em uma rede de causas e consequências que tem seus próprios fluxos, e a análise tende ao infinito, como se pode perceber.

Por outro lado, a cena em si demonstra uma tranquilidade prosaica, uma certa estabilidade. Mas ela carrega em si mesma todas as condições para ocorrer desequilíbrios. A mãe se obriga a estar lá pela insegurança da Faixa de Gaza, que a usam pela ausência de espaços públicos mais adequados, ou pela impossibilidade de pagar por uma quadra fechada. Mesmo o menino com mãos de chinelo demonstra a falta de condições materiais de ter uma luva, e não apenas o sonho inocente de ser um goleiro de renome. Toda disposição situacional é prenhe de contradições, e aqui vamos encontrar as instâncias dialéticas.

Neste ponto, as teorias de Marx e Engels mostram sua dependência com relação à dialética hegeliana. Já nela, detecta-se a realidade que carrega suas próprias contradições, e como é o trânsito entre elas que movimenta o mundo. Como sabemos, os marxistas têm fortes críticas ao capitalismo, e, de fato, podemos detectar algumas de suas ambiguidades com facilidade. Um dos seus pilares, por exemplo, é a livre concorrência, que determina que as empresas e pessoas poderão utilizar livremente os recursos que desejarem para exercerem suas atividades e conseguirem comerciar, desde que respeitados os limites da lei. Esses limites são óbvios: não se deve escravizar trabalhadores, não se deve explorar atividades ilícitas, e assim sucessivamente. Entretanto, a livre concorrência tem uma doença interna: um dos players pode crescer a tal ponto de se tornar monopolista no mercado. Não há nenhum crime sendo cometido, a não ser o próprio exercício da livre concorrência. Por exemplo, se um empresário tem fôlego financeiro para baixar seus preços a ponto de extinguir a concorrência, não estará descumprindo regras do próprio sistema. Idem quando as empresas de determinado setor se associam para impedir que os preços de seus produtos não baixem além de um certo limite. Para impedir que esses fenômenos ocorram, criam-se leis antidumping, antitruste e assim por diante. Esses nomes em inglês denunciam que não se trata de eventos do nosso capitalismo tupiniquim, mas do centro nervoso do capitalismo mundial, Estados Unidos à frente. Leis são antítese da liberdade econômica, mas que precisam existir para garanti-la. Percebem a contradição?

Isso não é uma exclusividade do capitalismo, mas de todo e qualquer sistema que se observe, porque a estrutura dialética está na medula da realidade. A questão que divide Marx e Engels de Hegel está no fato de que, para este último, a mola propulsora da realidade é o Espírito, uma espécie de fusão entre razão e natureza, que tem um certo caráter metafísico, já que sua definição, como se pode ver, não exclui alguma forma de idealização. No marxismo, esse impulso é outro, baseado no real concreto. Não se trata da exclusão pura e simples de instâncias metafísicas, mas da conscientização de que, independentemente delas, as coisas se desenrolam no mundo palpável, imanente, concreto, material. É na materialidade que se escreve a história e se dão os conflitos dialéticos. Sendo assim, o motor da história somente poderia se dar no plano do material, e Marx e Engels entendem que é o desequilíbrio entre as classes sociais este impulsionador. Patrícios e plebeus, suseranos e vassalos, brâmanes e sudras, esparciatas e hilotas, burgueses e proletários sempre vivem em um estado de tensão, porque há uma permanente diferença entre as condições materiais de cada uma dessas classes: quem tem privilégios, quer mantê-los; quem não os têm, quer obtê-los. Como em todas as sociedades há esse desnível e esse confronto, tudo o que acontece na esfera social se deve, de uma forma ou de outra, a esse fermento.

Perceberam como não há nada de metafísico, espiritual ou idealizado na proposta marxista? Como a análise deve se dar no plano material, com a realidade concreta exposta aos olhos? Eis porque a dialética de Marx e Engels é chamada de materialista, independentemente da existência ou não de qualquer instância transcendental.

Estando as coisas nesse ponto, vamos perceber uma guinada de volta ao pensamento hegeliano. Embora Hegel baseie sua ideia de progresso no idealismo e nas representações, o fato é que ele não exclui a historicidade dos fatos. Mais ainda: ele disserta firmemente sobre o modo como a própria razão é histórica, ou seja, sensível à transformação da realidade e ela mesma sujeita a mudanças no tempo. Entretanto, no campo do marxismo teremos um reposicionamento da consciência, que corresponde a momentos históricos determinados, ou seja, adaptados ao seu próprio tempo. A consciência é entrelaçada com a própria história: a maneira como ela enxerga o mundo está condicionada ao modo como foi historicamente inscrita nas mentes. Metafísica, religião e ética possuem seus valores em razão da variação dos conflitos sociais, se tivermos em vista que a característica fundante das sociedades é a necessidade da interação com a natureza através do trabalho.

É óbvio que, como qualquer outra metodologia, também aqui temos calcanhares de Aquiles. No caso, o materialismo torna boba qualquer pesquisa metafísica, objeto que efetivamente faz parte da filosofia. Talvez a práxis que fundeia o marxismo faça com que não haja muito sentido, mas objetos intangíveis não podem ser proibidos de ser pesquisados. Outra questão é que colocar a régua da luta de classes como único motor da história por vezes faz um efeito de turbilhão, ao invés de espiral dialética, partindo da premissa de todos os aspectos que podem afetar qualquer situação social do mundo, que, pelo princípio de causa e consequência podem chegar ab ovo. Por fim, o materialismo histórico-dialético exige muita habilidade para não se cair em situações forçadas, em antíteses que não existem e em sínteses absurdas. Um marxista empedernido que quer usar a metodologia sem bagagem suficiente pode produzir textos risíveis, totalmente desvinculados da realidade que persegue. E não é isso que se espera de uma boa análise.

Pois bem. Dialeticamente, abasteci minha mochila térmica de objetos materialmente industrializados enquanto vivo propagando as benesses da manufatura artesanal, e venho aqui para contar historicamente meus volteios para vocês. Bons ventos a todos, porque amanhã é dia de ir embora.

Recomendação de leitura:

Marx e Engels tratam de sua metodologia em várias obras. Vou recomendar justamente aquela de onde extraí a epígrafe.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008 

* Entendedores entenderão

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 7º lugar: Alagoa, com queijos e azeites que intuímos como obras de arte

(A intuição é aquele palpite furado ou nossa apreensão direta do mundo?)

“Em síntese, há que se distinguir dois elementos no movimento, o espaço percorrido e o ato pelo qual o percorremos, as posições sucessivas e a síntese dessas posições. O primeiro desses elementos é uma quantidade homogênea; o segundo só tem realidade na nossa consciência”.

Bergson


Olá!

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Eu tinha um carro humildezinho quando vim para estes lados pela primeira vez, o já declamado Bedelho. É uma região predominantemente rural e, portanto, plena de picadas e estradinhas de terra. Alguns dos lugares só são acessíveis por elas e, para os baixos veículos convencionais, é um pouco perturbador encarar trajetos meio longos em caminhos de chão. Por isso, embora estivesse bem perto quando estive em Itamonte, não me animei a enfrentar os quase quarenta quilômetros fora do asfalto. Mas, alvíssaras, temos hoje o carro mais alto e a capa de petróleo quase cru recobrindo o chão vermelho, e, nesta viagem de resgate, Alagoa não podia deixar de estar no roteiro. Vamos a ela.

Pequena como a maioria das cidades da região, Alagoa tem um notável relevo acidentado, com pouca área plana e culturas características de altitude.

A área urbana é bem pequenina, e com escadarias para ligar as ruas de desnível. Lembra-me um pouco o Jardim Guairacá, o bairro onde morava no porão da casa do sogro quando casei, que é cheio dessas escadinhas.

A população é igualmente pequena, menos de 3000 pessoas, mas há alguma amostra de habitações bastante antigas, remanescentes das comitivas de tropeiros que passavam pela região.

A igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, estava inacessível, razão pela qual não fiz uma reportagem minimamente decente, e tirei uma foto bem patife, para manter um registro que fosse.

Alagoa tem esse nome porque, à semelhança de Lagoinha, existia uma lagoa que foi drenada pelos fazendeiros que foram chegando à região. A natureza é generosa, com várias corredeiras no Rio Aiuruoca e no Ribeirão Vermelho, além de cachoeiras e picos, como o Pico do Garrafão ou de Santo Agostinho, da Serra dos Martins ou dos Nogueiras.

Para além dos recursos naturais, eu fui para lá com dois objetivos de cunho gastronômico. Primeiro, fui atrás de azeite, porque lá há um lagar que cresceu muito nos últimos anos. O pessoal permite que a Fazenda Cauré seja visitada, pela guia de um exímio conhecedor do negócio, o Sr. Antônio Carlos, aka Tonhão.

Lá, é possível observar os diversos olivais que produzem diferentes espécies, como as gregas koroneiki e as espanholas arbosana e arbequina.

A paisagem é de tirar o fôlego.

Em outro ponto, fica o lagar que produz o azeite oriundo destes olivais, o premiado Prado e Vázquez.

Além de comercializar o produto, o lagar permite que sejam conhecidas todas as etapas da fabricação e seu respectivo maquinário.

Novamente nas ruas da cidade, fomos dar uma olhada na outra especialidade da cidade de Alagoa, os queijos.

São várias lojas na cidade, já que sua fama tem se redobrado em tempos mais recentes, por terem chegado a um queijo de denominação própria bastante próximo do parmesão, mantendo um quê dos queijos minas típicos.

A variedade apresentada se dá menos no queijo em si e mais nos tempos de cura e adição de elementos distintos, como as castanhas e café, além do fracionamento das peças, porque são produtos bem caros.

Não obstante, são bastante saborosos de fato, merecendo um esforcinho financeiro para conhecê-los. Os prêmios que as lojas ostentam em paredes e estantes provam que a experiência é compensatória.

Azeites e queijos fazem parte não só do patrimônio gastronômico mineiro, mas do aporte intelectivo humano. Suas receitas estão armazenadas em manuais que permitem sua perfeita reprodução, e, dadas tais e tais condições, a mágica acontece e temos produtos que nos alimentam e comprazem. Isso é fruto de nossa característica inteligência, não há dúvida, mas sempre pensei que resta algo a mais, que não é somente fruto de um mecanicismo mental.

É aquela velha história. Faça-se o mais descritivo de todos os manuais, com todos os detalhes possíveis e imagináveis, anexe-se a ele fotos e endereços com vídeos, tabelas e estatísticas. Isso tudo não é garantia nenhuma de que este escriba, inexperiente nas artes alimentícias, tenha sucesso na empreitada. É claro que, se estivéssemos falando de um aviamento de remédio, a história seria outra, já que a indústria farmacêutica trabalha com insumos rigorosamente padronizados. Mesmo eu, que trabalhei em uma mequetrefíssima botica com mania de grandeza, atesto sua honestidade e zelo no cuidado com a saúde humana. Mas queijo não é remédio, azeite não é fármaco. Enquanto as aspirinas da vida necessitam de rigor científico para sua segurança na cura, os alimentos têm como primazia o prazer propiciado pela combinação sensória. Ora (direis), alimentos servem para alimentar, e também precisam passam por filtros de segurança tais e quais os de medicamentos. Sim, meu caro interlocutor imaginário, mas, quando você pensa em uma cápsula, pensa no seu poder curativo. Agora, quando pensa em comida, não pensa em matar a fome pura e simplesmente, mas em curtir o que come.

É nesse ponto em que vemos a porção mais artística, mais estética da comida. A questão aqui não é de reprodutibilidade, mas de criação. Não há ciência no mundo que consiga fazer com que duas avós façam o mesmo macarrão dominical, porque cada uma delas faz consistir o alimento em um ato criativo. Ainda bem.

Eu já mencionei Henri Bergson neste espaço (aqui e aqui), e o fiz sobre seus pensamentos sobre o tempo, mas sua filosofia psicológica não se limita a isso. Ele fazia grandes críticas à excessiva matematização do pensamento pretendida pelo Positivismo, que via ciência em tudo, que, se por um lado prometia uma precisão necessária ao progresso, por outro esquecia que o universo se compõe também do inesperado, do insólito, do ato de criação. Mas isso não o impedia de criticar também o finalismo pretendido pelas religiões. A eterna pergunta sobre o sentido da vida é respondida, costumeiramente, com uma entidade que cria os seres e dá a eles um propósito, mas a verdadeira resposta é justamente inversa: é a consciência que doa sentido para a vida. Isso se explica pelo fato de que cada um de nós pode construir uma cosmovisão própria, sem a necessidade de que se estabeleça uma finalidade comum a todos, com sentido próprio.

Com a crítica tanto ao mecanicismo quanto ao finalismo, o que propõe Bergson? Em primeiro lugar, precisamos compreender um pouco melhor as distinções feitas pelo processo evolutivo: o modo como chegamos a ser o que somos como humanos. Bergson entende que os mecanismos de evolução apontados por Darwin são suficientes para explicar como a humanidade chegou a o que é, mas falta entender seu mecanismo de propulsão. Se não temos os processos quadradinhos que a ciência propõe, nem uma entidade criadora que nos coloca em um plano predeterminado, ainda assim há algum motivo para nossas transformações. E a esse princípio Bergson dá o nome de élan vital (impulso vital, numa tradução direta do francês). Com isso, o nome da corrente que inaugura tem o nome de vitalismo.

O élan vital não é uma ideia propriamente nova, já que é bem semelhante ao conatus de Spinoza, à vontade de Schopenhauer, à vontade de potência de Nietzsche ou às pulsões de Freud, mas guarda sua originalidade por estar ligada diretamente ao processo biológico de evolução. De fato, desde o surgimento do universo, com aquilo que teorizamos como Big Bang ou qualquer outra hipótese concorrente, percebemos que a realidade se desdobra em um fluxo onde é indissociável a presença de energias. Segundo o pensamento de Bergson, toda essa movimentação vai construindo os tijolos que vão desembocar na vida como conhecemos, no lento processo que se iniciou, talvez, pelo desabrochar de aminoácidos no tempestuoso oceano primordial. O élan vital concentrava-se em ponto máximo naquele momento decisivo, de modo a se consubstanciar no ato criativo de se conseguir replicação contínua daqueles compostos orgânicos simples. Esse ímpeto é o motor do processo evolutivo.

E como isso funciona? Lembremos de que Bergson vê o tempo como durée, a duração que não se cronometra, porque as medidas não são significativas para a consciência, e sim da percepção que se tem dele. Ter o tempo como duração significa que esse fluxo impulsionado é a permanente transformação que se operacionaliza por onde encontrarmos esse fenômeno chamado vida. Então podemos deduzir que é intrínseca uma força que se oponha a qualquer tendência de estabilidade. Lembrem-se: Bergson é um antimecanicista e, sendo assim, princípios de inércia não fazem sentido onde houver uma consciência que lance seu olhar sobre o universo.

Entretanto, quando usamos as réguas da ciência, temos a tendência de observar o mundo fora do seu fluxo, como se fosse possível dividi-lo em compartimentos estanques, como se seu continuum fosse linear, e não é isso que vemos em nossas simples observações diárias. Há algo que escapa do racionalismo, mas que não é pura e simplesmente um instinto animal, que apreende de imediato a realidade ainda antes de que toda inteligência possa processá-la. Essa percepção rápida e sagaz é o que chamamos de intuição.

Não, a intuição de Bergson não é aquele palpite furado que damos na véspera do jogo, nem aquela namorada que apostamos que não dará certo com nosso filho. Na verdade, ela é uma contraposição ao pensamento kantiano de que é impossível se chegar ao Ser de qualquer coisa. Da mesma como Heidegger acharia um canal para o contato com o Ser, Bergson entende que a intuição é esse caminho por onde é possível se ter uma dimensão imediata da realidade, mais racional do que um mero instinto, e menos segregadora que a inteligência.

Uma ótima forma é dada por Bergson para perceber a intuição, e eu vou adaptá-la. Embora Alagoa seja uma cidade que esteja crescendo em seu potencial turístico, ainda é pouca gente que a conhece. Se eu, ao invés de colocar quinze fotos neste texto, colocar 150, 1500 ou 15000, se eu fizer um mapeamento completo dos endereços e logradouros, se eu fizer uma filmagem como aquelas dos vlogs de motociclistas, se eu documentar item por item da cidade, ainda assim não será possível substituir a apreensão direta de uma visita. Somente estando in loco temos a apreensão direta que é dada pela intuição, absorvemos o que a cidade é. As fotos e demais badulaques são uma demonstração de como a ciência coleta dados do mundo: sempre através de parcelas, de espacializações. A própria palavra “razão” já é perpassada pela ideia de divisão para que se compreenda o todo pelas partes, uma forma de dissecar a realidade em compartimentos. Já a intuição fornece a realidade como se ela caísse à nossa frente, quase como uma pedra caindo sobre nossa cabeça. A intuição é a percepção rápida e necessária a quem nós, humanos, fomos levamos pela evolução para que não tivéssemos meras reações instintivas quando defrontados com a realidade, mas que levássemos à nossa consciência um preâmbulo dos fenômenos. A intuição é o instinto da inteligência.

A diferença fundamental entre a inteligência e a intuição pode ser captada naquelas perguntas sem resposta. Lembro do programa provocações, apresentado pelo genial Antônio Abujamra, que sempre fazia a pergunta dupla no final da entrevista: o que é a vida? A sacada era genial porque passava a mensagem de que é impossível responder adequadamente. Isso se aplica a qualquer pergunta que tente resgatar a abstração: o que é o amor, o que é a coragem, o que é a beleza, o que é a virtude. São todas elas perguntas em que entendemos interiormente o que são, mas que não conseguimos traduzir em palavras, porque caímos na tentação cartesiana de segregar do objeto a sua definição, como se fosse possível dividir um do outro. É a intuição que tem a função intelectiva de fazê-lo, e, por essa razão, Bergson dizia que era através dela que se fazia possível confrontar as principais questões filosóficas.

A intuição surge no ser humano por conta do próprio processo evolutivo. Retomando o élan vital, as forças criativas da natureza fizeram com que o homem se distinguisse dos demais animais pela capacidade de raciocinar. Só que há um detalhe: esse homem ainda precisaria viver, e isso não seria possível se não houvesse o instinto, e não haveria uma conexão com o restante do meio se não fosse a apreensão imediata da intuição. Nela, o élan mantém toda a sua força criativa, porque é pela intuição que os humanos percebem e redesenham coisas novas. Um artesão de queijos não saberia perceber que seu processo poderia ser melhor se não intuísse isso.

E é por isso que conseguimos, nós humanos, chegar a resultados tão incríveis. A intuição não tem melhor lugar para se expressar do que na obra de arte, e é isso que temos à nossa frente quando nos deparamos com alimentos de tanto sabor e qualidade: a certeza de que alguém “sacou” que era possível obter maior prazer de coisas prosaicas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É na obra A Evolução Criadora que Bergson depôs todo seu esplendor filosófico, mas a questão da consciência sempre esteve embutida nas suas ideias. Por essa razão, recomendo a obra abaixo, de tiro curto, e que ajudará a compreender melhor seus princípios intelectuais.

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. São Paulo: Edipro, 2020.