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quinta-feira, 25 de abril de 2024

Navegações de cabotagem – O Museu da Imigração Italiana do Quiririm e os estrangeiros que habitam em nós (e que nem sempre nos fazem aprender)

(Quase todos nós somos oriundos indiretos de outros países. Isso nos ensina alguma coisa?)

“Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da minha garganta, anjo negro perturbando a transparência, traço opaco. Insondável. Figura do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica da nossa preguiça familiar, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação em marcha, nem o adversário imediato que é preciso eliminar para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face escondida da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se abismam o entendimento e a simpatia”.

Julia Kristeva

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São Paulo é terra com grande mistura de povos. Aqui tem absolutamente de tudo, mas é tanta gente junta que já não há divisões claras entre os bairros e suas preponderâncias étnicas. Certo: locais como a Liberdade ainda carregam nas tintas orientais, e a Vila Zelina ainda dá para ser chamada de bairro lituano, mas o fato é que são exceções honorabilíssimas. O tempo em que tínhamos uma Mooca dos italianos, uma Vila Maria dos portugueses ou um Sapopemba dos nordestinos já vai longe.

É assim em toda parte? Tende a ser, me parece. A população deve se tornar cada vez mais homogênea na sua mistura, e os bairros claramente ocupados por uma determinada etnia serão mais raros. Mas eles ainda existem, e também em Taubaté há um deles. É o Quiririm.

Este nome de origem indígena tem dois significados: o rio que brota da chuva e o lugar do silêncio, que, com alguma dose de poesia, podem ser costurados entre si. É um distrito destacado do centro urbano, na beira da rodovia que sobe a serra para Campos do Jordão e de onde se pode ver as extensas plantações de arroz que ficam no alagadiço formado no sopé da Serra da Mantiqueira. Em suas ruas estreitas, imperam as cantinas e trattorias, revelando a ascendência de seus moradores, italianos da imigração oficial para a substituição da mão de obra escrava na área cafeeira do Vale do Paraíba.

Logo na primeira vez que vim aqui, após forrar a pança em um dos estabelecimentos, vi a placa que falava sobre um museu dedicado à imigração italiana. Sendo eu também um oriundi, fui até lá fazer o quilo dopopranzo.

O museu foi constituído no casarão da família Indiani, que foi uma das mais prósperas da localidade. Construído em abril de 1903, tem em seus degraus a marca de sua inauguração.

Toda a pintura do prédio são mantenças dos originais executados por Basilio Indiani, um dos membros da primeira geração da família que habitou o lugar.

Seus cômodos foram divididos em espaços temáticos, que procuram dar conta de diferentes aspectos regionais e de como, de uma forma ou de outra, foram influenciados pela cultura italiana. Há um quarto e uma cozinha típicos do interior…

… uma sala de aula…

… o espaço esportivo…

… as manifestações folclóricas...


… e espaços expositivos transitórios.

O casarão é belíssimo, bem como sua vista. A parte externa permite observar o cuidado com o qual os muratori italianos tinham cuidados com detalhes e sutilezas.

Da varanda do alto, podemos ver o galpão que consiste no segundo compartimento deste museu, dedicado à vida rural do distrito.

Esta parte demonstra o Quiririm como região de várias olarias, centro de fornecimento para a expansão têxtil e ferroviária da cidade de Taubaté.

Em um lado, os meios de transporte em ordem histórica, partindo de uma caleça até chegar em um simpático Gordini.

Daí para frente, vem uma grande quantidade de máquinas agrícolas, até uma enorme colheitadeira, cada uma com sua utilização devidamente explicada por painéis.

Embora o termo "lugar de fala" seja usado erroneamente (leia sobre este interessante conceito sociológico aqui), digamos que eu o tenha quando o assunto é imigração italiana. É que eu faço parte dos descendentes daquela imensa leva que povoou o brasil entre os séculos XIX e XX, para substituir a mão de obra escrava e preencher os imensos claros populacionais, trazendo macarrões e tarantelas. Tenho gente de meu parentesco na mesma Mooca onde nasci, no Brás, no Bixiga e na Barra Funda, todos redutos clássicos, além do norte paranaense, também lá repleto de oriundi. Vou falar sobre minha árvore paterna. Sobre o lado materno, será em outra oportunidade, para não os cansar, meus raros leitores.

Meu avô, doravante nonno, veio da Itália fugido da guerra. Era tecelão de ofício, embora muito jovem. Convocado pelo duce para a trincheira, escapoliu no primeiro navio em que conseguiu se enfiar, um vapor sueco de nome Arno. Os italianos entraram contrafeitos na guerra, e sempre representaram o ponto fraco do Eixo. Portanto, a morte ou a prisão eram destinos muito reais aos soldados. O nonno veio aportar em Santos, e, misturando-se com as famílias que foi conhecendo pelo caminho, foi parar no interior de São Paulo, na lavoura de café, o ouro negro da época. Quando via os festivos conveses de novelas como Terra Nostra, o nonno dava upas semelhantes aos de cavalos. Foram mais de quarenta dias enfiados em um porão, em meio à carga indefinida e dividindo os poucos grãos com outros desgraçados e com os ratos, sem a menor higiene e com grandes chances de doenças, fazendo uma amostragem da seleção natural em um espaço de um salão. Vendo toda aquela alegria retratada falsamente na tela da tevê, já virava de costas com seus costumeiros maus bofes. Já a nonna, esta brasileira, teve uma história menos aventurosa. Seus pais vieram da Itália especificamente para os plantios, e foram se conhecer em uma dessas andanças infinitas pelas terras vermelhas.

O nonno era mezzadro, em uma espécie de sociedade de capital e trabalho onde havia um dono da terra e um lavrador, e o produto final era dividido em dois. Atenção: o que era dividido não era o lucro, mas o faturamento. Todo o encargo com a lavoura, incluindo compra de insumos, remuneração de mão-de-obra, uso de ferramentas, beneficiamento dos produtos e mais o que houvesse era suportado pelo meeiro trabalhador, enquanto ao capitalista não restava custos. Sabe o que isso significava? Que por não poucas vezes o lavrador ficava no prejuízo. Com isso, o nonno foi circulando pelo interior de São Paulo e do Paraná, e por este motivo cada um dos seus filhos nasceu em um lugar: Tupã, Osvaldo Cruz, Astorga, Dobrada, Monte Azul Paulista são algumas dessas cidades, nem lembro mais qual tio é de qual.

Esse modelo de vida cansa. Em um determinado momento, o vecchio juntou os trapos e os filhos e se mandou para São Paulo, tentar a sorte nas fábricas. Não tardou a conseguir um emprego de tessitore, experiente na área que era, e daí foi se tornar mais um dos milhões anônimos de sobrenome sonoro e elegante, mas que não significava muita coisa na fila do pão. Sim, os Matarazzo, Martinelli, Crespi, Scarpa e Ramenzoni eram poucos - os Ferrari, Rossi e Conti que povoavam os cortiços e melecavam as mãos de graxa não criaram impérios e fervilhavam como formigas em bairros operários.

O que se passa na cabeça de quem deixa sua terra para procurar outro canto para ficar? Manter-se como seu original ou adaptar-se por completo à sua nova realidade? Talvez seja lícito dizer que há casos e casos.

Certas imigrações se dão em caráter irrevogável. São aquelas em que não resta muita esperança de retorno. Nestes casos, aquele que vai a outro país tende a tentar mais rapidamente sua adaptação. Mas sempre é uma decisão difícil, dada a carga de incerteza que traz. Era o caso da nonna, não era o caso do nonno. Ela saiu, na pessoa de seus pais, da maneira possível, de maneira mais estruturada, com passagens compradas e destino certo, tudo ao contrário do futuro marido. É certo que, hoje em dia, é mais fácil de se pensar em ir ao exterior para conseguir uns cobres e voltar, já que não se pensa mais em passar um mês completo em um navio, mas algumas horas de voo. Quem vinha fare l’America até meados do século passado fazia tudo de caso pensado, fugindo da fome e não cogitando voltar para ela. 

Todas as vezes em que nos encontramos em uma terra que não é nossa, mesmo que seja dentro de nossa própria cidade, achamos que somos estrangeiros. Esse sentimento é, obviamente, exacerbado quando estamos de fato longe de nossa área de convívio, mas ocorre quando, por exemplo, trafego por um bairro onde há muita diferença entre mim e o status social daqueles que habitam naquela parte. Isso vale para qualquer lado: se eu estou nos jardins ou na periferia. É que ser estrangeiro é também uma metáfora. Na medida em que não nos adequamos a um determinado meio, achamo-nos, a nós mesmos, como “sapos de fora”. Dou o exemplo da minha patroa. Ela pertencia a um dos famosos grupos de zap da família, onde tratavam daquelas amenidades típicas: como vai, como está, feliz aniversário, amém. Chegou a época da eleição, e, com ela, um posicionamento geral que confrontava o dela própria. Sabemos como funciona a máquina de fake news e ódio quando colocada em movimento, e deu no deu. A patroa saiu do grupo e resiste até hoje em voltar a ele. Por outro lado, aproximou-se mais do grupo do prédio em que moramos, muito mais afeito às suas tendências políticas e ideológicas, por incrível que pareça. Não era estrangeira em nenhum dos dois, de fato. Mas sentiu-se como tal no primeiro, e tendente à fuga ou à expulsão, como acontece quando certas etnias imigram para países pouco afeitos à sua presença.

Isso demonstra que o pertencimento não uma coisa meramente telúrica, como gostariam que fosse os nacionalistas, mas algo que está na própria psique das pessoas, tão moldada a um sistema de usos e costumes que as lapida. Entretanto, conforme observa a filósofa franco-búlgara Julia Kristeva, temos uma relação dupla com o estrangeiro. Ao mesmo tempo que os admiramos por não serem os mesmos que nós, que se entregam ao desconhecido e carregam particularidades que fogem do nosso prosaico dia-a-dia, por outro os tememos, exatamente no mesmo condão: são diferentes de nós, sabem de coisas que não sabemos, trazem uma forma de conhecimento que não está entre nosso meio. Somos estrangeiros para nós mesmos, conforme diz o título de sua obra, porque temos um olhar dividido. Nós reconhecemos os estrangeiros que habitam em nós, porque sempre temos algum tipo de desajuste com as nossas comunidades. É que o ser humano moderno, banhado de seu individualismo, não tem como se achar membro de uma comunidade, como faziam os antigos iluministas do século XIX ou totalitaristas do século XX. Por esse motivo, toda reação contra o estrangeiro é estranha, porque todos somos estrangeiros. Mas há momentos em que uma ou outra visão preponderam, e problemas podem acontecer.

A reação em forma dúbia que temos com os estrangeiros prossegue como uma demonstração de nossos preconceitos. Não nos incomodamos quando quem vem é mais ou menos do mesmo substrato que nos compõe, mas reagimos pesadamente quando a etnia vindoura bate com o alvo do que não gostamos, mesmo que veladamente. Sejamos francos… Incomodam-nos haitianos, bolivianos, nigerianos. Portugueses e eslavos são muito mais bem vindos. Já os anteriores, quando chegam contingentes um pouco maiores, sempre dizemos que já não há emprego para quem aqui está, que fará para quem chega. Não gostamos de grandes levas de estrangeiros que chegam ao país, mesmo sendo o Brasil composto essencialmente da mistura que falei acima. E isso se espalha mais e mais pelo mundo todo. 

É uma visão daquele que acha que uma casa terá que ser dividida com mais pessoas, e não que novas casas serão construídas. O discurso é fácil porque é mal pensado, meramente intuitivo e cheio de ideias empacotadas, que se contrapõe ao que elas deveriam carregar de melhor: uma nação dita religiosa deveria se gabar de sua misericórdia, e não de seus preconceitos.

É contraditório, mas é real. Conhecer um pouco de nosso passado pode ajudar a refletir melhor e tirar esse ranço ao novo, marca do reacionarismo. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Primeiro, o livro que mencionei no decorrer do texto, meio complicadinho de ler, mas que traz uma visão bastante inédita.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.


Depois, o endereço do museu em questão, muito bom de ser visitado com a pança cheia:

Museu da Imigração Italiana de Quiririm "José Indiani" e Museu da Agricultura

Av. Líbero Indiani, 550

Quiririm

Taubaté/SP

A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Navegações de cabotagem – O Memorial Padre Léo de Lorena e as tentativas de reforçar a fé através dos argumentos filosóficos

(A fé deveria subsistir por si mesma, mas volta e meia ela precisa de reforços)

“...nada acontece sem uma razão suficiente; isto é, que nada ocorre sem que seja possível, para aquele que conhece as coisas muito bem, fornecer uma razão suficiente para a determinação do porquê as coisas serem assim e não de outra maneira. Dado esse princípio, a primeira questão que colocamos é: por que há alguma coisa em vez do nada? Afinal, o nada é mais simples e fácil do que alguma coisa”.

Leibniz

Olá!

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O Vale do Paraíba, muito mais que um acidente geográfico, é um autêntico manancial de História, com o perdão do trocadilho. Para quem vê desavisadamente, pode parecer a ponte que liga os dois polos da megalópole Rio-São Paulo, mas essa impressão oculta todo o tamanho da cultura que se espalha por esse espaço entre a Serra do Mar e a Mantiqueira, que inclui gastronomia, arquitetura, tropeirismo, ofícios da terra e da fábrica, histórias contadas e religiosidade, muita religiosidade em seus caminhos. É aqui que temos a basílica de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, a sede do movimento Canção Nova, o Santuário das Duas Cabeças e o Santuário da Rosa Mística, somente para citar alguns. Mas há mais.

Em uma tarde de domingo, fui até a cidade de Lorena, distante poucos quilômetros da Taubaté onde mora a filha mais nova. Ela teve fé demais na meteorologia e confiou em uma blusa de lã, para um sol que viria a passar dos trinta graus em poucas horas. A solução, nestes casos, é saber se há algum shopping nas proximidades, porque o comércio dominical abre poucas coisas. Ele há, e fica próximo à Dutra, e foi fácil resolver o problema da camiseta e do almoço. Com o sol pinado, fui até o fundo do estacionamento para tentar achar alguma sombra, que encontrei próximo a uma construção inesperada, muito parecida com uma igreja. Parecida não; é uma igreja… uma igreja em um shopping, é novidade para mim. Mas a questão era o que havia atrás dela: um memorial, dedicado ao Padre Léo, que eu não conhecia ainda. Vamos lá então.

Em primeiro lugar, é preciso dar alguns elementos biográficos e contextuais para se entender que é o Padre Léo. O advento da Renovação Carismática é um movimento que incorporou elementos do protestantismo pentecostal, como cantos emocionais, entoados em primeira pessoa, manifestações do Espírito Santo, uso de depoimentos chamados de testemunhos e outros elementos que transformaram o cerimonial católico mais rebuscado em uma versão mais performática, com ampla participação da assembleia. À parte disso, tem um fundo moral mais conservador do que, por exemplo, aquele das igrejas saídas do Concílio Vaticano II e da Celam de Medellin, menos ligadas aos ritos e mais engajadas socialmente. Nesse contexto, os carismáticos são midiáticos, e começaram, cada vez mais, a ter seus padres pop star, inclusive se tornando fenômenos da cultura popular, como o Padre Marcelo, Padre Zeca e outros. Padre Léo surge nesse meio, sendo considerado uma espécie de comediante de stand up, dado o uso de “causos” e criação de histórias humorísticas para ministrar conteúdo moral, o que o tornou muito querido pela sua comunidade.


A igreja do estacionamento do shopping é a Capela do Sagrado Coração de Jesus, pertencente à Comunidade Bethânia, que foi fundada pelo próprio Padre Léo para tratar de dependentes químicos.

O memorial dedicado ao padre fica logo atrás, em um pequeno anexo que contém muitos dos seus objetos pessoais, de uso no ofício e de seus pensamentos em geral.

O padre teve participações em um programa de televisão, e a curiosidade é que há uma recordação deste fato, que era feito simulando uma beira de fogão à lenha, algo muito típico do interior e que remetia à sua metodologia de ensinar. Lá, ele interagia com um boneco que servia de escada para ele introduzir sua temática religiosa. 

Padre Léo teve a vida curta, morrendo em 2007, aos 45 anos, vítima de um câncer no sistema linfático. Ele colocou o tema abertamente em suas pregações, como uma forma de alimentar a fé de quem se encontrava em situações semelhantes de desesperança. Mesmo já bastante debilitado, ainda participava o quanto podia de celebrações e eventos.

Após sua morte, imediatamente se iniciou um processo de beatificação, que é um dos passos para que uma pessoa entre no cânon dos santos da Igreja Católica, o que levou a uma valorização de suas relíquias, e que desembocou na criação do memorial que visito agora.

Todo processo de inscrição de um santo no Catolicismo é longo e cheio de nuances, Primeiro, há um pedido formal para que alguém se torne elegível à bem-aventurança; ocorrido algum milagre, vai-se à beatificação. Depois, com o correr do processo e mais outro milagre, poderemos ter a canonização, e o novo santo vai aos altares, embora a atual Igreja Católica mire seu olhar mais para a vida do candidato do que propriamente a feitos sobrenaturais. Aqui temos a urna que continha os restos mortais do Padre Léo, que foi trasladada durante seu processo de reconhecimento. Isso ocorreu porque o padre estava enterrado em sua terra natal, Minas Gerais, mas a beatificação começou pela Comunidade Bethânia, que fica em Santa Catarina.

Vidas religiosas podem ser admiráveis até por incréus, quando sua ação foge ao mero espectro das liturgias e teologias, e vazam para o terreno social. O exemplo de São Francisco é sempre facílimo de lembrar, mas há sempre casos mais recentes como os de Chico Xavier, dom Paulo Arns, dom Pedro Casaldáliga, irmã Dulce e tantos outros. São pessoas que escolhem doar a vida para uma causa, e isso transcende a fé que defendem.

Mesmo nos meus tempos de religioso, eu tinha muitas restrições práticas ao ponto onde eu acreditava que poderia chegar. Essa dose de heroísmo a que certas pessoas se dão não fazia minha cabeça, e eu sabia que não teria coragem, por exemplo, de encarar um martírio para abnegar minha fé, nem em sonhos, como tantos fizeram. Talvez, parafraseando os testemunhos de conversão, lá no fundo, no fundo eu já soubesse que não acreditava em nada, apenas não deixava aflorar isso em minha consciência por alguma espécie de medo da desconversão.

A questão deus é complexa. Embora seja o sonho da humanidade ter uma entidade que lhe guarde e dê expectativa de dias melhores, o fato é que, estamos assentes, não há como colocar uma divindade em um tubo de ensaio, como li em algum lugar. As próprias características que se lhe dão o excluem do campo da prova, e, ato contínuo, do âmbito científico. Coisas como onipotência, eternidade temporal, infinitude espacial e outros penduricalhos inviabilizam a investigação, e resta a fé, o que, aliás, é defendido por muitos religiosos: deus não precisa estar nos observatórios, mas nas igrejas. Tentar elaborar deus como um artigo científico é afastar-se da essência dele.

Resta só a fé? Não, há também a filosofia, e, por ela, há alguns argumentos que tentam provar deus pela via lógica, sem levar em conta a materialidade necessária para a ciência. Sendo assim, sempre que se tenta falar em provas da existência de deus, é por essas sendas que se corre.

Via de regra, esses argumentos fazem uma regressão de causa e efeito até o ponto em que não há mais como retroceder sem que exista um causador sem causa. É uma hipótese que vem desde Aristóteles e seu primeiro motor imóvel, sendo que nosso amigo estagirita não arriscava uma divindade específica para nomeá-lo, ao contrário de são Tomás de Aquino, que já cravou o seu Deus cristão para a tarefa, utilizando o mesmíssimo argumento.

A coisa é mais ou menos assim: tudo o que existe tem uma causa que lhe deu origem. Um fruto era uma flor, que era um botão, que era uma semente, que veio de outro fruto, que era outra flor, e assim por diante, em um processo de regressão infinita. Entretanto, entende-se que a cadeia de causas e consequências teve um começo, uma causa incausada, o kinoumenon kinei, com os atributos de ser substância imaterial, indivisível, eterno, uniforme, essas coisas todas. Como se pode perceber, esse conjunto de características é imediatamente aderente ao conceito de um deus, sempre igual a si mesmo, que não depende de nada mais do que si para se justificar, e assim vai. Embora seja possível contestar esses arrazoados, o certo é que eles são poderosos, porque fornecem lógica a uma cadeia de fenômenos que são quase todos bastante intuitivos, e onde se encaixa perfeitamente, no começo, o deus que se quiser.

Só que tem uma coisa. Por mais bem engendrado que seja o argumento, ele continua sendo uma hipótese, e não uma prova. Sendo assim, contestações podem ser abundantes, e de fato as são. Por conta disso, o tal argumento cosmológico sempre foi recebendo melhorias, de modo a trazer mais premissas e tentando fortalecer a conclusão. O principal problema é que normalmente ela segue uma rota de petitio principii, ou seja, a resposta já está dada; o que falta é construir as questões de forma a se conduzir para ela.

Leibniz, já no século XVIII, sintetizou uma forma desse argumento em um silogismo e adicionou a questão da contingência para reforçá-lo. Segundo ele, era preciso dar uma resposta à grundfrage, a pergunta fundamental ao redor da qual toda a filosofia girava: por que há algo, ao invés de nada?

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que este nada a que Leibniz se refere não se trata de um grande vácuo, de um imenso vazio onde não há planetas, estrelas ou qualquer outra matéria, onde, no entanto, existe um espaço, mas um nada ontológico, onde não houvesse nem tempo, nem espaço, nem coisa alguma que pudesse ser pensada: o absoluto não-ser.

Para formular sua hipótese, Leibniz lança mão de um antigo princípio que usa um encadeamento lógico semelhante à regressão infinita: a razão suficiente. Este princípio diz que existe uma relação necessária entre um fato e outro, que é de uma determinada maneira e não poderia ser de outra. Se há algo, existe uma razão suficiente que lhe deu causa, que lhe moldou na origem e que justifica não só sua existência, mas que ele seja como é.

E qual seria essa razão? Diz Leibniz que ela não poderia partir de uma causa contingente. De uma causa o que?

Contingências são todas as coisas que são de uma determinada forma, mas poderiam ser de outra. Estou aqui em frente à minha xícara de café, mas poderia ser de infinitas outras maneiras: poderia ser chá, leite (eca), chocolate, água, suco, pinga ou nada. Entretanto, o encadeamento de uma série de fatos e fenômenos levou a ser o que é, e, dados todos eles, não seria de forma diferente. O café está contingentemente na minha frente por causa de uma razão suficiente moldada por todo esse conjunto de circunstâncias. Por outro lado, necessário é tudo aquilo que é da forma que é, e não poderia ser de outra forma. Eu coloco no meu caderninho a expressão 2+2, e procuro, de alguma forma, respondê-la diferentemente de 4. Como uma criança, junto duas pedrinhas brancas e duas pedrinhas marrons, duas laranjas e dois abacates, duas galinhas e dois gatos, duas cadeiras à direita e duas cadeiras à esquerda, duas telhas em cima e dois tijolos embaixo, e o resultado é sempre o mesmo: quatro elementos. Temos aqui uma relação de necessidade: dois mais dois é igual a quatro em qualquer circunstância.

Ok. Se o universo não pode partir de uma causa contingente, precisa partir de uma causa necessária. Leibniz retira essa causa da matéria, porque cairíamos em um princípio de regressão infinita e bateríamos na mesma parede de Aristóteles. A matéria, por si só, é inerte, e só se põe em movimento quando há uma causa para isso. Por isso, a matéria não se explica sozinha. Há de existir uma causa necessária fora da cadeia das contingências, e, para isso, essa causa precisa ser bastante em si mesma, conteúdo de toda perfeição, onipotente, onisciente, cuja existência de tudo deriva de sua própria perfeição. Conhecem algum ser que possui esses atributos?

Resumindo, o argumento contingencial de Leibniz é o seguinte: se há algo, é porque há uma razão suficiente para tanto. Essa razão não pode ser contingencial, haja vista que somente uma causa necessária basta em si mesma. A necessidade implica em perfeição e outros atributos inamovíveis, que só podem pertencer a deus.

O grande problema deste modelo de explicação reside no salto lógico que é imputar para um deus determinado a causa necessária. Quando a ciência fala em Big Bang ou coisas semelhantes, para por aí porque não há como especular o que vem antes. O grande círculo que é a imensa expansão universal até um certo limite, para depois voltar a encolher e se concentrar em um mesmo ponto, onde o mesmo fenômeno de expansão se dará novamente, e novamente, e novamente não explica o que colocou aquele ponto incrivelmente concentrado a se mover pela primeira vez. O que faz a ciência? Coloca um ponto final na sua tarefa, até que seja possível novamente aferir o que está na relação de causa e consequência. É incômodo, mas é aceito.

Colocar a causa incausada como princípio de todo o universo é um by-pass lógico, porque responde a tudo sem responder a nada. Isso porque a cadeia de questões continua. Consideremos que, de fato, tenhamos uma divindade que lá em um ponto inespecífico do tempo e do espaço criou o universo. A quantidade de perguntas que surgem daí são ainda maiores do que as materiais: qual divindade é essa? Se é perfeita e basta a si mesma, para que criou o universo? E se não é, não é ela mesma contingente? Não poderia ter sido ela também criada? Neste último ponto, não pode ser o universo divinizado e ele mesmo ser a causa incausada? Ainda: deus é mesmo a única causa necessária por excelência? Não há mais espelho nos entes matemáticos (o 2+2 que citei) do que em uma certa divindade? Ao menos, os números traduzem o universo. São tantas as perguntas possíveis que acabam por transformar a hipótese de Leibniz mais uma entre outras.

Há algo de errado em se especular o que viria antes de todos os movimentos? Não, absolutamente nada, porque é disso que se alimenta a filosofia. A grande intercorrência está em chamar isso de prova. Isso não é prova. É, no máximo, um argumento engenhoso, que pode ser verdadeiro ou não, e que, com isso, vai cair no que acreditamos, e não no que sabemos. Especificamente, é por isso que se presta a alimentar a fé, e não o conhecimento. Bons ventos a todos!

Recomendações:

O escrito de Leibniz que contém seu argumento cosmológico está na seguinte coletânea:

LEIBNIZ, Gottfried. Princípios da Natureza e da Graça. In: A Monadologia e Outros Textos. São Paulo: Hedra, 2009.


O memorial do Padre Leo, como eu disse fica dentro de um shopping, o Eco Valle, e segue o seu endereço:

Centro Cultural Memorial Padre Léo

Estacionamento do Shopping Eco Valle

Rodovia Presidente Dutra, Km 53

Jardim Novo Horizonte

Lorena/SP

A aproximadamente 198 Km do centro de São Paulo

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Navegações de cabotagem – O Memorial Ucraniano de Curitiba e a questão da justiça na guerra

(A guerra é uma constante na história da humanidade – será que algum dia nós ficamos em paz? A dúvida é se existe alguma que seja justa)

Si vis pacem, para bellum

Provérbio latino

Olá!

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Curitiba é conhecida como a Seattle brasileira. Acho um pouco de exagero, mas a posição geográfica faz com que, de fato, tenhamos um clima de ameno para baixo combinado com muita nebulosidade. No entanto, o que eu percebo é uma média geral de dois graus a menos do que em São Paulo e pouca coisa a mais de diferente. O que muda bastante é a maneira que fazem remissões aos antepassados e povos que construíram a cidade como ela é. É bem verdade que não há grandes referências a negros e indígenas, mas esse é um problema do Brasil, não do Paraná. Com relação às demais etnias, sempre tem alguma coisa para se ver e se conhecer, como é o caso do Memorial Ucraniano, que fica dentro do Parque Tingui. Vamos falar um pouco sobre ele.

O Memorial da Imigração Ucraniana nos conta um pouco sobre uma nação que está encravada na região do Leste Europeu, um grupo de imigrantes que é bem mais comum em Curitiba do que em São Paulo, por exemplo. Vieram para cá fugidos da guerra e trazendo suas culturas e tradições. O corpo principal é composto pela Igreja de São Miguel Arcanjo, reprodução de uma das primeiras igrejas ortodoxas construídas no Brasil.

Ela é toda construída em madeira de lei e tem cúpula de metal, reproduzindo o estilo bizantino tão típico da ortodoxia cristã.

O mesmo pode se dizer do seu interior. Os ícones bizantinos são dos mais identificáveis de toda a arte, baseados na pintura a têmpera e repleto de figuras alongadas e cores douradas.

Algumas merecem cuidados especiais, caso do quadro do Senhor Mestre, que está anteparada por uma bela moldura e por cortinas, dado seus valores artístico, religioso e histórico.

Ainda no interior da igreja, uma mostra de objetos mais profanos: as pêssankas, ovos enfeitados por pintura de cera que é comum nos países eslavos.


As pêssankas são muito mais próximas da tradição dos ovos de páscoa do que propriamente a religiosidade cristã, que, na verdade, apropriou-se de seu sentido: a chegada da renovação da vida através da primavera. Há um monumento em forma de pêssanka do lado de fora, apontando para os quatro pontos cardeais e referindo-se, a cada face, a uma das estações do ano, ao que me parece.


Do lado oposto, logo na entrada, há uma casa em estilo típico ucraniano, construída em madeira e ladeada por uma cruz de pedra. Nela é que está a loja de souvenires e de guloseimas.

As principais são delícias de nomes difíceis, feitas com bastante açúcar e manteiga. Também há artesanato e badulaques em geral, sempre com motivos típicos ucranianos.

Estando, como sabido, em guerra contra a Rússia, os descendentes de ucranianos se posicionam e deixam isso claro no memorial.


Algumas guerras começam com motivadores claros, e parecem o desfecho inevitável para posições que se movem como placas tectônicas. O choque é infalível e o impacto é sempre de grande vulto. Entretanto, outros conflitos são mais difíceis de se compreender. Este é o caso da atual guerra entre Rússia e Ucrânia. O motivador direto é o de sempre: o pequenino faz algo que o grandão não quer, o grandão ameaça o pequenino, que manda o grandão vir para cima e o pau fecha. Só que as coisas não são exatamente como uma briga de quinta série, e há bem mais coisas para serem elucidadas. No caso, há um componente histórico que faz recrudescer os ânimos. É que entre ambos os povos existe um ranço muito grande, semelhante entre o que há entre turcos e armênios (leia mais aqui), que recebeu o nome de Holodomor, que, em ucraniano, quer dizer e algo como "morte pela fome".

Bom… não há como começar a falar sem dar um contexto geral do que foi o Holodomor, fenômeno complexo que é tido não somente como um genocídio, mas como modelo canônico do fracasso das coletivizações forçadas na antiga União Soviética. Vou tentar ser rápido, mas sem promessas. Não vou usar fontes radicalizadas para nenhum dos lados - nem História Pública, nem Brasil Paralelo são imparciais o suficiente para trazer informações suficientemente neutras.

A União Soviética foi uma congregação de países que orbitavam ao redor da Rússia, o país mais poderoso da federação, e surgiu com a proposta de um novo regime político, o comunismo. Em linhas generalíssimas, o comunismo versava sobre a propriedade coletiva dos meios de produção, o que, em tese, seria feito por um governo central que traduziria os anseios e necessidades de uma determinada camada da população. As coletivizações forçadas passaram a fazer parte da pauta stalinista a partir de 1929, e tinha como objetivo declarado melhorar a distribuição de alimentos por todo o país.

Nos inícios do século XX, embora houvesse um processo de industrialização em andamento, as repúblicas soviéticas baseavam suas economias na produção agrícola. A Ucrânia, em especial, era (e ainda é) uma espécie de celeiro, com uma produção de trigo vastíssima, e ainda com larga produção de batata e beterraba. Com autossuficiência, houve muita resistência às coletivizações forçadas, mas elas vieram e abasteciam toda a União Soviética. Nos momentos em que havia escassez nas demais repúblicas, o que era produzido na Ucrânia se tornava insuficiente até mesmo para eles. Entretanto, a política central não poupava os produtores e obrigava a entrega das safras, ainda que a custo de fome. 

Embora a centralidade das decisões fosse basilar nesse modelo de governo, o fato é que a União Soviética abarcava um território gigantesco formado pelas mais diversas etnias, com culturas e interesses dissonantes e, por vezes, antagônicos. Os ucranianos viviam em um país próspero e fértil, pouco disposto a abrir mão de sua autonomia, o que acabou lhes trazendo problemas com o vizinho mais poderoso, que, ao usar seus produtos agrícolas, poderia obter divisas para tocar seu programa de industrialização.

As coisas forçadas não terminam bem. Os ucranianos não entregavam sua produção de bom grado, principalmente porque o retorno não vinha de forma compensadora. Com isso, o governo central soviético impôs restrições cada vez maiores ao povo da região. E o resultado foi fome. Uma fome avassaladora em um país fértil, que levou um número gigantesco de pessoas para a morte. Os números variam muito, mas, ainda que na estimativa mínima, é facilmente caracterizável como um genocídio, com cerca de dois milhões de mortos, mas há estimativas que ultrapassam os 12 milhões. Como era a república hegemônica da União Soviética, coube à Rússia a maior parte do peso das acusações.

Hoje, novamente Ucrânia e Rússia se põe em conflito. Quando fiz os registros das fotos, o confronto estava recém-iniciado, e cheguei a pensar que não daria tempo de escrever a respeito sem a perda do timing. Hoje, muita coisa já passou embaixo dessa belicosa ponte, e o confronto continua, sem resolução. 

Certos conflitos são difíceis de entender, eu já disse. É pouco crível que haveria necessidade de invasões da Rússia na Ucrânia pelo simples motivo da sua aproximação com a Otan. A Rússia é um país poderoso, que quase coloca em prática a disposição latina do “se quer paz, prepare-se para a guerra”, que menciono na epígrafe. Então há mais coisas por trás do discurso oficial, talvez até mesmo uma forma de manutenção do poder. Mas a pergunta que fica é quando faz sentido as guerras entre as nações, e se de alguma forma podemos considerar que tanto sacrifício dos povos se justifiquem. Vamos buscar uma resposta na Idade Média, para concordar ou não. E vamos procurá-la na Escolástica.

Ora (direis), justamente no meio cristão, que, por dizer se guiar por uma mensagem divina, deveria se abster das guerras e outras violências? Justamente por isso, meu imaginário interlocutor. Se há motivos para defender guerras nesse meio, é algo digno de se refletir filosoficamente.

São Tomás de Aquino entende que a humanidade possui a capacidade de conhecer racionalmente, mas isso possui limites. Embora a ordem natural das coisas coloque Deus como o bem supremo, não consegue o homem atingir a visão beatífica necessária para suplantar suas vontades terrenas. Sendo assim, seu acesso ao conhecimento se dá em atos e objetos que não são divinos, e é aí que cabem suas escolhas, seu livre-arbítrio. Neste sentido, São Tomás adere à visão agostiniana de que o mal é a ausência do bem. Assumindo que é dada a capacidade de fazer as distinções naturalmente do que é ético e do que não é, em um processo chamado de sindérese, é possível supor que é livremente que um ser humano se encaminha para o bem ou para sua ausência. E o que isso tem a ver com nosso tema?

São Tomás entende que há quatro noções fundamentais que regem o funcionamento do universo, a quem dá o nome de “leis”. A Lex Divina é, dentre elas, aquela que depende mais da fé, e menos da razão. Portanto, não dirá respeito para o que quero tratar aqui. A Lex Aeterna representa a maneira racional como Deus estruturou todo o universo, que lhe dá funcionamento e explica tudo aquilo que vemos fenomenicamente. Há uma parte dela, chamada de Lex Naturalis, que é perceptível pelo ser humano através de sua racionalidade. Sua máxima mais definidora é a que fundamenta a necessidade de fazer o bem e repelir o mal. Esse é o mote ético para o ser humano.

A lei natural deveria ser suficiente para regular as relações humanas. Entretanto, é preciso levar em conta que direitos legítimos podem ser colocados em confronto mesmo que seguindo a máxima ética que ela propõe. Para dirimir esses conflitos legítimos, é preciso que as regras humanas sejam baixadas em escrito, como fazemos hoje no Direito Positivo. São as soluções de consenso definidas pela própria comunidade ou por aqueles a quem lhes é dado o cuidado, os governantes. É a chamada Lex Humana.

Se partirmos da premissa de que a lei humana deve derivar da lei natural, ou seja, seguir seus mesmos princípios e natureza, devemos supor que a máxima que impera sobre a lex naturalis deve imperar sobre o direito positivo, dando lhe guia e sentido. E isso significa dizer que seu objetivo é demover o homem da prática do mal. Em um ser cujo propósito é viver em sociedade, aqui está a sua pedra de toque: proporcionar regramento justo e tendente ao cumprimento do mandamus divino. A fixação das leis de caráter humano, a rigor, não seria de fato necessária, não fosse a presença do vício entre os homens, e isso leva à necessidade da sistematização de códigos e normas. Desta forma, teríamos a garantia de que, mesmo movidos por algum sentimento divergente, a lex naturalis seria seguida de forma indubitável.

Só que estamos carecas de saber que nem sempre isso acontece, muito pelo contrário. Não só a lex humana representa sempre uma equivalência à lex naturalis, como também mesmo essa é frequentemente quebrada. Em ambos os casos, encontram-se as explosões de violência e a ausência do bem. In extremis, encontramos a guerra.

Notem que a necessidade de leis escritas se deve à regulação das comunidades. Quando elas chegam no ponto dos tratados internacionais, é onde podemos encontrar as maiores discrepâncias, tendo em vista que não somente teremos as diferenças das fronteiras, mas do interesse de grandes massas populacionais. Nos termos do que vimos até agora, não deveria ser diferente: a guia é a lei natural. Mas aqui, os desfechos são mais gravosos: o potencial ofensivo de um indivíduo contra outro não tem medida de comparação com o que pode um povo contra outro.

E então? Temos um paradoxo aqui? Como lidar com a questão da guerra? Apanhar em um rosto e dar o outro?

Para São Tomás, não. Há medidas em que a guerra é justa e pode ser praticada, pautadas, racionalmente, sobre três acentos: intenção correta, autoridade do soberano e, especialmente, causa justa.

Uma intenção correta é simples: toda guerra já deve iniciar com o intento de terminar, ou seja, já se deve ir a combate com a intenção primordial de se restabelecer a paz. Isso garante que a luta não se seguirá para além de seu objetivo racional. Não pode receber esse qualificativo uma guerra que pretenda dizimar um povo, dominar seu território ou lhe roubar toda a sua riqueza.

Com relação à autoridade do príncipe, não se trata de um mero reconhecimento hierárquico, mas da necessidade de que tal decisão seja tomada por aquele que representa aquela nação, e não por uma pessoa qualquer que se indisponha com um país em beligerância. Hoje, com os conceitos democráticos em prática*, pode parecer estranho que se dirija a um soberano tal decisão, mas São Tomás vive em um tempo em que ainda se cria que o governante era um escolhido de Deus e, portanto, representante legítimo de um país.

Por fim, a causa justa é o principal norte a ser seguido. O primeiro é que não se lute por um motivo vão, mas que encontre mais benefício em ser guerrear do que deixar que se prossiga um determinado estado de coisas. Outra questão é que as motivações não podem ser pessoais do soberano, em busca de vantagens para si ou para outrem que lhe convenham, mas com vistas à população da qual é representante. A causa justa é, prioritariamente, uma predisposição moral, onde se constata que há mais mal em não guerrear do que pegar em armas.

No fim, a pauta cristã, em tese, deveria sempre buscar a preservação da vida. Isso se aplica à guerra, de forma que, por vezes, ela seria o exato caminho que ajudaria nessa preservação. Não se deve guerrear preventivamente, mas defensivamente. Prevenir, nesse sentido, significa tentar adivinhar o futuro, o que não é dado aos seres humanos. Entretanto, mesmo a defesa deve ser racional. Não adianta se arvorar em exército de Brancaleone e se lançar em defesas suicidas, quando é evidente que não há esse tipo de possibilidade. Nesse caso, fazer o que, o melhor é se entregar.

A Ucrânia, se formos olhar sobre o prisma da São Tomás, parece combater a guerra justa, já que se defende de um inimigo que insiste em não revogar a História e manter o espírito belicoso. Isso é o que se percebe por esse ângulo. Entretanto, há perigos. A bandeira com o símbolo tridentino não prenuncia que estejamos diante de santos que estão sendo alvejados inocentemente, porque, embora os diplomatas ucranianos expliquem que se trata de um símbolo nacional que vem dos tempos passados, há uma apropriação da sua simbologia por uma camada radical dos políticos do país, e isso é algo a ser tratado com muito cuidado.

Por fim, é importante que haja manifestações, para que possamos lembram que a guerra é fundamentalmente composta de horror e desrespeito a direitos. Para além disso, o lugar é bonito à beça e merece visitas que vão além do aspecto político, mas sem esquecê-lo, jamais. Bons ventos a todos, especialmente para os lados dos bálcãs.

Recomendações:

Vou relembrar da principal obra de São Tomás de Aquino:

AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica. 9 volumes. São Paulo: Loyola, 2006.

E também repasso o endereço do Memorial, que fica dentro do Parque Tingui e fica em um bairro muito bonito de Curitiba:

Memorial Ucrianiano

Av. Fredolin Wolf, 1870 (dentro do Parque Tingui

Pilarzinho

Curitiba/PR

A aproximadamente 420 Km do centro de São Paulo

 

*Apesar das ondas autoritárias que temos vivido ultimamente, não dá para dizer que é a mesma coisa que um mundo onde o padrão - quando não a totalidade - eram regimes de autocracia. Se a participação popular ainda hoje pode ser relativizada, o fato é que ela se limitava a ser bucha de canhão na Idade Média.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 8º episódio: O distrito de Formoso e as diferenças de impressões que nos convencem da impossibilidade da verdade

(Depois de muito tempo, levo ao papel uma discussão que é a base da epistemologia contemporânea)

Onde basearia a experiência a sua certeza se todas as regras que empregasse fossem sempre empíricas e contingentes?

Kant

Olá!

Clique aqui para ler as outras folhas do diário de bordo

Já se vão dez anos. Esse é um tempo suficiente para tanta coisa que nem parece possível o quanto tudo mudou. Eu revejo as fotos daquele momento e constato que o que há de imediato é o quanto meu queixo ficou branco, populado por pelos que foram progressivamente declinando do castanho escuro, passando por um elegante arruivado, indo para um amarelo-fumante e parando agora na dignidade das cãs alvas. Ora (direis), raspe essa barba denunciadora, tão simples. Mas aí são três fatores: não me incomodo com os efeitos da idade, estou acostumadíssimo à barba e meu queixo tem um furo que me incomoda. Feio por feio, fica como está, porque demanda menos cuidado (vide aqui), quarto fator para a manutenção, não enumerado acima.

Eu vou falar sobre o distrito de Formoso, mas não fui para lá há pouco. Faz quase que exatamente dez anos, e até mesmo dei uma pincelada sobre ele no texto que fiz sobre São José do Barreiro, sua sede. E por que tanto tempo depois? Sei lá, sabe? Eu tive uma propensão em fazê-lo a princípio, mas julguei que destacar uma postagem exclusiva para um distrito fugia um pouco do meu escopo. Aí vem o fluxo do tempo e redijo textos para Catuçaba, Luís Carlos, São Francisco Xavier, Monte Verde, Águas de Contendas e, bem recentemente, Vale do Bom Jardim e Jaguary de Cima, derrubando minha tese no chão. Meu princípio padrão não pode ser uma municipalidade, mas uma inspiração, e o fato é que ela existia em Formoso. Por isso, o vírus que me incomoda com a sensação de incompletude ficou me corroendo por todo esse tempo, e eu resolvi soltar a coruja. Vamos até lá.

Fazendo um remember rápido, estamos no Vale Histórico, uma região que acabou ficando bem preservada em sua parte natural por conta de seu declínio econômico, originado da absurda discrepância entre as bitolas de suas linhas férreas e a da Central do Brasil, como bem expliquei neste post. Houve a vantagem de manter um local lindo, cheio de natureza original, com várias trilhas, dentre as quais, as da Serra do Formoso.

É por lá que os rios da região formam os pequenos espetáculos que são as cachoeiras de água gelada, algumas delas embrenhadas na mata e protegidas da insolação. São lugares que conseguimos observar ainda flora e fauna distantes das grandes cidades.

O distrito em si é um lugarejo com pouco mais de trezentos habitantes. Tudo o que puder ser pensado de estereótipos da pequena cidade do interior pode ser aplicado a esta localidade: a praça central…

…a igreja do padroeiro (neste caso, temos uma capela dedicada a São José e outra que mostro daqui a pouco)...

… e o coreto, que, neste caso, tem um formato menos convencional, assemelhado mais a um palanque do que a um palco circular tão típico.

É uma região que, dentro dos parâmetros brasileiros, já é algo antiga, razão pela qual é possível usar o chavão da viagem no tempo. O casario baixo, muitos feitos em abobe ou taipa de pilão guardam a velha arquitetura das paredes sólidas e das janelas com a ventana para dentro.

Como eu já disse, o bairro está em uma região acidentada, repleta de subidas e descidas por toda parte. No topo de um dos morros, fica instalada outra igreja, desta vez a Capela de Sant’Anna. 

Seu acesso era muito difícil de se fazer por uma picada, especialmente nos dias de chuva. Por esse motivo, foi construída uma escadaria para dar caminho mais seguro até o cimo, onde fica o precitado templo.

Essa benfeitoria foi realizada pelo Clube dos 200, uma reunião de pessoas que, nos primórdios da construção do eixo rodoviário (hoje Rodovia dos Tropeiros), utilizava um casarão lá existente como hotel. Era gente de grana, o que era indicado pelo simples fato de possuírem veículos na época, e tomaram para si a responsabilidade de realizar a obra.

No espaço ocupado pelas laterais da escadaria há ainda moradias do tipo que não se vê mais hoje, principalmente pelo fato de que boa parte do imóvel fica situado no interior do morro.

Quem enfrentar a subida se candidata a sorver uns bons goles de água mineral que fica disponível na bica ao lado da igreja.

Mas depois tem a descida, e é aqui que nasce minha filosofia. Eu tenho uma estranha sensação de infinitude ao começar a ida para baixo, como se eu fosse cair, tipo abismo. A patroa simplesmente vê o espetáculo como uma escada que ela é, ponto.

A escadaria é realmente longa, e isso começa a me trazer mais e mais estranheza. E vai, e vai…

E vai, até chegar no chão de novo.

Longe de ser uma experiência mística, a descida da escadaria deve ter sido uma espécie de dissonância mental, meio parecida com a que acontece quando eu vejo a Catedral da Sé do alto. As variedades de planos me bugam a noção de tridimensionalidade e o resultado é a perda da intuição de profundidade de uma cena qualquer. Parece que eu estou vendo uma pintura, com as noções de longe e perto dadas unicamente pelas dimensões das partes. Como eu já disse, a patroa se sentiu meramente descendo a escada, talvez com um pouco mais de cuidado dado o tamanho dos degraus, assemelhados a rampas. Kant se sentiria satisfeito, vendo nisso uma minúscula amostra das suas teorias.

As diferenças de percepção são um dos principais motes para a teoria do conhecimento de Immanuel Kant, renomadíssimo filósofo alemão do século XVIII que se debruçou sobre a questão da absorção do mundo exterior pelos sujeitos que o observam, e já o mencionei em tantos cantos deste blog que nem farei remissões. Entretanto, tenho que admitir que nunca cheguei a me aprofundar como deveria, sempre pensando que minha intenção não é produzir tratados, mas pequenos ensaios de convite à reflexão e pesquisa. Sempre fiquei muito na assertiva de que nós não conseguimos acessar a realidade como ela é em si mesma, mas somente através da manifestação de seus fenômenos. Chegou o momento de subir um degrau, para não cansar os pulmões e nem dar vertigens nos cérebros. Essa escalada vai ser aos poucos.

O que é essa tal de verdade? Se formos pensar de uma maneira mais próxima à objetividade grega, diríamos que é a correspondência entre um objeto qualquer e a impressão que obtivermos dele: quanto melhor essa correspondência, maior será o teor de verdade que teremos à nossa frente. Mas o que você me diria se eu assegurar que é impossível de se obter essa perfeita correspondência, ainda que a captação do objeto seja feita à mais reluzente das iluminações? Eu não, de fato, mas o tal do Kant a quem me referi nos parágrafos anteriores.

A questão é que partimos de uma premissa simples quando queremos conhecer uma coisa qualquer: ela está diante de mim, e me cabe estudá-la. Só que eu dou a primazia ao objeto e esqueço de mim mesmo, a pessoa que exerce a porção ativa da relação. Esqueço de pensar em como se dá esse processo todo, e isso faz com que eu prejulgue minha posição na trama como sendo absoluta, o que de fato não é. Também a ela é preciso restar análises, e esse é o pulo do gato kantiano.

Vejam bem. Toda relação de conhecimento envolve dois polos: o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, ou, em palavras mais simples, alguém para conhecer e algo para ser conhecido. Essa relação parece ser direta, mas ela possui alguns intermediários ocultos, e que estão em dependência direta conosco mesmos: nossos sentidos e nosso intelecto.

Ocorre que Kant afirma que não podemos conhecer a tal da coisa-em-si, pelo simples fato de não termos acesso direto aos objetos do conhecimento. Os processos pelos quais se dá essa relação é o que Kant chamou de filosofia transcendental, cuja primeira etapa é a estética transcendental.

Mas… o que significa esse nome estranho? São quadros de deuses? São músicas de inspiração religiosa? É o conhecimento elevado a arte e ao misticismo? Nada disso.

Kant não ajuda muito com os termos, mas também não chegam a ser indecifráveis. Ele utiliza a palavra estética porque se refere aos sentidos. De fato, a área da filosofia que recebe este nome diz respeito ao estudo do conhecimento sensível, e como, nessa etapa, Kant quer entender como se dá a absorção dos objetos através dos sentidos, ele fala em estética. Com relação ao transcendental, é um termo usado aos montes por Kant, mas que nada tem a ver com divindades ou com misticismo. É um termo que significa “estar além” ou “estar sobre”, que indica a nós a maneira como se dá o processo cognitivo, com elementos que vem antes do contato com os objetos. Kant usa esse termo repetidas vezes: sujeito transcendental, lógica transcendental, idealismo transcendental, e hoje nós vamos nos debruçar especificamente sobre a estética para irmos devagar com o andor.

Pois muito bem. Um dos pontos com os quais Kant se alinhava aos empiristas era com o fato de que todo o nosso conhecimento principia por um contato com o objeto que é feito através dos sentidos. Essa é sempre a porta de entrada do conhecimento, seja olhando um objeto qualquer, ouvindo uma lição, percebendo um peso e etc. Ou seja, um objeto primeiramente é dado pelos sentidos, para depois ser pensado pelo intelecto.

Acontece que, desde os ensinamentos do velho Platão, já sabemos que os sentidos estão sempre prontos para nos trair, ou seja, não temos novidades com relação aos problemas de confiar nos sentidos como porta de entrada do conhecimento. Mas não tem remédio. É por eles que temos nosso contato com o mundo, embora haja exceções decisivas, como veremos mais adiante.

O nosso sujeito é conectado aos objetos através das sensações, que podem ser definidas como modificações exercidas em nós mesmos. Como assim, somos modificados? Quando um objeto é apresentado a nós, ele produz impressões que nos deslocam de um momento do nosso conhecimento para outro. Lendo isso, passa -se a impressão de que estamos diante de um livro onde estudamos um tratado, mas, na verdade, o sujeito está em um ponto passivo da relação. Basta que se pense no deslocamento entre ambientes desses dias inconstantes da Terra da Garoa. Estamos embaixo daquele sol de rachar, e entramos em um ambiente fechado, com seus gélidos ares condicionados. A nossa reação é passiva, já que recebemos a sensação e somos modificados por ela - passamos a sentir calor ou frio. Isso é ação de um objeto (o clima) sobre um sujeito (nós). Nesse exemplo, somos acionados através de um sentido específico, o tato, que percebe a alteração de temperatura. Mas aí, resgate de sua memória aquele colega que todo mundo chama de louco, e que anda de blusa seja lá qual for o sol que estiver lá fora, e podemos ter um leve esclarecimento de como cada sujeito forma seu próprio conjunto de impressões. E também podemos perceber que não somos os mesmos na chapa quente ou no projeto de geladeira. Por isso, o conhecimento nos modifica, inclusive nas coisas miúdas do dia-a-dia. Essa relação é muito mais prosaica do que pode parecer, e dizer que estamos aprendendo a cada instante nos coloca em uma posição didática, o que nem sempre é o que está acontecendo.

Isso tudo nos coloca a pensar: o objeto está antes dos nossos sentidos, e precisará passar por eles para serem processados em nossa mente. E aí eu conto uma historinha. Meu sogro é um senhor já idoso, passado dos oitenta anos. Ele vinha reclamando de uma piora na visão, e a solução, nesses casos, é procurar um profissional. Além das esperadas degenerações típicas da idade, houve a constatação de uma catarata que precisava ser removida. Tudo isso é de pouco interesse, mas o que importa de verdade é que a oftalmo disse que os olhos do meu sogro são admiravelmente pequenos, sem prejuízo de sua funcionalidade. E aí vem a pergunta: será que ele, pelo fato de ter olhos menores, enxerga exatamente igual a mim? Será que ele, com um cristalino novinho em folha, enxerga igual ao que enxergava antes? O que isso tudo pode ter a ver com sua relação com o conhecimento?

Eis que nós, eu e meu sogro, tentamos decifrar a realidade através do contato com esse imenso objeto que é o universo. E para nós ambos, o processo é o mesmo e o filtro é o mesmo: antes de chegar aos nossos sujeitos, a realidade já passou pelos nossos sentidos, eu com meus olhos grandes, o sogrão com os seus zoínhos

Só que ainda poderíamos pensar em formas de correção das percepções para torná-las mais próximas, e ainda assim não teríamos a aporia da impossibilidade do contato direto resolvido, já que o problema não é meramente de igualar indivíduos, mas de compreender uma característica inerente do conhecimento. Portanto, Kant entendeu ser imprescindível compreender como se dava a percepção dos objetos através dos nossos equipamentos cognitivos.

Como já dissemos, o processo de conhecimento é majoritariamente empírico. Isso quer dizer que os conteúdos que são trazidos para o sujeito não estão contidos antecipadamente nele, mas extraídos da experiência, ou seja, do contato do sujeito com um objeto que é externo a ele. Ao contrário do que adoraria Platão, eu não tenho um modelo de pedra, coelho, bola ou qualquer outra coisa dentro de mim, ou em um mundo externo de onde meu intelecto possa resgatar informações anteriores ao meu contato com o tal do objeto. Entretanto, há elementos que já se encontram presentes no mecanismo sensível antes que se estabeleça a relação de conhecimento, ou, como Kant dizia, eram conhecimentos apriorísticos (a priori, o que vem primeiro). Sem eles, é impossível conhecer.

E o que são esses elementos a priori que se colocam na dinâmica do conhecimento? Segundo Kant, são o espaço e o tempo.

Kant, nesse sentido, não concebe que espaço e tempo sejam propriedades intrínsecas da realidade em si mesma, mas como parte do aparato cognitivo humano. Enquanto todas as demais informações são absorvidas pelo sujeito como intuição empírica, tempo e espaço são intuições puras, sem as quais não há nenhuma possibilidade de se falar em conhecimento. Não é muito simples de se elucidar como Kant colocava esses dois juízos a priori na cadeia do conhecimento, mas podemos fazer um exercício, no qual podemos pensar em algo que esteja fora do espaço ou do tempo, e veremos que é impossível. Podemos pensar em uma partícula que seja ainda menor que a menor de todas as partículas subatômicas. Ainda assim ela ocupa um perímetro e ocupa algum lugar, que são noções espaciais. Se, por outro lado, pensarmos em um objeto que ocupe uma extensão infinita, ainda assim a ausência de limites é espacial. Se pensarmos em qualquer coisa estática, que nunca se mova, estamos situando essa imobilidade no tempo. Se pensarmos em um acontecimento instantâneo, estamos igualando um antes e um depois, o que é temporal, mesmo assim. Não há como pensarmos absolutamente nada que esteja fora do espaço e do tempo. Tente aí.

[Não arrisque falar que divindades estão fora do tempo e do espaço. Ainda que assim seja, os parâmetros são nossos, e mesmo que coloquemos os tais deuses na eternidade (noção temporal) e na onipresença (noção espacial), continuamos processando os tais deuses através de nossos escopo humano. Se eles existem, são igualmente incognoscíveis].

O mais curioso é que Kant não dá estatuto de absoluta realidade para a intuição pura. Não se trata de dizer que tempo e espaço sejam componentes indissociáveis da realidade em si mesma, mas como configurações da nossa percepção. Kant admitia que não há como saber se outros seres percebem a realidade de forma não temporal e não espacial, mas nós, humanos, temos essa forma de sensibilidade com relação ao universo: temos em nossa cognição componentes a priori que antecedem o próprio ato empírico, e somente inseridos neste gabarito eles fazem sentido no intelecto.

E é nesse ponto que Kant concilia o inatismo dos racionalistas com a tabula rasa dos empiristas. A parte originária de nós na relação é dada pelo espaço e pelo tempo, que já preexistem em nossa cognição, enquanto tudo o que vem de fora é absorvido pelos sentidos. A cadeia de conhecimento só é completa porque há uma estrutura a priori que possui a capacidade de receber os conteúdos a posteriori, que nos chega através do filtro dos sentidos. É inata toda a porção que depende do sujeito, é empírica a parte que cabe ao objeto.

E isso nos leva a uma conclusão que até poderia ser colocada nas feridas narcísicas, se científica fosse: não temos como conhecer a realidade como ela é, pelo simples fato de que os objetos inseridos no espaço e no tempo são a maneira como a qual percebemos a realidade, mas não há nada que assegure que a maneira como a qual uma barata apreende a mesma realidade seja mais próxima ou mais distante do que nosso pobre aparelho cognitivo consegue fazer. Não é decepcionante?

Mas, enfim, ainda que da forma fenomênica, nós temos uma forma de conhecimento e Kant também lidou com ela, mas vai ficar para outro momento, porque a coisa já está extensa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livrinho, meus amiguinhos candidatos a filósofos, que não há como fugir. Muna-se de paciência e um bom tempo livre para interpretá-lo, e peça ajuda a um professor se tiver dificuldades, mas é essencial para a compreensão de toda a filosofia contemporânea.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988.