Bem recentemente, fiz
aniversário de estadia no centro de São Paulo. Mais
especificamente, faz quatro anos que me mudei (já!), no dia 15
de novembro de 2008, feriado da Proclamação da
República, que naquela ocasião caiu em um sábado.
Portanto, foi uma data marcante, fácil de lembrar.
Curiosamente, não pelo feriado em si, mas pelos fatos que
passo a relatar.
Combinei com o dono do
caminhão que fez minha mudança que o aguardaria na
porta do Poupatempo Sé, o que fiz logo às sete da
manhã. Fiquei lá esperando por várias horas, já
que o ilustre carreteiro foi me procurar na saída do precitado
órgão público, na Rangel Pestana, enquanto eu
dava milho aos pombos na rua do Carmo (ora, a entrada é lá).
Pois muito bem. Enquanto eu aguardava em um misto de aflição
e desolamento a chegada do meu transporte, dezenas e dezenas de
contribuintes acorriam pressurosos ao Poupatempo para obter suas
ferramentas da burocracia, sem se ater ao detalhe que a ingrata
repartição encontrava-se de portões fechados,
dia sem expediente que era. Os seus rostos denunciavam a estupefação,
ao que eu, em uma prestação de serviço de valor
inestimável e preço gratuito, informava dever-se ao
feriado. Ao espanto, a seqüência de decepção
e, em alguns casos, de indignação. Pois é, o
significado do feriado é nulo, pude filosofar. Por que será
que isso acontece?
Bom, começando
pelo começo. O grosso de nossos feriados é cívico
ou religioso. No primeiro caso, temos comemorações de
fatos que foram relevantes para a vida de nosso país. O
problema que temos aqui é que essas datas marcam
acontecimentos derivados de decisões da elite e/ou
conspirações palacianas, com pouca ou nenhuma
participação popular. De fato, se pensarmos na
Independência ou na Proclamação da República,
perceberemos que sua origem não se dá na demanda de
vastas camadas da população, ou em sangrentas batalhas
(graças a Deus), mas de transformações que se
deram no topo da pirâmide social. A Independência
representa a troca de um rei por outro, o povo prosseguiu alijado de
efetiva participação nos rumos do país. O mesmo
se dá com a virada para a República, onde o voto era
coisa para os qualificados, ou seja, para quem já detinha o
poder.
A situação
tornou-se particularmente mais expressiva nos períodos de
governo militar, que encamparam as comemorações como
objetos de justificação de seu poder. As celebrações
cívicas eram cheias de gente porque a máquina
governamental as tornavam assim coercitivamente. As escolas eram
obrigadas a participar de desfiles e fanfarras, as repartições
públicas eram obrigadas a se adornar de verde e amarelo. Quem
não colocava fitinhas amarradas nos carros ou pregadas no
peito era visto como subversivo. Deixaram Tiradentes barbudo para
ficar pagando de Jesus Cristo, a concupiscente rede globo passava o
manjadíssimo filme da independência, com o Tarcísio
Meira, em toda sessão da tarde que caísse no 7 de
setembro, entre outras bravatas ditas patrióticas. Quando a
democracia plena chegou, as pessoas se deram conta do quanto eram
objeto de manipulação, e do quanto o amor à
pátria era utilizado para validar mortes e desaparecimentos de
dissidentes, e passaram a apreciar os feriados apenas por sua
significação prática: são dias sem
trabalho e sem escola.
É certo, algumas
atividades ainda subsistem. O desfile militar da Independência
(em São Paulo, é realizado no Sambódromo) ainda
atrai avós saudosos e netos curiosos, cada vez em menor
quantidade. As centrais sindicais conseguem congregar muita gente no
dia do Trabalho, mais por conta dos sorteios de carros e apartamentos
e pelos shows sertanejos e pagodejos. Tirem-se estes componentes e
vejam-se quantas pessoas vem ouvir comícios e discutir
reivindicações. Também é certo que
prezamos nossos símbolos nacionais e reagimos quando os mesmos
são vilipendiados, como explicitei aqui e aqui, só que isso tem sido feito de maneira muito pontual e difusa. Isso prova, como falei neste e neste texto, o quanto o
brasileiro anda despolitizado, em especial os jovens, e o quanto isso
influi em nosso sentimento patriótico.
Do outro lado, temos os
feriados religiosos. Estão intimamente ligados à
doutrina católica, que possui um espaço celebrativo
bastante rico, independentemente da fé que professemos. São
cerimônias de cunho coletivo: se o padre vai à igreja e
não há ninguém presente, fecha seu missal,
recolhe suas alfaias e vai embora. Como o Catolicismo foi a religião
oficial do Brasil até o final do século passado,
parece-me natural que suas datas litúrgicas influenciassem o
calendário civil, o que gerou uma série de feriados.
Ok. Acontece que, desde quando esses feriados foram instituídos,
muitas mudanças se deram no perfil do brasileiro. Segundo o
mais recente censo do IBGE, as transformações no perfil
religioso nacional mostram três tendências bastante
importantes. A primeira é a diminuição do
percentual de pessoas que se declaram católicas. Em 1970, este
índice era de cerca de 90% da população; hoje, o
mesmo caiu para algo em torno de 65%. A segunda é o
crescimento de membros de denominações evangélicas.
Em 1970, falávamos em meros 5%, hoje esse número saltou
para algo como 22%, o que representa em uma quase quintuplicação.
Já de cara percebemos que uma fatia bastante representativa
não tem os feriados de Corpus Christi, da Padroeira, da
Sexta-feira Santa e outros como relevantes para suas celebrações.
Aqui, temos o mesmo fenômeno da perda de interesse no feriado
cívico, ainda mais se levarmos em conta o caráter
individual que o evangélico atribui à sua salvação.
Afinal, diferentemente de católicos e espíritas, os
evangélicos em geral creem que o acesso ao céu ou o
ingresso no inferno dependem da vontade de Deus, e não das
ações do cidadão. Mas tem mais.
Com esses números
podemos concluir que o Brasil permanece como um país de grande
religiosidade, mas que vai paulatinamente migrando do Catolicismo
para o Protestantismo de cunho pentecostal, certo? Não,
errado.
Há ainda um
terceiro número a ser considerado: em 1970, tínhamos
parcos 0,5% de pessoas que se declaravam sem filiação
religiosa. No último censo, este número explodiu para
8%, o que significa um crescimento de 20 vezes neste número. O
Brasil, assim como a Europa, é um país que ruma para a
secularização.
E isso torna a questão
ainda mais espantosa, porque nos traz à mente as peripécias
intelectuais de um dos filósofos mais geniais e independentes
de todos os tempos, o amado e odiado Friedrich Nietzsche. Esse moço,
por exemplo, decretou a morte de Deus.
A Filosofia de
Nietzsche é uma cruzada contra o poder dogmático da
Religião. Segundo seu pensamento, os homens jamais abandonam
sua condição de escravos ao se deixar levar pelos
ditames imutáveis das diferentes crenças. Em seu livro
Assim falou Zaratustra, por exemplo, nosso tedesco informa que
a humanidade obrigatoriamente viverá três fases,
representadas pela metáfora do camelo, do leão e da
criança. Na fase do camelo, o homem carrega em suas costas
todo o peso de suas convicções, que são oneradas
pelo direcionamento acrítico de uma moralidade aprisionadora,
voltada à justificação do mais fraco. O forte
ganha estatuto de ruim, de mau, opondo ao que seria uma
característica natural, observável nas relações
em que não há interferência da moral de rebanho,
como na seleção natural. Na tentativa de se libertar
desta condição, o homem se desvencilha de seus mitos e
se torna fera solitária: o leão. É o momento em
que o homem se encontra no vazio, desacompanhado de suas convicções
anteriores, que lhe serviam de lenitivo. Ele está isolado,
precisa se fazer por si mesmo, o que é angustiante, mas
libertador. A fase final seria a da criança, onde o homem
busca aquilo que está além de si mesmo, e seu grande
trunfo é a coragem para a renovação e para a
criatividade. Já em seu livro A Gaia Ciência,
temos a famosa e angustiante assertiva: “Deus está morto, e
fomos nós que o matamos”. O homem já não
depende de Deus, pode guiar seus próprios caminhos, mas isso
deriva de um ato doloroso: a morte de seu Deus, seu guia, seu
condutor. Poderíamos dizer que estamos entrando na fase do
leão. O homem está só e não sabe muito
bem para onde ir, tropeça em suas ações, já
que não há mais um dedo divino que lhe aponte um
caminho. Precisará se convencer de sua força para dar
um passo à frente.
Pois bem. Não
quero aqui concordar com Nietzsche no quesito de inutilidade ou de
alienação religiosa. É preciso lembrar que ele,
em suas próprias palavras, filosofava na base das marteladas,
e que também ele nunca se colocou em oposição
direta a Jesus, mas ao Cristianismo; mas parece indubitável
que ele profetizou com precisão o processo de desvinculação
do humano ao sagrado, haja vista o processo inegável de
laicização dos Estados e da decadência da
religião, ao menos no que se refere ao mundo ocidental. Talvez
o maior desvio da doutrina nietzschiana seja o fato de que o homem
não está abandonando Deus, mas trocando-o por outros
deuses, como o prazer e o poder vinculados à posse e à
imagem.
Só que há
ainda outro desvio: não somos patriotas nem religiosos, mas
não queremos abandonar nossos feriados, correto? Bom, há
que se dizer que, em certos casos, há uma migração
de sentido na comemoração. Vejam: o Natal e a Páscoa
não se prendem mais ao sentido cristão; hoje, o Natal é
dos presentes e a Páscoa é dos ovos, mas ainda há
uma celebração. Já quanto ao Corpus Christi, os
evangélicos o aproveitam para realizar a Marcha para Jesus, o
que mantém ainda um significado religioso. E há também
as comemorações locais que ainda são muito
importantes, já que a secularização é bem
menos visível nas pequenas cidades. As festas do Divino são
grandiosas no interior de Minas Gerais e do Nordeste, as festas
juninas são enormes no Nordeste, há históricas
procissões de tapetes em Santana do Parnaíba e São
Luiz do Paraitinga. Bom, já estou até fugindo um pouco
do contexto dos feriados, mas a lógica prevalece: estas são
celebrações que desapareceram das grandes cidades.
Só para
concluir: não celebramos nada, portanto? Sim, há duas
celebrações de caráter nacional que estabelecem
o que podemos chamar de catarse: o Carnaval de todo ano (nem tanto
aqui em São Paulo) e a quadrienal Copa do Mundo. Pegando esta
última, podemos observar a mobilização completa
da modalidade. Meses de preparativo, a pintura das ruas, a
solidariedade nos gastos para os enfeites, a adoção de
símbolos, a adoração dos jogadores, o cuidado na
preparação de comidas e bebidas nos dias dos jogos, a
apreensão e o derramamento no momento máximo do gol.
Quanto ao Carnaval, tem caráter profano e foi combatidíssimo
pela Igreja, mas é algo que brotou espontaneamente do meio do
povo, por isso tem tanta força. Uma vez me perguntaram o que
eu achava do Carnaval, e respondi que achei os desfiles lindos, e que
torceria pela Vai-vai e pela Salgueiro como sempre. Quase me botaram
na cruz. Há um bom tanto de preconceito nisso tudo, com toda
certeza.
Vejam, ao final, que
não se tratam de datas cívicas ou religiosas, apesar de
manterem características de ambas: o envolvimento comunitário,
o apuro nas preparações, a ritualização
do momento celebrativo. Mas são comemorações que
partem verdadeiramente da vontade popular, por isso vingam.
Eis então: o
brasileiro sabe ritualizar, mas o faz muito pouco, porque não
se sente verdadeiro participante de qualquer momento celebrativo,
seja porque não acredita no civismo de quem escreveu sua
história, seja porque já não dão mais a
mesma importância às suas transcendências.
Em tempo: não mencionei o Reveillon, porque acho essa celebração muito esquisita. Saibam porque neste post.
Recomendações:
Nietzsche é um
filósofo dos mais geniais de todos os tempos. Não se
prendeu a nenhuma escola e não se importou com os reflexos do
que dizia. Provocou a tudo e a todos, começando por seus
próprios colegas filósofos. Isso não significa
que ele esteja correto em tudo, mas sim que é desafiador em
tudo. As obras que mencionei no texto são as que seguem:
NIETZSCHE, Friedrich.
Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A
Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Mencionei também
um filme que versa sobre a Independência do Brasil. Ele contém
desvios históricos flagrantes, retratando Dom Pedro I como um
homem que era quase um santo, ou um dos maiores heróis da
humanidade. Mas é muito interessante para observar como os
mecanismos de ideologia usavam os eventos históricos para
produzir um patriotismo artificial e a seu próprio serviço: