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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Sobre o efeito placebo e o desafio de compreendê-lo

Olá!

#FiqueEmCasa

Tudo bem com vocês nesses dias esquisitos? Eu sei que não há como escapar de algum tipo de respingo, mesmo que seja a singela obrigação de se usar uma máscara, mas espero que, de uma forma ou de outra, todos estejam suportando as restrições e que a curva de mortes decaia o mais rápido possível. Este blog, por incrível que pareça, teve um efeito colateral durante a pandemia: há muito mais acessos nos últimos tempos, sendo que o mês de maio bateu o recorde de leitura de todos os tempos, que não são tão poucos. Desde maio de 2011 venho gravando minhas impressões neste espaço, e, pesaroso, só tenho a agradecer a todos, além de ter a grande satisfação de estar ajudando-os a passar o tempo nesses dias monásticos, embora a causa não seja a que eu gostaria. Mas não é sobre isso que eu quero falar.

Não sei se já contei para vocês, mas meu sogro é um homem típico do interior. Embora já tenha vindo para Sampa há mais de 50 anos, ele fala como se tivesse chegado da roça ainda ontem. Não só nos erres puxados, mas também no jeitão de contar histórias, que são conhecidas pelo simpático nome de “causos”, celebrizadas por gente do porte de Rolando Boldrin ou Geraldinho Nogueira. É bem verdade que, depois de 30 anos casado com a patroa, as pantomimas do sogrão se repetiram mais de uma vez, mas mesmo assim vamos ouvindo-as, a ponto de decorar o roteiro de várias. A que vou reportar agora é uma destas.

Dizia-se na região norte do Paraná que havia uma mulher que, para tudo o que lhe acometesse de mal, usava como fármaco a água benta do padre da paróquia local. “Local” é um modo de dizer, porque tal senhora morava em uma gleba longínqua da pequeníssima mancha urbana, de modo que, para lá chegar, custava bem umas duas horas de caminhada em carreadores bastante arenosos. Certa feita, sentindo-se incomodada por uma dor de origem incerta, mandou um de seus filhos menores correr ao pároco com uma moringa, a fim de obter a bênção no líquido, de modo a torná-lo (em sua cabeça) precioso e sagrado. O menino, ainda que contrafeito, achou prudente obedecer, já que eram tempos em que a peia cantava nas pernas dos recalcitrantes. Estando na pequena urbe, procurou o padre em ofício, que realizou seu mister riscando sinais-da-cruz defronte ao pequeno recipiente. Tarefa cumprida, o guri se põe em retorno. Entretanto, crianças são crianças e nosso pequeno piazinho inventa modas para o tempo passar enquanto o sol queima a tampa de sua cabeça. Chacoalha a moringuinha de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo. É ainda um desconhecedor das magias da Física Aplicada, mas percebe intuitivamente que a água não escapole do recipiente, até mesmo quando descreve giros de 360 graus. Faltando menos de um quarto do caminho para completar o regresso, sua experimentação é interrompida por uma nova descoberta: os efeitos da centrifugação. O mesmo fenômeno que mantém a água no pote é o que o faz voar longe. A moringa lhe escapa e vai parar em um dos monturos de areia à beira do caminho. Sorte: a peça cai em terreno fofo e não se parte. Azar: desgraçadamente, cai de ponta-cabeça e todo o líquido santificado se entorna pela superfície porosa. Entre a paralisia e o desespero, o menino raciocina: “se eu voltar para casa sem a água, vou levar uma bela coça. Se eu for à aldeia novamente, vou apanhar do mesmo jeito porque demorei demais”. A solução adotada foi irritantemente simples. Pareado ao carreador principal, corria um córrego de água mui limpa, e foi lá mesmo que nosso pequeno cientista encheu novamente sua botija. Terminou seu périplo e entregou o artefato à sua mãe, sem – sacripanta –  denunciar sua desventura. Ocorre que a senhora tomou a água pseudo-benta com tal fé que teve o mesmo valor que teria se fosse benzida pelo Deus cristão em pessoa, e ficou curada de seu incômodo tão logo a água escorreu por sua garganta.

Claro que o senhor meu sogro jamais utilizou toda essa linguagem empolada e metida a besta, mas está bem claro que, no fundo desta pequena fábula, há duas morais diversas e divergentes. A primeira é que não importa o veículo, e sim a fé que a pessoa tem. A divindade invocada é suficientemente piedosa para que a pessoa não fique órfã dos engodos, desde que a mesma acredite piamente em seu poder. A segunda é que nossa mente é muito mais poderosa do que podemos imaginar. Tem cheiro de autoajuda, jeito de pseudociência, forma de charlatanismo, mas, bem pesado e bem medido, é um fenômeno verificável e que podemos observar mesmo empiricamente, em nosso dia-a-dia. É o efeito placebo.


Eu, que me acho tão consciente e racional, que acho não ser afetado por essas coisas das mentes mais humildes, que me coloco no campo olímpico dos pensamentos esclarecidos, pus-me a recordar de qualquer coisa que pudesse se assemelhar em minha vida, e tomei um choque. Achei uma atrás da outra: nunca deixar as crianças pegar friagem porque dava gripe, virá-las de ponta-cabeça para tirar a ânsia de vômito (o tal do “bucho virado”), tomar vitamina C para prevenir resfriados, maneirar no doce para não ter diabetes (onde fracassei miseravelmente), comer colherada de açúcar para tirar a náusea, não misturar bebidas para ter porres menos contundentes, raspar o cabelo para torná-lo mais forte, comer ovos marrons porque são mais saudáveis que os brancos, não engolir chicletes porque dá dor de estômago, tomar maizena© com limão para cortar diarreia. Em tudo isso eu acreditei em algum momento da minha vida. E, sim, senti a garganta arder ao andar descalço e senti-me melhor ao chupar laranjas para consertar. Muitas vezes o efeito placebo acontece sem que percebamos. E, por isso mesmo, trata-se de um grande entrave na pesquisa científica. Mas o que é ele, afinal?

Bem... A palavra placebo vem do latim placere, a raiz para a palavra “prazer”, mas que também pode ter o significado de agradar. Isso vem da sensação de bem-estar que é produzida em um organismo após algum tipo de conduta adotado para mitigar um sofrimento qualquer. O sentido então vem da melhora obtida não por um procedimento efetivo, mas pelo fato de se adotar uma atitude de agrado, como quando as crianças tomam seus tombos e batem suas cabeças, e nós as afagamos no colo. Sabemos que o agrado não tem nenhum efeito profilático, a não ser uma espécie de reconforto. E é mais ou menos isso o que acontece quando nos é oferecido um comprimido para tirar a dor, por exemplo. Diante do suposto remédio, temos a sensação de “acolhida” por uma solução. Tanto é verdade que as mensagens de eficácia e bons ambientes hospitalares costumam reforçar esse efeito. Quem nunca se sentiu melhor pelo simples fato de se saber a caminho do médico?

Isso tudo é muito esquisito, e não está muito bem explicado até hoje. Uma boa parte da questão pode ser explicada pela interação entre nossos corpos e nossas mentes. O efeito placebo parece atuar exatamente naquela sutil linha que limita o fisiológico e o psicológico, como se estivesse na conexão entre um e outro, onde ambos conversam. Evidentemente, não naquele sentido mágico que os modernos coachs gostariam, mas em coisas que fazem toda lógica biológica. Vejamos um exemplo.

Coloque-se na posição de um goleiro que aguarda um pênalti ser cobrado. É um momento de extrema atenção seletiva, em que todo e qualquer sentimento adjacente não será percebido. E esse estado de tensão lhe traz reflexos orgânicos. Embora você não perceba seu corpo produzindo hormônios, eles estão em plena efervescência, e sendo despejados de balde em sua corrente sanguínea. Sua função é preparar todo o seu organismo para a tentativa da improvável defesa. Alguns deles são de uso imediato: o cortisol trata de aumentar seu nível de concentração, algo necessário para deixar os reflexos os mais armados possíveis. Mas alguns deles são produzidos para uso posterior, no momento da explosão necessária ao salto contra a bola. Suas glândulas suprarrenais vão inundar todo o seu corpo com adrenalina, que gera uma autêntica revolução em vários sistemas: seu coração pulsará mais rápido, o volume de sangue será incrementado, o que fará com que a musculatura voluntária dos braços e das pernas fique pronta para explodir no máximo de impulso possível, maximizado pelo aumento da concentração de açúcares no sangue. A adrenalina é o hormônio que a natureza nos disponibilizou para as situações de perigo e de reação rápida, como é o caso da iminência do pênalti. Quem dispara sua produção e liberação não é o acaso ou um milagre, mas a absorção de uma situação de risco pelos sentidos.

Esta é uma das teses que ajuda a explicar o efeito placebo. A expectativa de melhora ao se ingerir um medicamento já é uma parte do tratamento, porque o próprio organismo já se “inspira” em reagir. Por exemplo, nosso organismo produz a endorfina, um hormônio que trabalha na mitigação da dor. Se uma substância qualquer promete alívio, um processo mental pode liberar a produção de endorfina, de modo a fazer com que exista uma ação orgânica, mesmo que não haja um princípio ativo efetivamente presente.

É bastante claro que essa não é a única explicação para o funcionamento do efeito placebo. A questão é tão complexa que existe até mesmo seu reverso, o efeito nocebo*. Esse ocorre quando uma substância ou ação inerte resta prejudicial ao organismo de alguém, fazendo o exato contrário do placebo. Ambos são potentes e precisam ser considerados em pesquisa científica, especialmente quando tratamos da área de Medicina e Farmácia. Quando eu montei meu farto exemplo no texto anterior a este**, mencionei a adoção, ainda que de maneira empírica, de um modelo de exame que particularizava um grupo sem alterações, enquanto outros dois testavam, sem saber, a mudança proposta pelo treinador. O objetivo era justamente abrandar o efeito placebo, já que não se podia inferir diretamente quem estava ou não com as chuteiras modificadas. Na experimentação de medicamentos ocorre a mesmíssima coisa. Temos sempre um grupo controle que só recebe o placebo e um grupo experimental que é efetivamente testado. Este procedimento é necessário para estabelecer qual é a diferença entre aqueles que fazem uso do principio ativo e aqueles que não. Para que um medicamento seja considerado efetivo, é preciso que ele supere o placebo em um percentual determinado. Por exemplo, se o grupo controle, que tomou pílula de farinha, tem um percentual de cura de 25%, o grupo experimental precisa superar substancialmente esse número, sob pena de ser considerado ineficaz. Os resultados são variáveis: o placebo é muito eficiente em moléstias ligadas à dor ou outros sintomas somáticos, mas fracassa bem mais em doenças degenerativas ou que independem de sintomática, como o câncer. O placebo parece estar muito vinculado às substâncias que nosso corpo pode produzir, como hormônios e anticorpos.

Desta maneira, não dá para imputar o efeito simplesmente a uma reação orgânica. Temos, então, algo metafísico por trás disso tudo? Passei desse tempo. É preciso tentar buscar uma raiz filosófica para confrontar o efeito placebo, e vou fazê-lo na Psicologia.

Lá nos princípios do estudo psicológico, ainda no fim do século XIX, um pesquisador norte-americano chamado Edward Thorndike elaborou uma série de pesquisas em animais, e visava medir suas reações diante de alguns desafios, para compreender seu aprendizado. Eram aqueles experimentos que costumam povoar nosso imaginário com relação à pesquisa, com bichos colocados em labirintos para achar recompensas, essencialmente comida. A ideia de Thorndike era mais ou menos próxima àquela do russo Pavlov, que percebia a repetição das reações na medida em que um indivíduo se defrontasse com um estímulo. A ideia básica era a de que todo comportamento animal tende a se repetir, se for devidamente incentivado para tanto. Por certo que, se gatos e ratos apresentam tal característica, nada mais esperado que o ser humano também a possui. Ao formar uma cadeia de causa e consequência, um contribuinte qualquer forma uma conexão neural, que fica armazenada em seu subconsciente e será invocada todas as vezes em que fenômeno semelhante se repetir. E quanto maior for a quantidade de repetições, mais sólido será o reforço desta conexão. À primeira observação, Thorndike deu o nome de Lei do Efeito; e à segunda, Lei do Exercício. Em resumo, a tese central é que há uma forte influência do ambiente na maneira com a qual nos comportamos, e a experiência é o grande motor de nossos hábitos e reações. Nosso cérebro aprende a dar respostas imediatas e automáticas a cada vez que se vê frente a uma experiência semelhante que já tenha ocorrido anteriormente. Evidentemente, toda uma longa cadeia de acontecimentos pode ser destrinchada em pequenos eventos, de modo que a cada um possamos descrever uma associação simples. A todo esse corpus, Thorndike deu o nome de Associacionismo, que foi a base para a construção de uma das correntes mais significativas da Psicologia, o behaviorismo (que já esmiuçamos aqui).

Esta teoria dá uma boa base para que possamos propor um entendimento ao efeito placebo, ainda que não definitivamente. Desde que somos pequenos, nossas mães nos oferecem substâncias que aliviam nossos males. Não precisa necessariamente ser um remédio – um chá de erva-doce vai bem para as cólicas, assim como o reconforto de uma cidreira nos ajudava a dormir. No caso, não porque tenha ação efetiva, mas porque vinha acompanhado de um colo quente e de uma canção suave. Neste caso, pelo desvio de uma emoção negativa. São dois campos em que a coisa age: na diminuição do desconforto e na modulação da ansiedade. Pensando neste segundo aspecto, temos uma série de consequências positivas para o organismo, como a diminuição da frequência cardíaca, a dilatação dos vasos sanguíneos e outros fenômenos do mal-estar. Desta forma, acostumamo-nos desde cedo a vincular bem-estar como uso de substâncias externas a nós, e fazemos associações entre elas, mesmo que esta correlação de coincidências não seja necessariamente verdadeira.

Algumas pessoas, sem nenhum tipo de desvão intelectual, já que todos estamos sujeitos ao efeito placebo, têm uma propensão maior a disparar as consequências da sugestão em seu próprio organismo do que outras, em um percentual bastante significativo de toda a população.  A expectativa pela melhora já leva ao desenvolvimento ou à inibição dos receptores da dor. Além disso, é sempre importante lembrar que certas condutas levam a curas autorrealizáveis. Um exemplo bem claro é a pílula para matar a sede, que é tomada com dois copos de água!! Claro que eu fui jocoso, mas uma pessoa que quer emagrecer costuma não só tomar um remédio, mas também fazer exercícios e melhorar a dieta. Assim sendo, tanto faz se o remédio tem algum efeito concreto ou não, já que as demais atitudes são suficientes para a melhora.

Enfim, esperamos ainda ter melhores informações sobre o placebo, porque isso indicará que estaremos com um nível de compreensão melhor sobre o funcionamento da mente humana. Por ora, resta a nós especular como cumpre a um bom admirador da Filosofia. Mas ainda falta abrir parênteses.

(No dia em que estou publicando este texto, o número de vítimas da covid-19 bateu a casa dos 40 mil no Brasil. Penso no Pacaembu lotado, em final de campeonato. É como se caísse um meteoro lá em cima neste exato momento, levando cantos, coros, camisas, bandeiras e as quarenta mil histórias que lá estavam sendo vividas. Penso no fluxo fragmentário da chegada e consolidado da saída, e penso em quanta gente é, e paro pensando nisso olhando para o vazio. Quanta gente já saiu do jogo por causa de algo que nos é invisível. Não há placebo para expulsar o vírus de nossos corpos ou do nosso país. Não sei dizer se há lado bom nisso tudo, mas há um aprendizado: tratar com desprezo a essas vidas que se foram é a coisa mais baixa que alguém pode fazer, principalmente quando tem a caneta mais forte do país na mão. Pensem nisso na próxima eleição).

Bons ventos a todos, na medida do possível.

Recomendação de leitura:

Edward Thorndike é um psicólogo pioneiro, que não tem escritos em português atualmente. Para suprir esta falta, há livros que falam sobre sua atuação de maneira satisfatória.

LEGRANÇOIS, Guy. Teorias da aprendizagem. O que o professor disse. São Paulo: Cengage, 2017.

* Do latim nocere: prejudicar, tornar nocivo.

** Para quem não quiser ler: no exemplo imaginário em que montei, três grupos de jogadores de futebol experimentavam mudanças nas travas de suas chuteiras, sendo que um dos grupos aleatoriamente foi indicado para se manter com as travas antigas. Este era o grupo placebo do exemplo.