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terça-feira, 29 de junho de 2021

O embate entre linguistas causado por uma pequena tribo do Amazonas (um bom exemplo do funcionamento da falseabilidade)

Olá!

Nesses dias invernais, em que eu fico filosofando na varanda para tomar um pouco de sol, lembro às vezes dos tempos de eu-menino. Eram dias em que ainda se justificava o epíteto de Terra da Garoa a este pedaço de território, com dias frios de fazer pena e aquela chuvinha incessante. Existiam as férias de julho, que seriam inúteis se não fossem as brincadeiras caseiras. Ah, sim, existiam também as odiosas lições de férias, mas essas eram liquidadas no último final de semana antes do retorno. Para os outros dias, o povo que não tinha celular ficava vendo desenhos, tomando café quente ou brincando de joguinhos, dos quais o meu favorito era o futebol de botão.

Eu morava perto da fábrica de brinquedos Canindé, que não, não ficava perto do campo da Portuguesa, mas na Vila Ema, bairro operário de segunda geração. Eles produziam caixas de times de botão que não eram dos melhores, mas eram MUITO baratos. Uma caixinha amarela típica custava menos de um quarto do preço de um time Brianezi ou Craks da Pelota, escrito assim mesmo, que eram mais sofisticados e profissionais.

As caixas da Canindé traziam dez jogadores, uma trave, uma palheta, e um disco à guisa de bola (bolinhas de feltro só vinham em conjuntos profissionais), além de um goleiro móvel. Este era o único item que eu não utilizava, lançando mão de uma caixa de fósforo recheada de pregos, na qual eu indulgentemente colava o adesivo do escrete em questão. Normalmente, brincava no chão de tacos da sala, embora não morasse na Santa Cecília. Dava para se divertir um bocado nos dias de geleira pública, mas tinha um menino na rua que tinha um Estrelão. Pergunte a qualquer moleque da década de 70 o que era ter um Estrelão.

Deixem que eu mesmo conto. Um Estrelão era uma tábua de madeirite verde, onde era estampado um campo de futebol, e que servia de estádio para as pelejas imaginárias. Esqueça das mesas profissionais, que emulavam um gramado. Um Estrelão era uma espécie de sonho, perfeito para aquela modalidade proletária de futebol de botão, principalmente porque tinha a moldura alta, o que dava a vantagem de tabelar os jogadores com a lateral, algo impossível nas mesas mais sérias. Outras coisas ajudavam: era um piso mais regular que os tacos, vinha com os desenhos das áreas, tinha a versatilidade de ser posto em qualquer piso, ou na mesa da cozinha, ou no sofá, ou até no capô de um carro.

O Estrelão permitia, portanto, que se depurassem as jogadas, de forma a aperfeiçoá-las. Toques secos para tirar a bolinha do chão, chutes longos para arrastar adversários junto e outras mumunhas tornavam possíveis jogadas que um teco simples não permitiam, como encobrir o goleiro ou aproveitar um botão rival mal posicionado. Mas existia uma jogada que era impossível de realizar: o gol olímpico.

Para quem não sabe, gol olímpico é aquele feito batendo-se diretamente um escanteio para o gol, sem tocar em nenhum jogador do time adversário. Se não entra direto, não é gol olímpico. Conta-se que esse nome vem do fato de que o primeiro time a levar um gol dessa forma tenha sido o Uruguai, cujo epônimo é Celeste Olímpica. No futebol real, o gol olímpico é possível porque o batedor põe uma rosca na bola e o goleiro falha. Já no botão amador, esse efeito não é possível de obter, penso que por conta da pequena distância percorrida. Sem a curva, é praticamente impossível fazer a pelotinha entrar, pelo pouco ângulo disponível. Se você treinar bastante, até consegue bater a gol direto do córner, mas a bolinha só entra se não tiver goleiro. Minha fórmula para me defender de um gol olímpico era simples: deixar a caixinha-arqueiro paralela e adjacente à linha de fundo, do lado de dentro do gol, encostada na trave oposta ao canto de onde partia a cobrança. Podia até haver algumas tentativas, mais pelo desafio, mas o resultado era sempre o mesmo: a defesa do goleiro.

Um dia, o dono do tabuleiro apareceu com uma novidade na hora de um escanteio. Ao invés de deixar a bolinha na posição deitada, deixou-a de lado, como se fosse um daqueles pneus de descer a ladeira. Achei ridículo, e armei meu goleiro Fiat Lux como de costume, rente à linha. A bolinha veio toda esquisita, e repicou torta antes do goleiro, indo parar no fundo da rede, para surpresa minha e gáudio do colega.

É um aprendizado, meus amigos. Se minha partidinha de futebol de botão fosse uma teoria científica, ela estaria falseada. Vejam: a posição do goleiro sempre impede o gol olímpico, era a tese. Ao ocorrer o fenômeno, ela está provada falsa, e a solução é descartá-la ou modificá-la.

Acontece nas melhores famílias, e põe melhores nisso. No meu último texto, que recomendo fortemente a leitura, falei do Gerativismo, teoria que pressupõe a existência de uma sintaxe comum a todas as línguas humanas, chamada de Gramática Universal, que foi desenvolvida a partir dos estudos de um dos maiores gênios vivos do planetinha, Noam Chomsky. O que a boa Filosofia da Ciência manda que se faça quando uma teoria é criada? Ora, que se encontre ao menos um ponto em que esta pode ser provada falsa. Teorias não falseáveis não são científicas, e a do gerativismo tem estes pontos. Bastaria que se encontrasse uma língua que não atende aos critérios gramáticos universais. E pasmem, ela foi encontrada, em uma tribo seminômade perdida nas margens do rio Maici, no meio do Amazonas, com menos de 500 viventes. Trata-se da tribo pirahã, uma espécie de inferno dos antropólogos.


Eu já mencionei os pirahãs de raspão neste e neste texto, e eu devia para vocês, meus inusuais leitores, alguma coisa mais robusta sobre sua cultura única. O começo está na sua língua, estudada a fundo pelo linguista estadunidense Daniel Everett, que viveu por trinta anos com os membros desta insólita comunidade.

Everett encontrou uma língua totalmente estranha ao padrão costumeiro entre os povos indígenas, que fugia em alguns pontos da gramática universal proposta pelos gerativistas. Alguns deles são raros, mas não são exclusivos, como a questão da entonação, que muda por completo o sentido de certas palavras. Além disso, há um número limitado de consoantes e, mais estranho, de vogais na produção de seus fonemas. Também desenvolveram um sofisticado método de comunicação que utiliza assovios, especialmente útil quando saem para a caça. Mas a coisa entorta mais seriamente quando nos pegamos a confrontos diretos com o gerativismo.

Primeiro, os pirahãs não possuem cores nos seus vocabulários, no máximo utilizando noções de mais claro e mais escuro. Pior ainda, eles não possuem sistemas de numeração. Dois, dez ou setenta e sete não trazem nenhum significado para eles, e as contagens não fazem parte de sua cultura, incluindo aí qualquer noção de aritmética. O que há é só uma noção de quantificação: eles compreendem que há “muito” ou “pouco” de uma coisa qualquer, além da noção de unidade – “um” é o único numeral que eles utilizam, mas em um sentido próximo a “sozinho”, e não de elemento de contagem.

Até aí, é estranho, mas seriam apenas excentricidades acessórias.  A coisa vai ficando mais exótica quando se sabe que os pirahãs, apesar de possuírem verbos, não possuem conjugações fora do presente, ou seja, não há tempo passado, nem futuro, o que já é um caso único entre as línguas do mundo. Mas o pior ainda é a falta de recursividade, o elemento linguístico que mais bem fundamenta a teoria de Noam Chomsky. Ela diz que todas as línguas humanas possuem a capacidade de concatenar e embutir frases dentro de frases, produzindo combinações que podem chegar ao infinito. Por exemplo:

O locutor ficou com tanta raiva durante o jogo que estava narrando que chegou a quebrar seu microfone.

Ao contrário, as sentenças em pirahã são todas isoladas e trazidas para o presente, mais ou menos assim:

Há jogo. Locutor narra. Locutor fica com raiva. Locutor quebra o microfone.

Everett dá um desfecho para seus estudos dizendo que a configuração da linguagem pirahã é mais simples do que diz a teoria gerativista. Como funcionam outros mecanismos evolutivos, a língua destes índios se adaptou às circunstâncias ambientais em que sua cultura se desenvolveu. Ou seja, o centro do desenvolvimento linguístico não está em um órgão da fala, mas no ambiente que forja a cultura de uma comunidade. Todos esses elementos mencionados faltam à linguagem simplesmente porque não possuem utilidade no universo às margens do Rio Maici.

Tudo bem. Até aqui, eu só mencionei casos que perturbam a cabeça dos linguistas, mas uma das explicações possíveis é o tormento dos antropólogos estruturalistas: é que os pirahãs tem uma característica singular, inesperada para qualquer povo do qual se estude a cultura. E talvez isso explique até mesmo as discrepâncias de sua linguagem.

Everett era um missionário cristão, e, como tal, tinha que praticar os mandamentos de sua religião. Um deles é seu caráter apostólico, ou seja, não basta que exista uma comunidade específica de crentes, mas é preciso buscar convencer outros povos e outras culturas da validade de sua religião. Os indígenas em geral são animistas, têm vários deuses que estão relacionados diretamente a elementos naturais e com ritos de curas espiritualizados. Em suma, um terreno fertilíssimo para desenvolver proselitismo religioso. É claro que um missionário não chega chegando, mas trata de primeiramente conhecer os ritos e cultos locais para depois oferecer as vantagens de sua própria religião. Como vem de países tecnológicos, costumam assombrar os povos autóctones, de modo a passar neles algum tipo de sensação de vantagem na conversão. E com isso vai se descortinando a cadeia de convencimento.

Acontece que Everett encontrou dificuldades em encaixar seu cristianismo aos pirahãs. Primeiramente, não conseguiu traçar paralelos entre os mitos de criação cristãos, porque estes não existem entre os pirahãs. Depois, percebeu que, embora os indígenas conhecessem meios de cura através do uso de plantas e outros subterfúgios naturais, eles estavam completamente desvinculados de rituais. Mais para frente, notou que não havia ritos mortuários entre eles. Na morte, os defuntos são enterrados e pronto. Nenhuma marca, nenhuma forma de lembrar o local do enterro, nada. Mais importante: não há entre os pirahãs nenhuma expectativa de post mortem. Acabou, acabou; punto e finito.

Os pirahãs, até que se tenha notícia, são o único povo ateu do mundo. Pessoas ateias existem aos montes no mundo, mas sempre inseridos em uma cultura geral que possui divindades, e que acabam sendo influenciadas por ela. Uma das grandes bandeiras do estruturalismo está na presença de formas religiosas em todas as sociedades do mundo, e uma exceção como essa traz o mesmo problema trazido à questão linguística. A questão é tão controversa que até mesmo teses como a teoria dos arquétipos de Jung recebem seus espirros.

Talvez isso explique muita coisa. Se não há mitos de criação, isso denota um desinteresse pelo passado. E se não há expectativa de vida após a morte, parece possível pensar em um desapreço pelo futuro. Os pirahãs vivem para o presente e os acessos a passado e futuro são curtos, tipo preocupações com a janta. Esse desligamento com uma ancestralidade e com uma posteridade tornou inútil a criação de elementos linguísticos que representem tempos distantes. Se eu não estou preocupado com o preço do dólar, por que raios eu quereria aprender sua origem nas moedas de prata de Joachimsthal? Sendo assim, buscar o passado ao ponto de elaborar um mito de criação seria um contrassenso, e isso se espelha na linguagem, ora essa. Como é um povo do concreto, do real, do tangível, os pirahãs não acreditam em nada que não possa ser presenciado. A partir do momento em que um relato não parte ao menos de um testemunho ocular, tudo vai por água abaixo. Eles não se apegam à história do “sentir no coração”. Sentido, para eles, é o que eles veem, ouvem, tocam. Pode parecer algo primitivo, mas não é, não. Não é exatamente o que se espera da Ciência?

Há muita controvérsia nos trabalhos de Everett, e há um grande mal-estar entre ele e os acadêmicos adeptos da tese consagrada, que usam todas as formas de esperneio contra o ianque. É preciso colocar muitas coisas à mesa. Sua longa vivência entre os nativos é uma das grandes ferramentas ao seu favor, e, embora tenha se dedicado ao estudo da linguística com mais profundidade somente após seu contato inicial com os índios, não há motivos para acreditar que seu trabalho não seja, ao menos, sincero.

Minha resposta ao embate é a mais honesta possível: não sou linguista, então não tenho competência suficiente para me posicionar. O que tiro disso tudo é filosófico: a Filosofia da Ciência prega que a verdade não é eterna, e que só é possível se aproximar dela. Resistir a uma tese oposta é saudável, mas devemos lembrar que teorias podem ser ajustadas. No caso em tela mesmo temos uma grande lição. Se Everett estiver certo, há duas escolhas possíveis: ou descartamos a teoria da gramática universal como está, ou desqualificamos os pirahãs como seres humanos. O que você prefere?

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Segue a citação do livro mais popular de Daniel Everett.

EVERETT, Daniel. Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade. São Paulo: Contexto, 2019.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Será que as línguas são mais próximas entre si do que podemos perceber?

Olá!

Nestes dias de implantação em Taubaté, há naturais dificuldades para quem não é nativo. A localização das coisas, como caixas de banco, postos de gasolina e comércio em geral nem são tão problemáticas para quem vem de Sampa. Idem se aplica a serviços públicos: uma semana ou duas são suficientes para pegar balanço e se arranjar bem. A dificuldade maior, para este confidente que vos fala, é a comunicação. O pessoal do interior, especialmente a velha guarda, é de uma simpatia extrema, que conversa contigo com a naturalidade de quem te conhece há anos. Já conhecemos bem umas dez pessoas de ir até a casa, com menos de um mês de residência da secundogênita. Há um probleminha, porém. Essa naturalidade que citei é tão grande que chega a parecer que você, neófito, mora lá desde sempre, e muitas das referências são estranhas para mim. Além disso, há uma diferença de linguajar onde nem sempre o contexto é suficiente para a compreensão. Por exemplo, quando o pedreiro disse que ia pegar um peruzinho, resolvi fenomenologicamente suspender o meu juízo para não pensar nenhum tipo de bobagem. No fim, nada mais era do que buscar uma carriola para carregar a areia para dentro de casa.

A vida tem dessas coisas, que nada mais são que uma questão de habitualidade. Mas não posso deixar de notar uma certa semelhança nos linguajares, tanto na sensação inicial de estranhamento, quanto na percepção de que, estruturalmente, não há grandes diferenças no modo de falar na terra do raio vívido. Trocam-se as palavras, trocam-se os sotaques, mas sempre o pedreiro vai buscar alguma coisa, e conseguimos nos entender. Afinal de contas, carriola, carrinho de mão, tombador, peruzinho ou galinhota são maneiras regionais de se referir à mesma coisa, sem nenhuma outra diferença a não ser o nome em si mesmo. É uma questão de se conhecer sinonímias.

Pensando um pouquinho melhor, relembro de outras quatro línguas, cada uma presente em mim com seu tanto de história pessoal. Tem o espanhol da macróbia tia Antônia, que fazia melhor quando não tentava misturar com o português. Tem o italiano meio sujo do nonno, melhor corrigido quando precisei aprender a norma culta na marra, para aproveitar textos de Filosofia raros em português. Tem o pouquinho de francês que aprendi na escola primária, o que é uma prova ainda mais inequívoca de minha idade do que as rugas que carrego na cara. E também tem o inglês que a carreira paralela de informata me obriga. Guardadas para cá, puxadas para lá, todas carregam alguma semelhança, com diferenças significativas no vocabulário, mas sem tanta variedade em suas estruturas mais profundas. Afinal de contas, todas elas possuem uma série de fatores que, dentro de sua variabilidade, cumprem a mesma função dentro do contexto linguístico. Vejam como são parecidos os exemplos:

Eu sou brasileiro

Io sono brasiliano

Yo soy brasileño

Je suis brésilien

I am Brazilian

Ou seja, um sujeito e um predicado: alguma coisa e o que essa alguma coisa recebe de qualificativo, intermediados por um verbo. Isso significa que há mecanismos na linguagem para designar alguém, para qualificá-lo e para indicar uma ação ou estado, como no exemplo acima. Em todos esses idiomas há esses elementos e uma maneira correta de arranjá-los, que são bastante aparentados entre si.

Claro que sempre poderá ser dito que todos esses idiomas são do tronco indo-europeu, e por isso as variações são relativamente pequenas. Mas os dravídicos e uralo-altaicos da vida não são tão distintos assim quando olhados em sua raiz. Também eles têm diferenças gigantescas quando pensamos nas palavras e na maneira como são organizadas, mas que possuem muitas coisas parecidas quando cumprem sua função de refletir o mundo e as manifestações interiores.

Eu poderia me achar um gênio por ter feito essa descoberta, mas é claro que não estou com essa bola toda. As diferenças e semelhanças entre as diversas línguas não são tão difíceis de perceber, e isso não passou ao largo dos linguistas modernos, sendo que a principal corrente em voga foi inaugurada pelo filósofo estadunidense Noam Chomsky, um dos maiores ainda vivos.

Não dá para tentar explicar as teses de Chomsky sem passar pelo Estruturalismo reinante na Filosofia e na Antropologia do século XX, portanto é preciso passear um pouco. Segundo diziam estes pensadores, em tudo o que for humano, haverá uma estrutura subjacente que se reproduz em cada caniço pensante que caminhar sobre este combalido planetinha. Fisicamente, isso é fácil de perceber: cabeça, tronco e membros, mesmo que seja para perceber sua ausência. A questão é que não é estrutural somente o corpo, mas tudo o que há nele e emana dele, incluindo a cultura e as sociedades. Isso faz com que esses elementos variem essencialmente em seus conteúdos, mas não em suas formas. É como se os sistemas sociais e culturais fossem estantes, que sempre são compostas por prateleiras, mas que contém seus próprios livros e discos, de acordo com conhecimento e preferências.

No modelo estruturalista, a cultura de um povo é, portanto, diversa de outro em seus preenchimentos, mas não em seus alicerces. Portanto, quando migrada do conjunto social para o indivíduo, o que temos é uma transmissão de conhecimento. Um indivíduo não é nada sem o meio social onde vive, e isso incorpora a linguagem, que é exatamente um dos elementos culturais comuns a todos os povos. Dessa forma, a linguagem seria a coletânea de ajuntamentos de palavras com algum sentido, ou seja, as frases. A linguística, para o estruturalista, é o estudo dessas frases e seus usos. É aqui que entra a critica do velho Noam, que não vincula linguagem à cultura, mas à natureza. A linguagem não é adquirida, mas inata, e essa é uma novidade sem precedentes.

Chomsky diz que a linguagem funciona com se fosse um órgão, que todos nós, bípedes implumes, já nascemos tendo. Essa faculdade da linguagem funciona mais ou menos assim: pensemos em um coração. Ele pode ser perfeito ou ter lá suas escleroses. Seus ventrículos podem ser maiores ou menores, suas aurículas podem estar rígidas ou flexíveis, suas válvulas podem estar em ordem ou em refluxo, as coronárias menos ou mais entupidas, mas fundamentalmente sua função é a mesma: através de um mecanismo de contração e relaxamento, tocados pelos impulsos elétricos do próprio corpo, faz o bombeamento do sangue pelo organismo, o que permite a este espalhar oxigênio coletado nos pulmões. Esse é o funcionamento de qualquer coração. E ele é parte do organismo humano. Quem nasce sem, nasce morto.

O órgão da fala, logicamente uma área cerebral específica, funcionaria de maneira similar. Mesmo que haja variações de humano para humano nas questões do vernáculo, das regras gramaticais, da ortografia e por aí vai, há uma estrutura comum a todas as línguas, principalmente porque elas têm a mesma função comunicativa que deriva de um mesmo modo de funcionamento. Esse órgão da fala é inato, todos nascemos com ele, e por isso as linguagens, em alguma medida, guardam um grau de semelhanças, como se fossem o tal coração.

As línguas possuem uma estrutura interna e outra externa. A estrutura interna é exatamente essa existência da capacidade de se articular uma linguagem em pensamentos, a função principal do tal órgão da fala. Por ser biológica, ela é inespecífica, ou seja, não se aplica a um idioma em especial, mas a todo e qualquer idioma, inclusive nos artificiais. Já a externa é a língua consensual dos grupos de falantes, que são construídas em cima da base dada pela estrutura interna.

O principal erro de foco nas ideias estruturalistas, segundo Chomsky, está naquilo que elas estudam. Se o estudo da linguagem se resumir ao acúmulo das frases geradas em uma determinada cultura, teremos um erro substancial, porque a produção de frases é infinita, e, ao fim e ao cabo, qualquer determinação de regra se torna sem propósito. O que deve ser estudado não é esse acervo infinito de frases, mas o sistema que as gera indefinidamente, com núcleo na sintaxe, e não na ortografia ou no vocabulário.


Mas, e aí? A organização sintática das frases nas diferentes línguas é tão variável quanto os demais fatores. Há idiomas em que o sujeito aparece à frente do predicado, intermediados pelo verbo, enquanto há outros em que a ordem é invertida, ou ainda terceiros onde o verbo aparece por último, só para citar uma amostra. Como essa tese se sustenta?

Vamos fazer uma analogia usando os esportes com bola. Se compararmos futebol, basquete e vôlei, veremos que as regras de um nada têm a ver com os outros. Tudo é diferente: duração, critério para anotação dos pontos, quantidade de jogadores ativos e reservas, dimensões do espaço, possibilidade de empate, arbitragem, equipamentos e uniformes, material do piso, formato da meta, função de cada atleta, interrupções dos períodos e muitas outras coisas. Além da existência da bola (que também é diferente para cada esporte), nada parece coincidir nas suas práticas.

Mas essa sensação se dá porque nos atentamos ao modo com o qual se pratica o jogo, e não como essa prática dá conta dos seus objetivos. Em todos eles, há um substrato comum composto pelo que nós vamos apelidar de sintaxe. A linguagem do jogo é que haverá uma disputa, com o seguimento de regras e que inclui o atingimento de metas. Não importa se serão usados chutes para fazer gols, arremessos para fazer cestas ou cortadas par cravar pontos... essas são variações de sintaxe, mecanismos que são utilizados para atingir o objetivo. Estruturalmente, os jogos são os mesmos. Nas frases, temos a mesma coisa. Cada sintagma tem um objetivo, e, se ele é cumprido, cumpriu também sua função sintática.

O órgão da linguagem, por conseguinte, já é geneticamente construído para dispor as estruturas de linguagem de maneira que sejam compreensíveis, e, como se aplica a qualquer ser humano, é igual em toda parte do globo. Como a pele, que pode ser negra, branca ou amarela, mas que é, antes de tudo, pele: formada por tecido epitelial de revestimento, em duas camadas, com escassa matriz extracelular e que serve para evitar ações microbiológicas patogênicas, manter a umidade do organismo e reduzir os impactos mecânicos. A essas estruturas sintáticas que regem todas as linguagens, Chomsky deu o nome de gramática universal. Embora os estudos sobre as suas características sejam bastante complexos, vou elencar as mais comuns, tentando, do meu jeito, traduzir o que significa cada uma delas:

 

As línguas possuem sistemas de numeração

Em todas as línguas existe alguma maneira de se produzir contagens e numerações. A principal maneira se dá através de numerais, que indicam ordem, multiplicidade, fracionamento, quantidade e ademais mas há também outras palavras que, apesar de não identificar números com exatidão, dão noções mais ou menos aproximadas de quantidades, como “muito”, “pouco”, “demais” e assim sucessivamente.

 

As línguas têm sujeitos e predicados

Boa parte de qualquer sistema comunicativo envolve uma relação entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido. Pensemos em nossos filhos quando eram nenês. Apontávamos para as coisas e dizíamos qual era o seu nome, falando bem devagar e separando as sílabas. Quando fazíamos isso, nada mais estávamos exercitando a faculdade de qualificação da linguagem em nossas crianças. Em todas as línguas existe uma correlação entre um agente e uma ação, ou seja, um sujeito e um predicado. É dessa predicação que a linguagem reflete a dinâmica do mundo.


As línguas derivam de herança genética

A formação do léxico se dá de maneira muito semelhante aos mecanismos de seleção natural da Teoria da Evolução. Isso significa que as línguas têm ancestrais comuns, que foram se transformando na medida em que as necessidades linguísticas dos povos foram exigindo que os usos mais bem adaptados prevalecessem sobre os demais. Assim, o português tem uma montanha de línguas aparentadas, mas pelo fato de ser descendente do ibérico, tem conexões que são exclusivas com sua língua irmã, o espanhol. Num movimento ascendente, chega ao românico, ao latim, ao indo-europeu e a alguma forma de uga-uga primordial. Ora (direis), mas há palavras que são completamente desconexas entre si, não sendo detectável qualquer tipo de parentesco. É verdade, mas, se é fato que a faculdade da linguagem é inata, é de se esperar que ela surgisse onde houvesse qualquer humano, e não seria muito correto imaginar que os homens de Java falassem da mesma forma que aqueles da África, gerando raízes linguísticas diferentes. Portanto, não é a existência de um tronco linguístico único que caracteriza a herança genética, mas a capacidade de um idioma redundar de outros, em escala evolutiva.


As línguas usam elementos negativos para inverter o sentido das frases

Sempre existem nos idiomas maneiras de inverter o sentido de uma frase, fazendo com que ela se torne negativa. Em português, temos os advérbios de negação, como não, nunca, jamais e etc. Por exemplo, se eu digo “Vou ao cinema”, basta inserir a partícula “não” para que se negue a afirmação.

 

Todas as línguas têm vogais e consoantes

As vogais são os elementos básicos da fonação, porque não dependem de nada mais do que o ar que passa e do formato que a boca adota. Uma língua que somente adotasse vogais pareceria um amontoado de vagidos infantis. Já as consoantes passam por algum tipo de obstáculo no aparelho fonador, e são muito mais variáveis. Línguas compostas unicamente de consoantes são impossíveis, porque elas necessitam das complementações das vogais. Notem que não existem sílabas sem a presença de vogais.

 

As línguas funcionam em um esquema de dupla articulação

Articulação significa a maneira como elementos diferentes interagem entre si, como se fizessem uma única unidade. Na linguagem, essa articulação é dupla: primeiramente, das palavras entre si; depois, dos fonemas que compõem as palavras. Assim, sempre que se objetiva expressar uma ideia, há uma maneira correta como as palavras devem ser introduzidas em uma frase e como os fonemas devem ser ordenados em uma palavra. Exemplo: se colocarmos as palavras "terrário de precisando minhocas água as do estão", teremos uma mera explosão de palavras com um sentido impossível de se obter. Se a ordem for "as minhocas do terrário estão precisando de água", teremos uma boa articulação entre as palavras, e a ideia estará expressa corretamente. Idem com os fonemas: “nhasimoc”, foneticamente falando, não quer dizer nada, ao contrário de m/i/nh/o/k/a/s, onde os fonemas estão perfeitamente articulados para denotar os simpáticos anelídeos.


Todas as línguas denotam temporalidade

As línguas sempre possuem sintagmas que servem para situar um acontecimento no tempo, com maior ou menor sofisticação. Isso significa que há mecanismos que possibilitam saber se uma determinada ação ou evento estão ocorrendo agora, no passado ou no futuro.

 

As línguas possuem recursividade

Vou lembrar aqui daquelas alegres senhorinhas que vivem nas janelas criando calos nos cotovelos, e nos quintais fazendo as reportagens das vizinhanças. Minha mãe me mandava entregar suas costuras não só quando estava apinhada de serviço, mas quando queria evitar uma delas. Quando a charla começava, tendia ao infinito. Que “a calça era pra filha, que tinha uma amiga que (meniiiiiiina!!!) era mais espevitada que aquela atriz, lembra?, que fez um filme com aquele galã que parecia tanto com o filho da quitandeira, e por falar nisso a balança dela rouba pelo menos metade do peso... também, com o marido dela que está mais preocupado em olhar os rabos de saia da rua do Toco, sabe aquela rua que a prefeitura só asfaltou pela metade, onde vai parar esse país”...

A ideia aqui é a seguinte: diante de uma quantidade finita de elementos, como as letras e as palavras, a linguagem consegue encaminhar as possibilidades de expressão ao infinito. As línguas, para fazerem isso, possuem uma ferramenta conhecida como recursividade, que é a capacidade de mesclar frases, tanto em sequência, quanto interiormente. Se dissermos o seguinte...

Minha mãe fez uma calça que serviu bem na filha da dona Toninha

...temos duas ideias concatenadas, a da feitura da roupa e a do bom ajuste à menina. Mas podemos inserir uma outra frase entre elas, que só tem um sentido prolixo, mas que enriquece o conteúdo expressado:

Minha mãe fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha.

E isso pode seguir ao infinito:

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha.

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha, que tem 12 anos de idade.

Minha mãe varou a noite e fez uma calça que, como se podia esperar, serviu bem na filha da dona Toninha, que, assim como minha irmã, tem 12 anos de idade.

A recursividade é a grande pedra de toque da Teoria Gerativista de Noam Chomsky, de modo que esta característica acaba sendo a mais bem acabada expressão do que ele queria dizer. Os níveis de criatividade da linguagem correspondem à própria criatividade da espécie, que domina essa ferramenta a tal ponto que esta não encontra limites, e a grande novidade chomskyana e de seus seguidores foi vincular a linguagem às instâncias psicológicas, de modo a deduzir os mecanismos que fazem com que a língua seja gerada. Essas ideias todas construíram uma teoria sólida, que é grandemente adotada até hoje pela academia.

Mas há problemas, e nós vamos abordá-los no próximo texto. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É leitura fácil? Não exatamente. Mas também não é uma esfinge pronta para te engolir. E é um grande escritor... Voltarei a ele para outras temáticas.

CHOMSKY, Noam. Estruturas Sintáticas. Petrópolis: Vozes, 2015.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O café filosófico do quotidiano – a difícil retomada do símbolo sequestrado

Olá!

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Sob pressão. Este poderia ser o slogan da cafeteira Pressca, marca registrada para um tipo de prensa que consegue manter o café quentinho por mais tempo. É uma vantagem considerável, se levarmos em conta a temperatura declinante desses fins de outono, principalmente quando a consorte reclama da frieza do líquido. É um método bacana, que pode ser facilmente levado à beira da cama.

Não deixa de ter seus rituais, apesar da aparência modernosa. O grão vai para o fundo do equipamento, que recebe a água quente e fica lá, expandindo e soltando seus óleos essenciais pelo tempo necessário. O êmbolo oco é pressionado fortemente para ocorrer a transferência, porém sem exageros para que o conjunto não vaze como um todo.

Daí para frente, é só utilizar a biqueira da tampa para derramar a quantidade desejada do líquido, em uma reserva de temperatura mais alta do que outros cafés prensados, dado o isolamento térmico produzido pelo espaço entre o pistão e o êmbolo.


Nome do utensílio: Cafeteira portátil Pressca - prensa térmica

Tipo de técnica: café prensado

Dificuldade: Média

Espessura do pó: Médio a grosso

Dinâmica: o café é colocado no fundo de um pistão e infundido. Para a separação do líquido e do pó, um êmbolo com filtro é pressionado pelo percurso do pistão. A água é transferida para o interior do êmbolo através de um elemento filtrante.

Resíduos: Moderados.

Temperatura de saída: Alta

Nível de ritual: médio

Eu gosto do conjunto como um todo, mas a corzinha amarela predominante me causa uma certa cólica. É que o tom me lembra a camisa da seleção brasileira, uma das mais tradicionais do mundo, mas que virou uniforme de guerra de um tempo para cá. O café que sorvo me faz acordar do ranço que me toma, a ponto de utilizar o método com algum nível de raiva. Uma bobagem completa, mas que guarda seus fundamentos. Vamos a eles.

Nos últimos dias, uma nova polêmica daquelas desnecessárias em Terra Brasilis. Por conta da pandemia infinita, a Argentina e a Colômbia desistiram de sediar a Copa América, competição entre seleções mais antiga do mundo, mas que vem sendo surrada pelas repetições sem critério nos últimos tempos. Sem perda de um segundo, e com amplo apoio do governo federal, o torneio foi transferido para o Brasil, país que não possui um dos melhores índices de controle do mundo. Haveria muito para discutir sobre, mas quero pegar um aspecto mais pessoal: independentemente de coronavírus, não tenho nenhuma vontade de que o torneio aconteça, irrelevante que se tornou.

Ora (direis), mas tu, que buscas futebol nas mais minúsculas circunstâncias, que buscas os pequenos campos das pequenas cidades que visita, que te juntas a cem ou duzentas pessoas para ver o Nacional jogar em casa, que madrugas no domingo para queimar a tampa da cabeça na Javari, que baixaste o app da Federação para acompanhares a série B do Campeonato Paulista, que sentes um véu de angústia em toda véspera de decisão que envolva um time caro ao seu coração, por que desprezas justamente aquela que seria a representante maior do gosto futebolístico?

O assunto é complexo. De fato, sempre gostei de acompanhar jogos da seleção, pelo óbvio motivo de ver ali coligidos os principais atletas dos campeonatos que acompanhava. Não era somente uma questão de ter um suposto futebol de melhor qualidade, mas também de corroborações das minhas opiniões sobre as melhores escalações e, melhor ainda, de ver os ídolos do meu time representar o país. Mais ainda, havia um clima pacífico de união de forças em um mesmo sentido, que não era possível de se obter nos torneios de clubes. Verdes e alvinegros, tricolores e rubro-negros, colorados e mosqueteiros, galos e raposas se juntavam em torno de um só grito, especialmente nas copas do mundo, um dos maiores rituais coletivos da brasilidade.

Acontece que esse espírito foi todo perdido progressivamente através dos anos, e agravado recentemente. Quando eu tinha meus dez anos, a imensa maioria dos jogadores que compunham o onze canarinho jogava no Brasil, e a mítica seleção de 82 tinha gente do São Paulo, do Flamengo, do Atlético, do Corinthians, do Vasco, do Palmeiras, do Inter, da Ponte, do Grêmio, do Fluminense, do Botafogo, quase todos os grandes tinham seu representante. Os “estrangeiros” Falcão e Dirceu já eram consagradíssimos em solo nacional. Times como Portuguesa, Guarani, América e Bangu forneciam suas revelações constantemente ao escrete. Depois, a partir da década de 90, os melhores jogadores foram saindo do país cada vez mais jovens, ao ponto de nem passarem por aquele ciclo de despontar em um time menor, ser contratado por um grandão e daí sair para o exterior. Além disso, países antes exóticos no sentido futebolístico passaram a integrar o circuito, fazendo com que promessas da base simplesmente sumissem da mídia. Sem nenhuma ofensa, mesmo eu, que sigo o futebol miúdo, não faço a menor ideia do que rola nos campeonatos da Tailândia ou do Vietnã. Mas há brasileiros lá, e não são poucos.

O resultado foi a formação de seleções com legítimos desconhecidos. Em um time de copa, há dois ou três jogadores realmente famosos, com outros dois ou três que ainda dá para se lembrar, e o resto é só de gente que eu nunca ouvi falar, que saiu muito cedo do Brasil, como foi o caso dos relacionados para a malograda copa de 2014. É muito difícil criar identidade com atletas que não comeram da nossa grama, embora nos sejam conterrâneos.

Há outro elemento, porém. E muito mais significativo. Quem não vive em um buraco de tatu sabe que, desde 2013, vivemos em Terra Brasilis um momento de polarização insuportável. As positivas manifestações contra um aumento de tarifa foram, como eu temia, apropriados por um discurso muito mais difuso e inespecífico, que, se por um lado continua trazendo uma indignação justa, por outro fez brotar uma espécie de erva daninha que, ao fim e ao cabo, chegou ao Planalto. Junto com ela, veio uma forma de representar que simplesmente assaltou os símbolos pátrios, notadamente as cores da bandeira, o que inclui a camisa amarela do escrete tupiniquim, como se eles fossem os únicos patriotas do Brasil.

Isso está longe de ser verdade, haja vista a intensa submissão aos Estados Unidos e a Israel, principalmente*. Por outro lado, as ditas esquerdas, o centro e mesmo a direita menos raivosa não são contrárias ao país, mesmo que se possam abrir infinitos parênteses. Acontece que uma sutileza pouco perceptível a princípio abriu uma brecha monumental para a apropriação dos símbolos brasileiros: a vinculação a outro símbolo, o do PT, o principal partido da esquerda, junto de seus asseclas CUT e MST, todos com suas bandeiras e camisetas vermelhas. Com os casos de corrupção e sede de poder, ficou fácil de vincular toda uma camada de pensamento à cor vermelha, que representaria uma ameaça comunista, porque isso mexe com os medos mais entranhados da casta conservadora - a ameaça ao sagrado direito da propriedade. Além disso, outros motores foram acionados, dada a corrupção e ineficiência no trato estatal, o que aumentou o poder do símbolo: são entidades contrárias ao país, ao ponto de rejeitar nossas cores, no dizer dos retrocitados.

E com isso tivemos a tomada do símbolo, e a própria indisposição com a seleção me faz pensar na precisão das constatações de Pierre Bourdieu, sociólogo francês que compreendeu muito bem o que é esse poder simbólico, representado, no seu mais alto ponto, pela bandeira estrelada do Brasil. Somos marcados pelo poder que os símbolos têm sobre nós. E nos reconhecemos como subordinados a esses símbolos, porque estamos em um polo passivo. Nem mesmo percebemos isso. Esfregam a bandeira na nossa cara como se ela não fosse nossa também, como se quem a brandisse estivesse dizendo que não temos direito a ela, até que, de saco tão cheio, queremos nos afastar dela, porque passa a nos oprimir, e não nos representar.

Esse poder simbólico é tão imperceptível assim? É, sim. Se alguém acha que eu escrevo bem, enxerga em mim alguém que vem da academia, e desde os tempos do império a universidade é um distintivo de elitismo, a quem é reconhecida uma autoridade que não vem das armas, mas da interiorização de uma inferioridade. A palavra de um acadêmico tem mais autoridade que a de um leigo, não porque de fato aquele tem uma carga maior de conhecimentos, mas porque pertence à classe dominante. Criam-se mecanismos de acesso às pessoas mais pobres, como quotas, financiamentos e exames, e o que se tem é o jus sperniandi de quem precisa ceder espaço. E, de volta, essas coisas não são berradas nas esquinas, mas tratadas como se fossem naturais.

Por isso o poder simbólico é também um gerador de violência simbólica. Quando dizemos que a bandeira nos é arrancada das mãos, e que a camisa da seleção não serve para quem não se alinha ao atual mandatário, temos um ato de violência contra nós; não porque nos faça sangrar ou crie hematomas, mas porque nos tira liberdade, tira-nos a identificação, tira-nos o direito de usar os símbolos pátrios de maneira legítima, ou, pior ainda, de maneira confortável. Eu confesso que morro de vergonha de lhes contar que há, no fundo da minha gaveta, uma camisa da seleção brasileira, já cheirando a naftalina. Mas é direito legítimo meu utilizá-la. Não é violento que eu não o possa fazer? Que isso represente um peso para mim?

O caso é que o governo atual vem fracassando miseravelmente. Há muito contrassenso desde o começo de suas ações, como indicações nepotistas e vínculos a (ora vejam) ações corruptas, como rachadinhas e distribuição de verbas parlamentares, tão combatidas no discurso eleitoral. Dessa forma, todo mundo que já não está fanatizado vê o tamanho da esparrela em que se meteu.

Mas, como eu disse, há os fanáticos, e estes ainda seguram a peteca do atual mandatário, principalmente porque o barulho que produzem é intenso, em especial nas redes sociais. O símbolo da seleção canarinho ainda é tão intenso que qualquer coisa de duas pernas trafegando na rua com a camisa verde-amarela já identifica um deles, mesmo que não seja. Com isso, mesmo que a camisa da seleção esteja perante nós para a pegarmos de volta, há tanta vontade no polo oposto que ainda não se consegue esquecer que seu sentido é cada vez mais pejorativo. Agora não seríamos somente patriotas; seríamos radicais.

E como fazer para resgatar o símbolo perdido? Esta é a pergunta que evola junto ao fumegar do meu café?

As manifestações de rua poderiam ser um começo de solução, porque temos comportamentos de manada. Contudo, algo me fez coçar o piolho. No dia 29 de maio último, a oposição saiu do buraco e resolveu afrontar a pandemia. O que poderia ser uma espécie de alento imprudente me trouxe uma preocupação muito grande: lá estava o mar vermelho de novo, pronto para tomar as mesmas pedradas de antes. Qualquer pessoa que discorde do mandatário atual et magna comitante caterva, mas não se alinhe com PT e congêneres, não se sentirá minimamente compungido a aderir à rediviva causa. Mais do mesmo, dirão.

O caso é de se pensar o que se quer de mais imediato, e, a partir disso, deixar as cores identitárias de lado pelo tempo necessário não só para a coalisão, mas para a retomada do que nunca deveria ter deixado de ser nosso. É preciso deixar claro que essa ambiguidade entre as cores de uma causa e as cores nacionais simplesmente não existe, e que o uso da camisa da seleção não fornece a ninguém um atestado de patriotismo. Mas não basta vestir a camisa e sair por aí. É preciso que o verde-amarelo esteja lado a lado com as causas que se pretendem defender, inclusive (e principalmente) as manifestações de desagrado com aqueles que nos tungaram o direito ao símbolo.

Se acaso o rumo não mudar drasticamente, será um processo lento, disso não tenho nenhuma dúvida, e que incluirá uma boa parte da proverbial memória curta atribuída ao brasileiro. Talvez a próxima copa que já se avizinha, mas que será realizada após o pleito presidencial no Brasil, seja uma boa oportunidade para o resgate desse símbolo, já devidamente livre daqueles que o tomou como seu.

Perdi a bronca da cafeteira amarela, mas senti um certo gosto de pimenta no café sorvido. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

A obra de Bourdieu é extensa e toda cheia de concatenações. Inevitavelmente vou voltar a ele, mas, por ora, recomendo este libreto, que pode ser lido rapidamente.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

* Embora a associação fosse mais com pessoas do que propriamente com países, como Trump e Netanyahu, que, aliás, já caíram. Vejam como a posse de Joe Biden reduziu dramaticamente a quantidade de referências à terra do Tio Sam.