Antes de começar a elaboração de qualquer texto, é de bom
tom que se faça algum roteiro básico de escrita. É muito raro que eu saia
digitando ao correr da pena. Isso me parece método mais apropriado para os
poetas e, como não tenho intenções líricas, é natural que eu pense um pouco
antes de desenvolver a tese em si. Acontece que no começo da presente faina, eu
travei. Isso porque, mesmo no mundo acadêmico, que busca ser metódico e
padronizado, nem sempre é fácil obter consenso. E este é o problema que
encontrei ao começar a descrever o tema em referência: o conhecimento.
Ora encontra-se uma sinonímia entre os termos, ora
encontra-se distinção, ora encontra-se um grande guarda-chuva que cobre a si
mesmo e aos outros. Optei pelo caminho mais pedregoso e tratarei de cada um
deles isoladamente, até mesmo para espantar a preguiça. Vou iniciar
apresentando um esqueminha básico da tese que adotarei:
Desta forma, a Teoria do Conhecimento é a área da Filosofia
que aborda o conhecimento humano e pode ser dividida em duas partes: a
Gnosiologia, que trata do ato cognitivo em si; e a Epistemologia, que cuida da
verificabilidade do valor do ato cognitivo. Tudo isso costurado pela ferramenta
de correspondência e coerência cognitiva chamada de Lógica. Vamos erguer as
velas.
O ato cognitivo sempre foi uma característica absolutamente
diferenciadora do gênero humano. Sim, os animais também têm a capacidade de
apreender a realidade que os rodeia, em maior ou menor grau, mas a capacidade
de realizar abstrações significativas faz parte do equipamento mental dos
bípedes implumes. A maior mostra disso se dá no uso de símbolos, altamente
sofisticado na espécie e que se dá de maneira recursiva: há o símbolo, o
símbolo do símbolo, o símbolo do símbolo do símbolo e assim por diante. Dou um
exemplo neste texto. Essa característica faz com que fujamos do mundo
concreto da mera percepção e que lancemos perguntas do tipo “por que as coisas
são como são?”.
Falei sobre a curiosidade humana no texto inaugural deste empreendimento, e ela é o propulsor do conhecimento. Basta que se observe o
comportamento das crianças. Todas elas passam por aquela famosa fase das
perguntas seriadas e inconvenientes, levadas ad nauseam. Não sejam impacientes com seus rebentos, eles estão
apenas exercendo seu ofício de seres humanos. O mundo é pleno de informações
com as quais os fedelhos ainda estão aprendendo a lidar.
Mas, na essência, o que é esse tal de conhecimento? O
próprio estudo da etimologia da palavra já pode nos dar algumas dicas. A
palavra conhecer vem do latim cognoscere,
que, por sua vez, é a fusão de dois termos de origem grega: co, que significa com, junto; e gnomé, que dá a ideia de noção, entendimento.
Portanto, conhecer significa ter noção, ter compreensão. Entendemos alguma
coisa quando vinculamos aquilo que observamos a algum significado. Esse
processo é absolutamente natural em nossas mentes. Sempre que nos é apresentado
algo com o que não conseguimos fechar a cadeia intelectiva, temos aquela
sensação de estranhamento tão frequente nas crianças. É a busca pela noção,
pelo entendimento, pelo conhecimento.
Era de se esperar que, tendo essa sanha em conhecer, o homem
passasse a procurar explicações sobre o próprio conhecimento, e isso foi a mola
que impulsionou toda uma gama de pesquisas que veio culminar com as
neurociências. De fato, o cérebro é mesmo uma coisa prodigiosa. Ele tem a
capacidade de perceber um determinado fenômeno e disparar uma longa sequência
de impulsos para resgatar algo igual ou semelhante na memória. Quando não
consegue fazê-lo, absorve a informação nova e grava uma imagem mental desta (ou
vai sofrer uma dissonância cognitiva, mas esse tema só vai atrapalhar no
momento). A partir daí, há a formação de uma ideia. Já não é com a concreção
pura que lidamos, mas com a ideia que fazemos do objeto concreto. A partir daí,
todas as vezes em que um juízo for construído, esta imagem mental substituirá o
objeto concreto. Essa usina permanente de associações se alarga cada vez mais,
de forma a se formarem faculdades ainda mais amplas: os conceitos, representações imateriais da realidade que nos dão noção do tempo e do lugar de
cada um dos fenômenos. Isso permite ao pensamento articular conteúdos não
presentes, o que é o nascedouro da abstração; esta última, por sua vez, permite
ao ser humano algo incrível: estruturar possibilidades. Para imaginar um novo
aparelho, uma nova propriedade química, um novo tratamento médico ou seja lá o
que for, não é preciso que a coisa exista (até mesmo porque, do contrário, a
coisa não seria nova), mas que se tenha a capacidade de juntar lé com cré e
notar que eles tem um nexo entre si. Digamos que lé seja o vento e cré seja a
vela. Um belo dia, alguém percebeu que o vento tem a capacidade de empurrar
objetos. Ok, que brilhante. Essa mesma pessoa percebeu também que os tecidos
têm flexibilidade e resistência suficiente para serem arrancados do varal. Por
quem? Sim, por ele, o lé, o vento. E daí a estruturação do pensamento fez a
esse primevo nauta elucubrar que, se o tecido fosse suficientemente grande e
eficazmente fixado, poderia servir de propulsão a um barco, propiciando repouso
aos pobres braços de empenhados remadores. Esse é o princípio básico do funcionamento
cognitivo: conhecimento gera conhecimento.
O que pudemos notar até agora? O conhecimento não se dá no
vazio, nem é unívoco; é uma relação que sempre tem dois protagonistas: um
sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Em português: um cara que observa
e uma coisa que é observada. Vejam que a relação é obrigatoriamente dicotômica;
um sujeito sem objeto está vagando e andando, um objeto sem sujeito é como se
não existisse. Eu (sujeito) olho a pedra (objeto). Alguém (sujeito) lê um livro
(objeto). Um professor ministra uma aula (objeto) a uma classe (sujeito). Aqui,
temos algumas pegadinhas. O professor não é o objeto, mas o meio pelo qual o
conhecimento é exposto. Mas ele mesmo pode ser objeto, na medida em que a
dileta audiência passe a prestar atenção nele como pessoa, e não na informação
que ele profere. Quem nunca presenciou cenas como a do aluno que, em plena aula
de análise sintática, pergunta onde o professor comprou seu relógio? Ele está
coligindo informações sobre o indivíduo professor, e não sobre a exaustiva
exposição. Isso porque o conhecimento depende da consciência, que sempre tem
uma intencionalidade (vide mais neste texto). Outra coisa: quando
falamos em classe, podemos pensar em um sujeito coletivo, mas, em conhecimento,
isso não existe. Tudo bem que podemos falar no saber de uma comunidade, mas, no
quesito percepção, não há como fugir de indivíduos. Ainda que o objeto parta de
um mesmo ponto (o professor), o receptor processa a informação individualmente,
com seu próprio conjunto de conhecimentos anteriores e com as disposições de
seus próprios sentidos. Por isso, toda experiência de transmissão do
conhecimento é única, ainda que seja dada em ambiente coletivo. Afinal de
contas, como já dissemos, em uma relação objeto-sujeito, há a parte objetiva e a
parte subjetiva, ora bolas.
E aqui chegamos na tortuosa missão de estabelecer uma
diferenciação entre o que é conhecimento e o que é opinião. Vamos imaginar uma
situação prosaica: uma colisão à qual testemunhamos. O objeto colisão em si é um
dado, é um fato, é uma informação e gera um conhecimento rapidamente intuído –
um carro bateu no outro e pronto. Agora, porque ocorreu, de quem foi a culpa, o
que poderia ser feito para ser evitado, tudo isso são opiniões, que derivam
exatamente da individualidade que mencionei acima. E isso não é conhecimento. O
conhecimento busca fatos, e não suposições. Pode até partir destas, mas não são
estas. Está claro?
Uma opinião pode se transformar em conhecimento? Sim, desde
que ela adquira evidências. É preciso ter em mente que, dadas as diferenças na
recepção dos dados, os fatos são revestidos por aparências, que, sim, enganam.
Reportando-se à colisão, uma via preferencial pode ser um bom indicativo; um
semáforo quebrado, outro. Mesmo que seja óbvio um causador, não é tão certa a
culpabilidade: o estouro de um pneu pode ser ocasionado por má manutenção da
via, e a culpa é do prefeito. Um reparo mal feito na caixa de direção, e a
culpa é do mecânico. Um bêbado circulando na via e o consequente desvio – o
mesmo vale para um cachorro. Um terceiro motorista que tenha forçado uma
manobra... São infinitas hipóteses que fogem aos dois aparentes únicos
envolvidos.
E mesmo que haja somente os dois motoristas envolvidos,
ainda assim o fato não é evidente por si só. Há as hipóteses de negligência,
imperícia, falha mecânica, distração, ocorrência médica, imprudência, problemas
na via, e até mesmo tentativa de assassinato ou vontade livre de causar dano ao
patrimônio próprio ou de outrem, talvez até mesmo para obter a verba do seguro,
vai saber. Qualquer coisa que se profira sem evidência é palpite, em especial
proposições preconceituosas, como a que imputa a culpa automaticamente para uma
mulher eventualmente presente. Mulher na direção, já começa a confusão.
Como transformar a opinião sobre o acidente em conhecimento
sobre o acidente? Ora, procurando fundamentos, e ordenando-os de maneira
lógica. Se houve uma falha mecânica, é preciso tentar localizar a peça quebrada
e entender se seu defeito é significativo para o acidente; para detectar se há
imperícia, um bom indicativo é verificar o tempo de carta e os tipos de
infração cometidos pelos protagonistas; se supomos que o problema é na rua, é
preciso localizar buracos ou faixas mal pintadas, e assim sucessivamente. Com
esses elementos nas mãos – o conjunto fático e as evidências – pode-se dispor a
dinâmica dos acontecimentos de maneira lógica, e se aproximar da verdade.
Neste exemplo acima, podemos observar como se aplica a
Teoria do Conhecimento como um todo, e como suas sub-áreas se interconectam. A
capacidade de perceber o acidente e de trazê-lo como um dado para o processo
intelectual está no campo da Gnosiologia. A tradução do fato correspondente à
realidade e seus nexos causais, ou seja, o conhecimento verdadeiro é tarefa da
Epistemologia. E a ferramenta que dispõe tudo em seus devidos lugares é a
Lógica. Traduzindo: reconhecer a existência do acidente como um fato é
gnosiológico, ser capaz de compreender como o acidente factualmente se deu é
epistemológico e cuidar para que a solução do problema do acidente seja
corretamente disposta é lógico.
Com isso tudo, podemos concluir que a principal tarefa da
Teoria do Conhecimento e de suas sub-áreas é suplantar o relativismo produzido
pelas sensações humanas. Ou talvez até mais: tentar compreender se isso é
possível. Tem gente grande que acha que não:
Isso porque, embora tenhamos uma boa distinção entre razão (logos) e opinião (doxa), o fato é que certas vezes a opinião “encaixa”. No exemplo do
acidente, digamos que estejam envolvidos um corintiano e um palmeirense. Três
pessoas opinam, com duas culpando o segundo. Mas a apuração dos fatos leva à
conclusão de que o erro foi do alvinegro, que se distraiu com o celular.
Tivemos uma opinião correta, mas no que ela se baseou? Se for pelo simples fato
de que o motorista estava com a camiseta do clube, foi uma mera coincidência,
mas que ganha força na forma de preconceito. Quem opinou desta forma, falou a
verdade, mas por um mero acaso. Falta-lhe uma justificativa racional para dar base.
Percebem como uma opinião acertada não corresponde a conhecimento?
Recomendação de leitura:
Um dos primeiros textos filosóficos que discute as
diferenças entre opinião e conhecimento vem de Sócrates, através da hábil pena
de Platão. Como é um texto curto, dá para ler de uma só sentada.
PLATÃO. Teeteto in
Diálogos: Teeteto e Crátilo. Belém: UFPA, 2001
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