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segunda-feira, 23 de junho de 2014

Data maxima venia: Sobre juízes e religiões, com direito a um rápido volteio pela história da Filosofia

Olá!

Antropologia é Filosofia. No texto abaixo, tentarei manter o meu distanciamento e colocar entre parênteses minhas convicções religiosas para analisar o tema com o máximo de isenção possível.
Algum tempinho atrás, um juiz da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro negou provimento a uma ação movida contra uma igreja evangélica pelo Ministério Público Federal, por conta da divulgação de vídeos considerados ofensivos a religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda (notícia aqui – retratação do juiz aqui). Alegou o doutíssimo magistrado que tais denominações não podem ser enquadradas como religiões, já que não possuem um texto base, não seguem uma hierarquia e não veneram um deus específico. O MPF recorreu da decisão e pediu nova liminar, que o tal juiz negou novamente, desta vez baseado na liberdade de expressão, item basilar da Constituição, e aproveitou para retificar os termos de sua decisão anterior, no que tange à polêmica definição de religião, extraída pelo juiz não sei d’aonde.


Para deixar minhas considerações um pouco mais claras, vou explicar rapidamente o que é uma liminar. Quem já for versado nessas artes pode saltar o parágrafo seguinte sem nenhum prejuízo, mas sinto-me na obrigação deste esclarecimento, já que este espaço é visitado preponderantemente por jovens, que talvez não compreendam bem essas sutilezas jurídicas.

Pois bem, uma liminar é solicitada ao juiz todas as vezes em que se deseja que o pedido seja atendido imediatamente, antes do julgamento da ação - dada a sua urgência. Para que um pedido de liminar seja atendido, ele deverá cumprir dois requisitos: o fumus bonis juris e o periculum in mora. São dois requisitos que buscam dar um mínimo de legitimidade e fundamento à antecipação dos efeitos do que se pede. O primeiro (“fumaça de bom direito”) significa que o pedido tem lógica jurídica e não infringe claramente nenhuma norma legal. O segundo (“perigo na demora”) indica que, se houver perda de tempo, há risco de não se ter os direitos assegurados. Exemplo para lá de comum: vou a um médico, que constata em mim uma doença qualquer de natureza grave e agenda uma cirurgia urgente. O convênio que eu pago todo santo mês, que corrói o fígado de minhas finanças, alega que não há cobertura. Vou no juízo e requeiro meus direitos, com pedido de liminar. Há fumus bonis juris: tenho um contrato regular com uma operadora de saúde, com as parcelas em dia e com previsão de cobertura, ainda que tacitamente. Há periculum in mora: trata-se de uma doença, em que há risco de agravamento ou morte se não forem adotados procedimentos médicos urgentes. Cumpridos esses requisitos, o juiz decidirá rapidamente pela concessão (ou não) da liminar. Reparem no seguinte: a concessão de uma liminar não significa que o mérito da ação tenha sido julgado. Não é uma garantia de vitória na demanda, é apenas uma antecipação dos seus efeitos.
O que o MPF solicitava em sua liminar era que os vídeos fossem retirados imediatamente do YouTube. Eu os assisti. São nojentos. Há tanta necessidade em certas religiões de que exista um inimigo a ser combatido que essa busca acaba por se tornar doentia. É preciso personificar o mal que elas veem ao seu redor, criar um diabo não basta. Nada melhor, neste caso, do que ter ao seu dispor uma religião oriunda de uma minoria, típica de sua cultura, que já é, explícita ou implicitamente, detestada pela sociedade (falem-me sobre as chapinhas). Pronto! Já temos nosso espantalho. Já falei sobre o tema anteriormente, deixo aqui o link. Basicamente, o mau e velho preconceito de cor.

Apesar disso, a questão aqui é menos pela não concessão da liminar do que pela tentativa de definição do magistrado do que é e do que não é religião. Por que foi utilizada uma argumentação desse tipo? Seria o ideal analisar os três requisitos que foram apontados como configuradores de uma religião, mas o farei mais tarde. Antes, e para melhor embasar minha tese, pedirei um pouco de paciência e convido-os a fazer um pequeno itinerário filosófico. Vamos lá.
Vivemos em um país ocidental, relativamente jovem, e que foi colonizado por europeus. Portanto, nossa base cultural, apesar de receber fortes influências indígenas, africanas e asiáticas, tem preponderância europeia, povo dominador que foi, e que, por sua vez, teve como berço a Grécia Antiga.

Desde a antiguidade, o homem tem a curiosidade como uma de suas grandes características. A humanidade teve desde sempre as perguntas clássicas na cabeça: Quem somos? De onde viemos? Qual a origem de todas as coisas? A ciência experimental era algo totalmente primário, o principal elemento a ser estudado era o universo ao alcance dos sentidos nus. Por exemplo, os homens olhavam para os céus e percebiam que a posição das estrelas permitia deduzir alguns traçados que se assemelhavam a objetos, a animais, a humanos. Não tinham como perceber as distâncias existentes entre si e elas, nem entre as próprias estrelas. Percebiam também seus movimentos. Esses desenhos se deslocavam pela abóbada celeste no decorrer do ano, e, como também era possível perceber seus ciclos e regularidades, foi possibilitada a associação de certos eventos com a posição dos astros, como a chegado do frio, do estio, da temporada de chuvas. A cada ano esses ciclos se repetiam sempre iguais, com raras exceções. Essa perfeição nos ciclos fez com que esse homem comparasse os mecanismos cósmicos com a volubilidade humana e com a mutabilidade dos eventos mais próximos. Isso o levou a duas deduções: não era possível explicar os fundamentos destas regularidades sem a existência de inteligências superiores a guiar o maquinismo universal; e se caso houvesse uma exceção, sua explicação se dava pela própria ação humana, que causaria o descontentamento dessas divindades. Uma guerra, por exemplo, poderia fazer com que as chuvas fossem mais torrenciais, ou inexistentes. A posição das constelações seria, portanto, indicações aos homens do que deveriam fazer: a época de plantar, de colher, de armazenar. Mas é uma mensagem difusa, não escrita, não presencial. E o homem busca explicações para que lhes sejam dispostas essas indicações e da perfeição dessas mensagens. E nascem os mitos, que vão se desenvolvendo através da história até se tornarem complexíssimos, como pode ser observado através do estudo da mitologia grega, um amplo conjunto de reflexos sobre a condição humana e suas origens.
Belo dia, e um cidadão chamado Tales, da cidade de Mileto, repropõe a maneira como o cosmos deve ser interpretado e dá uma reviravolta na abordagem ao conhecimento, dando o pontapé inicial àquilo que até hoje chamamos de Filosofia. O diferencial de Tales reside no axioma geral de que as explicações para a origem e composição das coisas estão nas próprias coisas. Ele buscava a arché, que representa a substância primordial e comum a todos os seres, sejam eles vivos ou inanimados. Tales concluiu que esse elemento era a água. Chegou a essa conclusão por motivos lógicos, por força do raciocínio. A água, por exemplo, é moldável. Ela adota a forma de seu recipiente quando em estado líquido ou gasoso, prescindindo do mesmo quando congelada. A água muda de estado físico com pouca variação de temperatura, muito diferentemente do que acontece com metais, que precisam de altas temperaturas para fundir (sim, eu sei, existe o mercúrio – mas lá Tales sabia que o mercúrio era um metal?) ou de gases, que precisam de temperaturas muito baixas para condensar. A água também está presente onde menos se espera. Da terra seca, fura-se um poço e se extrai água. Dentro de um quarto escuro, ao cair da noite, as paredes outrora secas começam a ter água escorrendo. Do cozimento de um alimento aparentemente pouco úmido desprende-se um monte de líquido. Perceba-se que Tales não tem uma explicação mitológica para a arché: ele tem dados concretos e raciocínio lógico.

Deste momento em diante, muito outros pensadores tentaram encontrar, através de argumentos e ponderações, o que seria a tal da arché. Empédocles achava que eram os quatro elementos, misturados em maior ou menor proporção. Anaxímenes imaginava o apeiron, uma substância indefinida que tomaria formas e características próprias a cada elemento que tivesse de representar. Pitágoras fascina-se com a perfeição matemática existente na natureza e nomeia o número como elemento fundamental. E com isso chegamos a Demócrito. Muito antes de a moderna química desvendar os mistérios das composições dos corpos, o risonho e sarcástico grego percebeu que toda a matéria poderia ser reduzida a pedaços cada vez menores, e menores, e menores, até chegar a um ponto em que não seria mais possível dividi-la, sob pena de descaracterizá-la. Era o átomo, descoberto pelo puro raciocínio, sem instrumentos, há cerca de 2500 anos atrás.
Percebam que, até aqui, o grande problema da Filosofia era compreender a composição cósmica, que matéria seria comum e originadora de tudo o que existe. A Filosofia era, portanto, uma Física. As coisas começaram a mudar com os sofistas (pretendo redigir sobre eles, sob uma perspectiva ética), para quem essa discussão sobre a arché era uma inútil caceteação que não trazia nenhum benefício justamente a quem deveria, a quem lhe doa o sentido: o ser humano. Com efeito, o mais célebre dos sofistas, Protágoras, enunciou que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Na mesma época, surge Sócrates. Se o mais célebre filósofo da Antiguidade discordava das finalidades dos sofistas, por outro lado tinha o mesmo foco, uma filosofia voltada para o humano, investigando o que é possível conhecer, começando por si mesmo. Ele inaugura um método dialético ao qual foi dado o nome de maiêutica, o parto das ideias. Para ele, o conhecimento não está no mundo que cerca o homem, mas reside em seu interior. A ele sucede Platão, seu pupilo e principal “ghost-writer”, que discorre sobre o mundo inteligível e o mundo sensível, com a preponderância do primeiro sobre o último. Segue-o Aristóteles e suas investigações sobre as causas e os efeitos, o ato e a potência, além de amplos estudos éticos. Daí por diante, temos os céticos, que creem na impossibilidade do conhecimento, colocando todo e qualquer juízo em suspensão; os epicuristas e o prazer como centro da motivação vital; os estoicos, que já foram objeto de um texto meu, adotando uma atitude de resiliência ao sofrimento; e os cínicos, com sua busca pelas virtudes morais.
Percebam que a Filosofia tem, neste momento histórico, suas especulações voltadas para um objeto apoiado em um tripé formado pela metafísica, que quer discutir o Ser; pela gnosiologia, que se ocupa de investigar o que é possível conhecer e a origem do conhecimento; e pela ética, que estuda as relações humanas. O tal objeto é o ser humano, o anthropos. Já não é a physis dos pré-socráticos o que interessa. A Filosofia torna-se antropológica e antropocêntrica.

Mas o mundo prosseguiu em suas voltas e um fato novo fez girar o leme filosófico. A novidade foi a adoção do Cristianismo como religião oficial do ainda poderoso Império Romano, por volta do século III. O Cristianismo trazia uma grande reviravolta no modo com o qual era dado o relacionamento com as divindades. O paganismo era politeísta, com deuses antropomórficos e movidos por paixões humanas, suscetíveis a toda sorte de defeitos: enganadores e enganáveis, traidores e traídos, ardilosos e ingênuos. Com exceção de alguns poderes específicos, tinham essas mesmas características dos homens, só que em ponto maior – algumas coisas como a imortalidade, a capacidade de modificar os astros, ou de manipular fenômenos meteorológicos. Eles poderiam ser encontrados em um local determinado, o monte Olimpo. Sua casta sacerdotal era reduzida e pouco influente. O Deus cristão é o inverso desse modelo divino. Ele é único, dotado de onipresença, portanto não se limita a um lugar determinado; de onipotência, portanto não tem limite de atributos; de onisciência, portanto não pode ser enganado. Ao contrário das divindades pagãs, possui uma relação paternal com o homem, a quem distribui justiça e misericórdia. Essa divindade é paradigmática: seus atributos sempre apontam para a perfeição, Deus sempre é bom, e é dever do homem segui-lo em inteireza. Aparece o conceito de pecado, que é o desvio da norma estabelecida para a aproximação com sua transcendência, e a casta sacerdotal cristã é considerada via de acesso a esse ser supremo, através da administração de sacramentos. A Igreja torna-se muito mais organizada, com cargos e hierarquia claramente definidos.
Como modelo de perfeição, Deus passa a ser a entidade a ser analisada. A Filosofia quer compreender como funciona o relacionamento entre Deus e os homens, como a fé pode ser fonte de conhecimento, como a semelhança entre ambos se dá através das virtudes, e não dos vícios, como ocorria no paganismo. Percebam que a Filosofia entra em uma nova era. Ela agora é Teologia, o que não significa que ela seja religião. A Filosofia não perdeu seu escopo, ainda utiliza a lógica e a dialética para construir seus argumentos. Em suma, a conciliação entre fé e razão não pode se dar em base mítica, mas lógica.

O tempo continuou passando e também a filosofia teocêntrica declinou. Mas tínhamos aqui uma novidade, que é o centro da minha argumentação.
A Filosofia do Iluminismo não só tenta recolocar o homem no centro das investigações, mas também procura se calcar na ciência e na evidência. Cada vez mais a Filosofia procura a dúvida, e, através de Descartes, transforma-a em método. Enquanto isso, os empiristas querem provas. Querem fazer experimentos e observações que não se limitem à especulação. Querem tocar, querem ver, querem ouvir. Toda metafísica que não tenha como sair do processo meramente especulativo não serve à Ciência.

E é justamente aí que está a salvaguarda do pensamento religioso. Ainda que a Filosofia Medieval não tenha conseguido comprovar a existência de Deus em moldes científicos, isso não constitui um problema para uma divindade do modelo judaico-cristã. Prova é uma necessidade da Ciência, não da Metafísica. A Ciência também não prova que Deus não existe. A averiguação científica é um problema para os deuses gregos: basta subir o Olimpo e ver que eles não estão lá, ou entender o ciclo das águas e perceber que a chuva não é mandada por uma divindade. Mas a base existencial do Deus cristão prescinde dela.
O resultado é que, apesar da superação da Filosofia teocêntrica, a religião não enfraqueceu. Pelo contrário, deu base à moral ocidental, para o bem e para o mal. Entendam bem a diferença – a Filosofia pouco se ocupa da teologia hoje em dia, mas a religião em si é ainda bastante presente (ainda que em curva descendente), principalmente na constituição dos códigos morais. Isso significa que, mesmo com igrejas mais vazias, a religião continua se fazendo presente. E é exatamente nesse ponto que vemos o caso do nosso douto magistrado.

Não cheguei a saber se ele é cristão, muçulmano ou pertencente a outra denominação, mas é claríssimo que sua sentença se baseou no formato religioso no qual ele está circunscrito, e entendeu ser suficiente para dar fundamento à sua decisão.
Em minha opinião, não deveria fazê-lo. Ao contrário do que pode parecer, juízes não tendem a ser arrogantes com opiniões alheias. Eles judicam sobre causas que, em muitas vezes, não possuem nenhum conhecimento. E, neste caso, lançam mão de peritos, que escrevem laudos que dão base às suas decisões. Um juiz não pode decidir por um plágio sem o parecer de um músico, não pode decidir por um embargo de obra sem ouvir um engenheiro, não pode decretar uma falência sem ter a opinião de um contador. Se o fizer, sua sentença pode ser facilmente combatida. Por isso mesmo, a própria função faz com que o juiz se habitue a ouvir. Não foi o que ocorreu no caso. Os três quesitos utilizados para tipificar uma religião servem muito bem para refletir o Cristianismo, o Judaísmo ou o Islamismo como paradigmas. Mas eles são falsos quando estendido a outras crenças. Porque uma religião é muito simples de se definir. É uma sistematização de pensamentos e ritos para que o homem possa se relacionar com a transcendência na qual acredita. Simples assim.

Mas ainda que os quesitos fossem verdadeiros e bem formulados, ainda assim há erro. Vejamos:
1º - Ausência de texto-base

É verdade que a Umbanda e o Candomblé não possuem um registro escrito a ser seguido, como é o caso da Torá judaica, da Bíblia cristã ou do Corão islâmico, mas isso não significa nada. Estes livros são utilizados para dar sistematização às religiões que os seguem, o que existe nas religiões afro sem a necessidade da codificação baixada por escrito. Todo o rito é sobejamente conhecido por seus praticantes e é possível reconhecer de longe suas indumentárias típicas. A tradição lhes basta para suas celebrações. Mas ainda é possível olhar para o outro lado. Se observarmos o Cristianismo, em especial na sua vertente protestante, veremos que, apesar da existência do código escrito, há milhares de denominações que divergem na formação de suas doutrinas, cada uma se achando mais correta que a outra. Ou seja, a existência de um texto-base não garante a unicidade do rito nem uma sistematização consagrada, por conta da variabilidade de interpretações.
2º - Ausência de estrutura hierárquica

Neste caso, não há nem mesmo o “fumus bonis juris” do item anterior. Existe, sim, uma hierarquia nos terreiros de Umbanda e uma “carreira” bem definida, com pleno conhecimento dos passos necessários para se chegar a cada um dos estágios. Cada casa tem um pai ou mãe-de-santo (babalorixá e ialorixá) que a comanda, e todos os membros tem uma função específica, como cambonos, ogãs, sambas, médiuns em geral e etc. É como no Catolicismo, onde a autoridade típica de uma paróquia é o padre, que tem sob sua supervisão os diáconos, ministros, coroinhas e assim por diante. Os umbandistas e candomblecistas também tem a possibilidade de filiar-se a federações, a quem cada um dos líderes de centro se submete. Tremenda bobagem, essa história de hierarquia.
3º - Ausência de um Deus a ser venerado

Se chamei o item anterior de bobagem, a afirmação de agora beira (se não extrapola) o desrespeito. O simples fato de uma religião ser politeísta não pode ser usado para desqualificá-la como tal. A Umbanda e o Candomblé possuem divindades muito bem definidas e conhecidíssimas, mesmo por quem não as cultua, como Ogum, Oxóssi, Iansã, Iemanjá e outros. Aliás, são religiões politeístas “numas”, já que há, inclusive, um Deus maior, uma espécie de Deus dos Deuses, que é Oxalá. Temos aqui claramente uma visão atravessada pela cultura pessoal – falta alteridade para reconhecer plena validade nos convicções do outro.
Desde já, peço desculpas pelo meu insuficiente entendimento no quesito "religiões de matriz africana", e posso até ter misturado algumas coisas (sintam-se livres para fazer as correções necessárias). Mas, no meu entender, o grande problema que temos aqui é que os cultos africanos possuem a mesma estrutura que os antigos ritos pagãos greco-romanos – deidades antropomórficas, com paixões e emoções humanas. Este foi o modelo que as religiões monoteístas suprimiram com o esgotamento do paganismo, mas que, incomodamente, vem bater à sua porta com os paradigmas de origem africana. São religiões que lidam com o bem e o mal com mais naturalidade que as religiões predominantes no ocidente. E isso choca, já que estas últimas tem em seu horizonte um Deus perfeito, modelar.

Gente, é só um exercício de respeito às diferenças. Nunca foi necessário ofender o azul por se gostar do vermelho. É necessário dizer que a entidade que gravou os vídeos é, ela mesma, alvo de grande preconceito. São tidos como retrógrados, como alienados, como fechados em si mesmos. Seria mais inteligente de sua parte olhar para o outro pelo que os iguala, não pelo que os distancia. São religiões que tem inúmeros pobres em suas fileiras, inúmeros excluídos, que buscam na prática religiosa uma motivação para as suas vidas, para se sentir abrigados em comunidade. O discurso do ódio não vai ajudar em nada – aumentará a exclusão de uns e a antipatia de outros. Enfim, devemos ter em mente que nosso pomar vai frutificar se eu cuidar bem dele, deixando que o meu vizinho cuide do dele. Lançando sementes de pragas no quintal do meu vizinho, corro o risco de que o vento me devolva boa parte delas. Se suas doutrinas são inconciliáveis, que um deixe o outro quietinho no seu canto, e acabou.
Data venia, a única coisa de bom que toda essa história trouxe foi a oportunidade de se tornar claro certos posicionamentos de nossa sociedade, e de trazê-los a debate.

Recomendação de navegação:
Hoje, uma dica diferente. O link abaixo traz o segundo pedido (um agravo de instrumento) do MPF do Rio de Janeiro relativo ao caso acima. Traz a relação de todos os vídeos combatidos, com comentários e respectivos links. É duplamente interessante, porque explica bem o caso e dá uma mostra de como funciona uma demanda judicial.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Agravo de Instrumento com pedido de antecipação de tutela recursal no processo 0004747-33.2014.4.02.5101. Disponível em:

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sobre a tragédia grega revisitada e sua permanente atualidade

Olá!

Todo mundo que curte Filosofia sabe a importância que a tragédia teve na formação do ethos grego, e como isso desembocou no modo de pensar ocidental.
Falo isso porque alguns dias atrás fui assistir a peça “Trágica.3” no CCBB, junto de minha esposa. O diretor, Guilherme Leme, pegou três grandes histórias da mitologia grega protagonizadas por mulheres e as juntou em um só painel, lançando mão de recursos eletrônicos para aumentar o clima de tensão em um espaço bem menor do que os dos antigos estádios gregos, onde, em geral, as tragédias eram encenadas.


A tragédia grega é importante na história da Filosofia porque foi uma espécie de propedêutica a esta. Os questionamentos eram os mesmos: Qual o sentido da vida? O que vale mais – uma vida serena e desimportante ou uma vida arriscada e gloriosa? O que nos iguala às nossas transcendências? É possível escapar do destino? A diferença estava basicamente no método. A tragédia buscava estas explicações no desenrolar dos enredos, que lançava mão dos mitos para protagonizá-los, e a Filosofia se vale do raciocínio lógico e das evidências. Evidentemente que ainda não existia o distanciamento que hoje temos entra pensamento científico e pensamento mítico, mas podemos perceber suas diferenças e aproximações.

A origem do termo “tragédia” é estranha. Em uma tradução direta, significa “coro dos bodes”, o que exige alguma explicação. É que as primeiras formas desta arte ocorreram em festas chamadas de “dionisíacas”, e eram chamadas de ditirambos. Dionísio era o deus grego da alegria, das festas, das orgias, do vinho, e, por extensão, do embriagamento, da loucura, das emoções, da inconstância. A embriaguez era o modo com o qual os gregos entendiam ser possível ao homem se fundir com as divindades. Portanto, os ditirambos se desenvolviam em uma espécie de transe, no mais das vezes através da utilização de bebidas alcoólicas e outras poções menos votadas. Na mitologia grega, Dionísio era cercado por um séquito de seres denominados sátiros, que lhe serviam e prestavam culto. Os sátiros eram seres híbridos, metade homens, metade bodes. A montagem de uma tragédia levava isso em conta – a estrutura de uma representação consistia em um ator inserido no centro de um estádio, encenado um personagem qualquer, em geral um herói grego. O ator que representava o herói colidindo com seu destino, representava o próprio deus Dionísio. Era acompanhado por um grupo de músicos reunidos em coro. Para caracterizar a homenagem a Dionísio, os membros do coro representavam sátiros, e se vestiam como bodes, e então temos o nome tragosoidé – a tragédia.

Quem nos dá a estrutura da tragédia grega clássica é Aristóteles, principalmente em sua obra A Poética. Para o mestre estagirita, a tragédia não era apenas um texto com final triste. Era necessário musicalidade – os temas deveriam ser abordados com ritmo e harmonia. Precisaria ser protagonizado por um deus ou por um herói, e deveria estar voltado para temas grandiosos. Além disso, deveriam ser tratados com extrema seriedade – a função da comédia é totalmente distinta da solenidade com que a tragédia deve trabalhar seus assuntos. E, principalmente, seu foco não era voltado para o mito em si, para o texto ou para a interpretação do ator, mas para a reação do público. Vamos destrinchar isso.
Em geral, a tragédia buscava traduzir os atos e pensamentos de um herói colocado diante de uma aporia. Os mitos são conhecidos, narrados pela tradição oral e sintetizados por grandes escritores da época, como Hesíodo (Teogonia) e Homero (Ilíada e Odisséia), e foram adaptados para a dramaturgia por mestres como Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. A descrição do mito era narrativa: aconteceu isso, aquilo e o outro. A magia da tragédia, portanto, não estava propriamente na história em si. Se eu contar as histórias da peça que estou tratando aqui (o que farei), não praticarei spoiler, porque seu encanto está na conjunção da genialidade do dramaturgo em “pensar com a cabeça” do personagem e da força da interpretação do ator. Entrever as emoções e reações destes personagens é a tarefa do dramaturgo. Seu objetivo principal era atingir a catarse: uma purificação dos sentimentos que a plateia atinge ao reconhecer nos deuses e heróis as mesmas aflições diante daquilo que transcendia seu alcance – a dor, o destino, a morte. Nesse sentido, a catarse seria pharmacon. Assim como as ervas, os óleos e os minerais, que, quando usados corretamente são remédios para o corpo, a tragédia é remédio para a alma. Assistir a uma tragédia e atingir a catarse representa uma purgação espiritual. Seu equivalente corpóreo, segundo os antigos gregos, era utilizado para livrar o organismo dos males que lhe contaminavam. Então a tragédia tinha também essa dimensão do coletivo, era a história de todo o gênero humano, não só dos protagonistas.

Mais do que em outro gênero, a representação da tragédia exigia muito dos atores. É aqui que o ator mais doa sentido ao seu personagem. As interpretações são derramadas, os gestos são intensos, as expressões são quase exageradas. Muitas delas eram longos monólogos, entremeados por cantos. Estamos nos estádios gregos, em espaço aberto, sem acústica, sem microfones, sem efeitos de luz. O ator tem que dar mais de si, há uma mensagem a ser entregue por seu corpo ao espírito dos espectadores. E assim nasce essa forma de linguagem que hoje chamamos de teatro.
A análise da tragégia atravessou os séculos, e, da filosofia contemporânea, quem mais profundamente cuidou do tema foi Nietzsche. O alemão das marteladas falava muito mal de Sócrates. Ele coloca o pai da Filosofia Clássica no papel de assassino da tragédia grega, e como o mundo não pode ser vivido fora de sua dimensão estética, o racionalismo e a dialética socrática são tidos como um imenso mal, uma desfaçatez à própria natureza humana. Neste sentido, Nietzsche concorda com Schopenhauer, que afirma ser a vida um imenso vazio fora da sensação produzida pela arte. Só que para Nietzsche isso é um bem, não é motivo para pessimismo, mas pela celebração. É nesse campo que o homem transcende a si mesmo. Sócrates, ao apostar na racionalidade, afoga toda a criatividade do homem e o impede de ir além de si mesmo, o übermacht – super-homem, a quem voltarei oportunamente, em outro texto. Como toda a Filosofia posterior à Sócrates é um reflexo e derivação deste modelo de pensamento, o método libertador trágico ficou latente.

Nietzsche percebeu que, nas entrelinhas, a grande sacada da tragédia grega era enxergar, à perfeição, não só a inconstância e o pathos dionisíaco, mas também a grandiosidade e a perfeição das formas do apolíneo. Este nome deriva do deus Apolo, que regia a racionalidade, o equilíbrio, a harmonia e a beleza, o exato oposto de Dionísio. Na tragédia residia essa permanente tensão, entre o que é possível e o que é realizado, entre criação e destruição. Essas pulsões nascem artisticamente da própria natureza, não é algo que dependa da genialidade de um artista. O mundo é um revolver dionisíaco de alternância e caos que se desenrola em um modelo apolíneo harmônico, que o limita e contém, mas que por sua vez é atravessado e remoldado pela atividade vulcânica do primeiro. Segundo ele, é justamente essa corda sempre prestes a partir que faz com que a tragédia seja reflexo da vida e, no limite, a justifique. Na tragédia, o apolíneo fala pelo caos e o dionisíaco fala pela harmonia.
Pois então. Vamos à peça em si.

Três excertos foram pinçados: os mitos de Antígona, Electra e Medeia. O escopo é relacionar estas mulheres com o destino extremo – a morte. Cada uma delas se relaciona de uma forma diferente com a senhora da capa preta.

Antígona é uma das protagonistas de uma das mais importantes sagas gregas, Édipo Rei. Torna-se relevante a partir da disputa de poder dos pretendentes ao trono de Édipo, seus irmãos Polinice e Etéocles. Édipo havia sido expulso do reino de Tebas, e Antígona foi a única filha a acompanhá-lo em seu exílio, até sua morte. A guerra entre os irmãos começa quando o acordo de revezamento no trono foi quebrado, com a recusa de Etéocles em ceder o reinado. Terminou com a morte de ambos em uma batalha fratricida. Com isso, seu tio Creonte assumiu o governo, e decidiu enterrar Etéocles com todas as honras de estadista, enquanto mandou o cadáver de Polinice ficar exposto às intempéries, para que fosse devorado pelos lobos e pelas aves de rapina. Fazia isso para servir de exemplo a todo aquele que desejasse tentar lhe tomar o poder. Antígona não admite deixar o corpo de seu irmão insepulto, e toma ela mesma a tarefa de cumprir os ritos sagrados e enterrá-lo. Tinha perfeita consciência da gravidade de sua atitude, e se lança nesta tarefa sabendo dos riscos que corria: ela própria ser sacrificada, o que acaba por ocorrer, com o ato de seu suicídio. Põe em evidência, com essa mentalidade transgressora, o valor que dava para as leis divinas, que não deveriam ser descumpridas por conta das leis humanas, além de se tornar paradigma do amor fraternal.
A peça retira o momento em que Antígona decide cometer a transgressão de enterrar seu irmão, em um longo e lamentoso monólogo, e decide levar a cabo sua tarefa até as últimas consequências. Foi interpretada pela Letícia Sabatella, atriz bem conhecida das novelas. Para mim, uma grata surpresa, já que não a conhecia fora do ambiente platinado da rede globo, onde costuma vestir muito frequentemente papéis do tipo mulher-de-meia-idade-chorona-porque-injustiçada. Defendeu sua personagem com maestria e soube transmitir os propósitos do autor.

Electra, por sua vez, é símbolo da impulsividade e seu mito serviu à psicanálise como oposição ao complexo de Édipo, onde o filho homem guarda com a mãe uma relação psicológica de atração sexual inconsciente, que acaba redundando em um sentimento de repulsa em relação ao pai. No complexo de Electra ocorre o mesmo, porém invertendo os pares – aqui, temos a filha que pulsiona em relação ao pai, e tem a mãe como rival. Esse mito foi utilizado porque Electra, filha de Agamênon e Cliemnestra, arquitetou a vingança contra o ato urdido por esta última. Sua conduta foi motivada pelo fato de que Agamênon, rei de Micenas, havia sacrificado Ifigênia, outra filha sua, e com isso tomado o poder ao lado de seu amante, Egisto. Electra passa a viver amargurada pelo desejo de vingar seu pai (este é o ponto que a peça aborda), implorando às divindades que lhe propiciassem um modo pelo qual fazê-lo. Consegue seu intento utilizando seu irmão Orestes, que consuma o ato. No entanto, o arrependimento chega depois: Ifigênia está viva! É uma sacerdotisa de Ártemis, vivendo em isolamento nos montes gregos. Electra é aquela que se vinga e se arrepende, aquela que manda matar e com isso mata seu próprio interior por sua impulsividade. A atriz que nos contou a história foi Miwa Yanagizawa, em um ambiente de tensão do princípio ao fim, desde sua postura praticamente imóvel e desconfortável (ao contrário de Antígona, que flana pelo palco). Seu rosto é impassível o tempo todo, o foco da vendeta não é perdido em momento algum. Realmente tenso.
Já com relação a Medeia, o mito é contado a partir da crueldade da protagonista. Ela era esposa de Jasão, o comandante dos Argonautas, que buscavam o velocino de ouro, um estranho objeto confeccionado a partir do pelo de ouro de um carneiro oferecido em sacrifício ao deus Ares. Medeia ajudou substancialmente Jasão a cumprir seu intento, inclusive traindo seu pai, o rei Aetes. No entanto, Jasão a trai, apaixonado que estava por Gláucia, com quem resolve passar a viver. É aqui que a peça se desenrola: nos planos de vingança de Medeia. Ela mata todos os filhos que teve com Jasão, e utilizou seus poderes para matar também a sua adversária, ao confeccionar um vestido e presenteá-la. Esse vestido se incendiou assim que Gláucia utilizou-o pela primeira vez. Também sobrou para Jasão, que se viu enlouquecido e morto pelo peso de seu próprio navio. Esse mito também é utilizado na psicanálise para demonstrar o ato de loucura cometido pelos pais que matam os filhos em acessos coléricos. Denise del Vecchio faz uma interpretação correta e segura, insensível como deve ser o prato comido frio. É a mão que mata em nome de um pretenso restabelecimento da honra.

E é isso. O desenvolvimento do trágico dá a nós, pobres mortais, toda a dimensão da inexorabilidade do destino, e nos explica o quanto a arte, através de suas representações, pode refletir sobre o que é a vida.

Recomendações:

Primeiramente, recomendo a própria peça. É bastante significativa da arte grega e das origens do teatro. Não sei se, nesta altura do campeonato, tem ingressos à disposição, mas vale a pena tentar.

LEME, Guilherme. Trágica.3. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (SP) até 07/07/2014.
 
O livro de Aristóteles é bem interessante para compreender as regras que regem a tragédia grega.

ARISTÓTELES. A Poética. Lisboa: INCM, 1998

Já o de Nietzsche é essencial para enxergar uma versão mais complexa de como pode ser entendido esse tipo de arte.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia grega ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Entre tintas e desencantos - arte e juventude entrelaçadas

Olá!

Por estes dias, recebi um convite para visitar uma exposição de três jovens artistas, que, em comum, tem a causa vegana como filosofia de fundo, tanto para suas vidas, como para suas obras. Estive lá no último domingo. Vejam o anúncio:


Bom, comecemos situando o contexto ou contextualizando a situação. O Broto de Primavera é um restaurante cujo mote não se encerra no fornecimento de comida vegetariana estrita, mas em divulgar uma mensagem ambiental, que se estende ao amor às coisas da natureza, ao equilíbrio entre os elementos vivos do planeta e, no final das contas, a uma nova harmonia na relação universal. Demorei um pouco para entender as diferenças entre os vegans e outras classes de alimentandos engajados, mas pude perceber que, neles, há uma causa muito mais profunda a defender. O endereço do lugarejo está aí acima, e acho que vale a pena conhecer, até para compreender melhor estas diferenças.

Já vou falar sobre a mostra em si, mas, como de costume, conto um pouco dos meus percalços ocorridos no dia. O evento transcorreu em uma movimentadíssima e pouco estruturada rua do centro de São Paulo, como são quase todas as ruas do bairro da Liberdade. Para quem não conhece, trata-se do bairro tradicionalmente ocupado pelos imigrantes orientais, outrora japoneses, atualmente coreanos e chineses. As ruas tem todo um jogo de decoração e alegorias de forma a tornar essa presença bem marcada, como os postes de iluminação, os frontais dos comércios, a dupla grafia e outros que-tais. Estas ruas são quase todas bastante estreitas, mas como era um domingão meio que puxado para o frio, tomei uma decisão pouco ecológica, muito preguiçosa e nada feliz – fui de carro, mesmo morando a uns vinte minutos a pé do logradouro (com um voto de desagravo – eu já estava de carro voltando do mercado). Decisão nada feliz mesmo – não tinha um único canto para encostar meu veículo pouco mais que popular. Pior: havia um concurso público sendo realizado, uma reunião de grande porte em uma das sociedades nipônicas e o hospital do alto da rua São Joaquim estava pleno de gente aflita com suas incômodas gripes (sem contar os habituais frequentadores da feirinha da praça da Liberdade). O resultado só podia ser um – fiquei mais ou menos uma hora dando passo de tartaruga, sem lugar para parar nem mesmo um tico-tico (quem tem mais de 40 sabe do que eu estou falando). Fui parar bem longe dali, andei para caramba. Adiantou muito...
Passons. Em minha santa ingenuidade e na minha percepção turvada pela pressa, esperava algo como a culinária artística japonesa, com seus kyarabens e bentôs chiques e bem arrumados. Nada disso. Em um ambiente quase “underground”, regado a acepipes do estilo, a exposição em si é muito simples, como é de se esperar para três jovens artistas: Azul, Camila Hardt e Maurício Kanno. O que vale, de fato, é observar a sua produção e o que ela tem a nos dizer. E, nesse sentido, posso afirmar que se tratou de uma experiência cultural válida (para minha definição do que há de producente em uma experiência cultural, visite este tópico).

Não pedi explicações sobre o sentido das obras. Isso significa tirar pelo menos metade do seu encanto e de sua abertura. Se fosse assim, cada painel, cada mural, cada grafite, cada estátua, cada instalação e cada intervenção precisariam vir com um manual de instruções. Daí, busquei interpretar por mim mesmo. Se errei muito, peço perdão – exerci minha liberdade, e acho que isso já justifica tudo.
O substrato do que vi colocado nas paredes do restaurante pode ser resumido em uma só palavra: desilusão. E essa desilusão transpõe a própria causa, ou seja, não é restrita ao propósito vegano; ela é extensível a toda essa complicada fase denominada adolescência.

Basicamente, todo jovem carrega em si algo que se assemelha a um insight, um momento um tanto difuso em que se dá o verdadeiro desmame. Esse momento é particularmente doloroso, porque ele ocorre quando os olhos da ingenuidade, que legitimavam todo o universo construído ao seu redor, começam a ficar embotados. Já não é possível discernir claramente o que tem coerência com o aporte que nos foi entregue quando éramos crianças, e o resultado é um estranhamento que nos leva à angústia, uma angústia permeada de dúvidas. No final das contas, esse caminho é pavimentado pela perda: perda da inocência, que leva à perda das certezas, que leva à perda da confiança e, o que é mais grave, que leva à perda de nosso lugar no mundo. A perda é lenha que alimenta a fogueira da tristeza: em cada dia que se passa, há um luto. Chega a ser confortável quando ainda conseguimos identificar a causa deste luto, porque assim podemos arribar os muros da nossa consciência e nos defender. Pior quando a dor já não está na perda de um objeto, de um ser, de uma ilusão ou de uma convicção. É quando chega a melancolia, a perda de nós mesmos. Quem se perde, não apenas abaixa a cabeça; mesmo que a erga, não se reencontra, é mais do mesmo, é tédio, é depressão.
Como a juventude é o instante em que se dá essa sensação de “despertença”, de deslocamento, o equipamento psíquico busca uma saída, que em geral se dá em dois ramos: ou o jovem se aliena, se deixa levar pela correnteza do mundo que o venderam desde o berço – escapa se aprofundando ainda mais, ou seja, escapa negando o valor de suas próprias reflexões, e compra um pacote pronto de ideologia; ou tem uma reação quase que orgânica: é a revolta e o inconformismo. Quem cai nesta senda, em geral procura se exprimir de alguma forma, em uma necessidade quase corporal. Eu escrevi canções de protesto...

“Quem diria que esta terra um dia
Tão dura e crua iria se tornar
O sangue urbano corre nas veias
Nas avenidas, nas ruas, em todo lugar”

Centro da cidade, 1986

 ... de despedida...

“Beira do cais, suor e madeira
E nos corais, anos da vida inteira
Que na orla trazem a febre e o sorriso
E como a maré, vem e vai sem aviso”

Muito além do porto, 1989

... de desespero...

“É o suor das horas mortas de parir um filho morto
É o sangue de formas tortas que rega as flores do horto
É urgir, é rugir prá ter de volta o perdido
É fugir, é sumir sem nunca ter aparecido”

Levógiro, 1988

... e mesmo de rancor.

“Ao léu, o trem que nunca vem
Sem ele, nada me arrasta
E, se não me arrasta, não tenho porque crer no destino”

Largo da Misericórdia, 1989

Depois parei de compor. Voltei-me para a filosofia, prima-irmã da arte, que não tive a competência de levar à frente. Acho que o caminho estético é mais favorável. Com a filosofia, você tem um comprometimento que te prende, o que não acontece com a arte. Este é um campo de liberdade total, não há lugar melhor para expressar tanto a esperança quanto o desencanto. É o que havia nos ladrilhos do Broto. Um grito abafado na forma do Cristo black power pendurado no poste da modernidade. É quase uma pergunta, despida de religiosidade: não seria o Cristo também um rebelde, como todos os jovens que vieram antes e depois dele? Não seria também ele um fruto colhido para consumo rápido, como fazem com todos os Guevaras das camisetas vendidas a R$ 100,00? Não seria ele representado por cada um que carrega a cruz de seu deslocamento, de sua miséria, de desespero diante do mundo que se vê com as costas voltadas mutuamente?


O animal simbionte com o humano, o que representa? Uma perspectiva de comunhão natural, utópica, demasiadamente utópica; ou é o humano que se animaliza, o animal que se humaniza – desnaturamento ou busca de harmonia? De quem deve partir nós já sabemos, tanta gente já ensinou – Aldo Leopold, Arne Naess, Peter Singer, James Lovelock – mas onde começa nossa vontade de reconhecimento do homem como parte integrante do planeta?

 
A principal lição que nos traz um manifesto desse tipo é: Qual é o mundo que estamos colocando para os nossos jovens? Ele espelha nossos ideais ou nós deixamos escapar o fio da nossa história? Era isso o que queríamos quando pegávamos nossos violões para tocar no relento, nossas mochilas para conhecer o mundo, escrevíamos nossos versos para deixar nossas marcas? O que deu errado? Onde nos perdemos? Ou nada disso é real – temos o que plantamos, e plantamos o que queríamos? Era tudo um sonho, devíamos sabê-lo?

Quantas perguntas... Sou simpático à causa dos veganos, ainda que não pretenda aderir a ela. Acho o caminho de fazer da arte um vetor para a divulgação de suas idéias tremendamente mais válido do que um mero proselitismo que se venha a se assemelhar a uma religião. Isso porque existe a aposta na inteligência das pessoas (muito embora essa aposta seja, na maioria das vezes, frustrante). O proselitismo tem o risco de lançar mão de qualquer espécie de argumento para fazer-se valer. Quando ele cai em paradoxo, deixa de ser opção, e trai sua própria bandeira. A arte não. Ela é o espaço autêntico da liberdade, tanto na sua criação quanto na sua interpretação, e ela é sempre autobiográfica – há sempre um pedaço da minha história e do meu pensar em cada obra que crio. Parabéns aos meninos pela iniciativa. Sugirp que sejam persistentes - na causa, com a razão; na arte, com a intuição e talento.
Recomendações de visita:

Quem puder visitar essa pequena mostra não se decepcionará. É breve, é perto, fica no endereço do cartaz acima. Se você não puder ou não der tempo de conhecê-la, fique atento a esses três nomes: Azul Cantù, Camila Hardt e Maurício Kanno. Suas abordagens são interessantes, tem muito potencial. Não vale reclamar de que nossa juventude não produz nada de bom se não procuramos sabê-los.