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sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O café filosófico do quotidiano – à guisa de introdução, os ritos que me fazem ver Filosofia na fumacinha da alvorada

Olá!

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Uma coisa que eu não lembro de ter contado para vocês é minha predileção por café. É coisa que veio crescendo com o tempo, a ponto de se tornar uma quase obsessão, em flagrante exagero poético, Na verdade, já fiz várias referências a esse fato, mas sem me aprofundar muito. Acho que o momento é propício. Tenho passado lamentáveis momentos de gastrite, e por isso reduzi substancialmente o consumo. Mas gosto muito da rubiácea torrada e moída, desde tão tenra idade que nem lembro quando e como o hábito começou. Todo mundo que podia saber já morreu, então vai ficar essa lacuna.

Nunca gostei de leite, a não ser misturas saturadas de chocolate, que naturalmente suplantam o gosto ruim*. Isso se deu desde meu nascimento. Minha mãe tinha as tetas gordas e cheias, mas eu só mamava mililitros, quando não tinha outra alternativa para sobreviver. O médico ouvia os relatos de minha mãe e pugnava pela sua insistência, mas diante da repetibilidade, foi paulatinamente abrindo as comportas: primeiro, um leite em pó apropriado para recém-nascidos (Nanon?), caro prá dedeu. Não dando certo, vamos para o leite Ninho©, bem ralo. Nada. Vamos tentar leite condensado, que não tem gosto de leite. O problema é que, uma vez diluído, tem gosto de leite, sim. Apelemos para o leite de bar, daqueles de saquinho, devidamente fervido e aguado. Tsc, tsc… Eu ia vivendo de chá e mais nada, e perdendo muito peso justo no momento em que os gramas deveriam se multiplicar diariamente. Minha mãe já estava perdendo a habitual calma, e a madrinha tia Nena chorava de pleno pranto, com aquelas coisas de que “esse menino não vai vingar desse jeito”. O médico, cujo nome não sei dizer (Adeodato? Acho que era isso), resolveu apelar: faça uma sopa cozinhando um peito de frango, com um pouquinho-muito-pouco de sal. Dê de golinho em golinho, como se estivesse dando remédio. Vamos ver no que dá. Deu num camarada de quase cem quilos, cinquenta anos depois.

O café que se tomava em casa tinha aquela desafiadora cor e consistência de petróleo, feito aos litros em coadores de pano ou papel, com aquele pó que estava em preço mais convidativo nos empórios, descartadas as porcarias mais eméritas, bem entendido. E ele estava presente em todos os momentos da vida, começando nos dias mais contentes, nas visitas do compadrio, no quotidiano morno, no desjejum prosaico e terminando nos velórios, indefectível e abundante.

Hoje eu sou reconhecidamente mais fresco no quesito café. Não que eu não pare na beira da estrada e me divirta com a zurrapa que estiver disponível, mas resolvi distinguir essa bebida daquela produzida nos momentos mais intimistas, e quando estou em casa tomo todos os cuidados devidos para extrair o melhor líquido possível do nobre grão. O processo todo virou um hobby para mim. Compro o café verde, torro lentamente no fogão de casa e passo pelo moedor manual, com o grau de moagem mais adequado para o gênero à minha frente. E tento o melhor sabor utilizando os métodos mais diversos possíveis, até estar diante de uma xícara fumegante. E é nessas evolações que meus pensamentos voam, da mesma maneira que o vapor vai para qualquer lugar que o vento o leve.


E aí você pode encarar esse procedimento todo de duas formas: como uma rotina ou como um ritual. Na primeira opção, temos um encargo, algo que facilmente derivará para o tédio ou para a obrigação. Já na segunda, a coisa muda de figura. Passa a ser uma opção sua, em que cada pequeno rito passa a fazer parte de uma celebração maior. É nessa segunda hipótese que eu encaixo o café nosso de cada dia. Levanto e me coloco a desvendar qual a melhor combinação para aquele dia, gerando o suficiente para uma xícara para mim, outra para a patroa, como se fosse um afetuoso “bom dia” na forma de aroma e sabor.

Vejamos: tudo nasce no momento da compra, mas nem vou me ater a isso, partindo de cara para o culto. Dois ou três tipos de grão estarão disponíveis em seus pacotes devidamente fechados, sem estarem expostos à luz ou à umidade. Não adianta ter uma coleção completa de cafés do mundo inteiro – existe uma coisa chamada prazo de validade, e o café velho perde muito de seu gosto. A primeira transformação é a torra, e já começamos com uma etapa decisiva, girando a manivela da torreifadeira no ritmo certo, como se fosse uma canção a embalar a lida. As palhas começarão a queimar e a escapar pelo vazador, sujando todo tampo do fogão. São dias em que a vizinhança toma noção da minha existência, que vai além do pagamento do condomínio. O momento exige atenção, porque é preciso interromper a torra pouco antes de se chegar ao ponto desejado, porque o processo de queima continua por mais um pequeno lapso de tempo, e será despejado em uma bateia de bambu, para ser abanado no vento, que leva a palha queimada embora e deixa somente o grão pronto para a moagem. Morando em apartamento, esse tipo de operação tem que ser feita com uma minimização do espetáculo de arremessos que costumamos ver no campo. Mas tudo na vida tem sua quota de sacrifício.

Esses são os rituais mais sazonais, que dão mais trabalho porque existe uma limpeza por trás deles. A partir daí, temos uma faina diária, que começa pela moagem, o que faço em um moinho Mimoso©, daqueles manuais, clássicos. Escolho o método que utilizarei e regulo a espessura do pó: mais espesso para cafés prensados, menos grosso para cafés coados, até a moagem bem fininha, semelhante a uma farinha, para o decantado café turco, nos dias em que precisamos de mais cafeína. Feito isso, evitando sobras, passo para o preparo do aparelho a ser utilizado, escaldando filtros, montando cafeteiras, aquecendo as xícaras. Em geral, realizo a pré-infusão, para condensar o pó. Depois, lentamente, com um bule pescoço-de-ganso, vou circulando progressivamente a água para infundir o pó e realizar a mágica, ou então baixo as prensas para transpor líquido para cima, borra para baixo. Em dias de decantação, dá até para brincar de leitura de borra, treinando a leitura fria. Tudo depende daquilo que quero obter para um dia, como fazemos ao olhar para um calendário litúrgico e preparamos o espaço para celebrar aquilo que for prescrito, como ocorre em igrejas católicas e ortodoxas, em mesquitas, sinagogas, terreiros e templos extremo-orientais.

Isso tudo pode ser comparado com a liturgia de qualquer igreja, ainda que eu nem esteja sonhando com qualquer divindade no momento do preparo do café. Quando faço isso, deixo de ter uma mera tarefa para ter uma expectativa, como se eu quisesse sintetizar toda a filosofia de Epicuro no simples ato de preparar um café, um bom café.

E qual é o propósito disso tudo? O que há de bom em se dedicar tanto a um gole que vai à garganta em questão de segundos? Essa é a pergunta de quem não compreende a feitura do café como um ritual. E a resposta para quem se propõe a entender é muito simples: um rito não vem só da esfera do sagrado, como eu já falei neste texto. É da própria natureza humana que certos atos se consagrem, e isso é bom porque fornece significado às pequenas atitudes do dia-a-dia. É como eu disse logo atrás. Um mero café feito apenas para ingerir correndo é um elemento de rotina, que tem poucos propósitos – acompanhar o pão com manteiga, ajudar a acordar, e é só. Já o café preparado liturgicamente dá outras proposições a um ato que continua com a mesma simplicidade: alcançar o melhor sabor, compreender as técnicas ideais, interagir com a natureza do grão e a cultura das preparações. Transformar um momento comezinho e conseguir um melhor prazer, no final das contas. E o resultado de um ou de outro é completamente diferente: do café rotineiro, não guardamos nada, talvez o retrogosto do produto ruim; do café ritualístico, ao chegar no ápice da relação com a planta, temos um resultado prenhe de Estética. Conhecemos melhor o mundo pelo que nossos próprios sentidos podem nos trazer.

É claro que de tudo isso que estou falando não precisamos tirar nenhuma conclusão esotérica, embora haja uma religiosidade circunscrita na ação humana mesmo se somos ateus (para entender, leiam este texto). É preciso sacar que nem todo ritual está ligado a uma religião, mas a um conjunto de atos que se desenvolvem com um objetivo que vai além do resultado concreto. No caso, temos uma xícara de café, com tudo o que está por trás dela. Poderia ser um incenso que suspende no ar uma oração, poderia ser uma vela que evoca uma luz, mas é uma xícara de café, que traz recordações e percepções sensoriais mais exacerbadas pelo simples fato de ter seguido uma intenção menos objetiva que o puro líquido escoado.

Já falei neste texto que lidamos pouco com os ritos, e, talvez por isso mesmo, pouco percebamos que eles estão sempre presentes em nossas vidas. Haverá quem diga que é sagrada a macarronada de domingo na casa da nonna, e sabe por quê? Porque é sagrada mesmo. Não no sentido religioso, mas da importância que damos a um ato simples, e que tiramos da normatização do quotidiano. Sempre que se deixar de ir à casa da nonna para o macarrão, faltará algo no dia, e só se fará isso com uma justificativa franca. Quando formos ver a anciã, o domingão estará pleno. Isso é o que é a sacralização do profano que mencionei há pouco. Ritualizamos mesmo quando não nos damos conta. Não é melhor que tenhamos mais consciência disso?

Isso tudo faz pensar em outra característica dos ritos, que é o nascimento de muitos deles na esfera privada, e que depois ganham o mundo público. O fato de eu fazer café ou de você ir à casa da nonna não são exclusividades nossas. Há inúmeras outras pessoas que fazem a mesmíssima coisa, além de tantas outras, como celebrar uma data, uma festa, que vai se tornando mais e mais coletiva na medida em que passa a representar as vontades e as sagrações de um número de pessoas que se identifica com a mesma causa. Tem um belo exemplo de criação de rito que já mencionei em um texto, a simples escolha de um mastro de bandeira, que acaba por mobilizar uma cidade inteira no interior do Ceará. Não é interessante?

Mas minha cerimônia não se encerra quando o café está pronto na xícara. Tal qual costuma ocorrer nas religiões de práticas meditativas, a sorvedura inicial já me conduz a um filosofar, muito semelhante ao que acontece em meus relatos de viagem**. O propósito de Aporias Plurais, o nome deste humilde espaço que compartilho com vocês, é justamente pegar essas coisinhas que ocorrem todos os dias para trazer à reflexão, e é isso que farei doravante. Todas as vezes em que ocorrer ponderações desse tipo, motivadas ou ocorridas ao sabor do sabor do café, vou elaborar um texto para compartir com vocês, meus heróis da resistência. Seu título será “o café filosófico de nosso quotidiano”, seguido pelo tema em questão.

É claro que o nome da ideia vem dos eventos ocorridos na Europa, essencialmente na França, sob a criação do filósofo Marc Sautet, que se reunia em um pequeno bar próximo à Bastilha, em Paris, para concretizar seu propósito de uma filosofia prática, onde a reflexão se desse fora do âmbito da academia. Reunia seus amigos e alunos para debater sobre um tema central, regado de muito café e licor, como é hábito naquele pedaço de planeta. A práxis cresceu, e outros professores adotaram o mesmo costume, abrindo a discussão para um público maior (embora ainda restrito). Em Terra Brasilis, ainda que não tão difundido quanto poderia, o nome ficou celebrizado por eventos promovidos pelo Instituto CPFL e transmitido pela TV Cultura de São Paulo, que trouxe a público muitos dos nomes que hoje em dia estão mais famosos nos meios digitais, como Leandro Karnal, Renato Janine, Clóvis de Barros Filho e outros. E é nessa forma que pretendo abrir mais esse aspecto da minha ágora. Espero que gostem.

Bons ventos a todos. Carregados de cheiro de café.

Recomendação:

O programa Café Filosófico pode ser assistido na TV Cultura, canal 2. Como a pandemia não será para sempre, é provável que voltem os programas ao vivo. Para tanto, basta acompanhar a programação no site da CPFL, onde também há, gratuitamente, todo o material gravado desde 2003. Uma sugestão sincera: pegue um tema que você goste e tente sentir o sabor da Filosofia (ou Sociologia, ou Psicologia, ou Direito, ou Antropologia, as áreas são muitas). Às vezes não nos abrimos para o conhecimento por puro preconceito.

https://www.institutocpfl.org.br/cafe-filosofico

* Perdão a todos os que gostam de leite, e não são poucos, mas no meu paladar não tem jeito: leite não vai. Inclusive a única forma de queijo que eu não gosto é o requeijão, justamente porque mantém um certo sabor de leite.

** Seguem suas páginas principais:

Diário de bordo de uma nau sem rumo

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme

O cesto da gávea de onde observo o mundo

Navegar é preciso viver

Dos dias em que o vento nos afasta do mar

Em demanda dos trilhos perdidos

Para lá da serra que eu vejo da janela

Navegações de cabotagem

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Ateísmo: o que ele é e o que ele não é

Olá!

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Vou dizer para vocês que eu gostei da brincadeira. Publiquei um texto sobre erros e acertos sobre o comunismo e achei bem informativo, mesmo que não tenha tomado tantos xingos quanto esperava. Por conta disso, vou repetir a tarefa outras vezes, só que não de forma sistematizada. Pintou, farei.

O tema de agora é o ateísmo. É um assunto que surpreende quando nos damos conta da quantidade de desinformação que gira em torno do mesmo. Isso porque, quando falamos em comunismo, há de fato um bom tanto de teoria que fica no pano de fundo, e é muito fácil de se fazer confusão, propositadamente ou não. Agora, com relação ao ateísmo, não há nada de misterioso, a não ser que haja uma má vontade de esclarecer e uma boa vontade de manipular. Então vamos a ele, porque não vai ser demorado.


Vamos iniciar pelo fundamental: o que é um ateu?

Um ateu é uma pessoa que não acredita deuses. Só isso. Dá até para discutir que o fato de que um ateu acredite em coisas que não são palpáveis aproximam-no de alguma forma religiosa, como já falei aqui, ou que ritualizem da mesma forma que um religioso, como já discorri neste post, mas a definição que a palavra dá é tremendamente fácil de compreender: a+theos, prefixo de negação A junto à palavra THEOS, que, em grego, significa deus. Ça tout.

Ateus são imorais?

Esta é, de longe, a principal atribuição que se faz a um ateu qualquer. E aqui seria necessário discorrer longamente sobre o que é moral e suas derivações, mas não vamos dar todo esse circunlóquio. Basta dizer que moral, do latim mores, diz respeito aos usos, costumes e valores que ocorrem dentro de uma determinada sociedade, independentemente de quem deriva essa espécie de poder coercitivo de estabelecer o que é bom e o que não é. Para um religioso, a fonte da moral, ou seja, aquele que estabelece o que é certo e o que é errado, é uma divindade, que define a moral arbitrariamente*. Para o ateu, quem estabelece esses mesmos princípios é o contrato social, o acordo tácito entre os indivíduos de uma sociedade para a manutenção da mesma. Por exemplo, a disposição “não matar” ou “não roubar” é, para o religioso, um arbítrio divino; para o ateu, um acordo social para proteger a vida e o patrimônio, os seus e os dos outros. O grande problema é que chega um ponto em que a moralidade religiosa e a “cola” social a quem os ateus se pegam viram duas placas tectônicas em constante colisão, especialmente em termos de moral sexual. Aí, as divergências crescem muito, e o fato de um ateu se preocupar menos com o que alguém faz na cama do que um religioso joga esses primeiros no campo da imoralidade.

Socialmente não é bom que haja uma religião para colocar freios nos indivíduos?

É uma questão meio capciosa, e é feita em função de uma cultura que é moldada pela presença da religião. A psicologia nos fala em freios morais, que são o medo, a vergonha e a culpa, e, da mesma forma que explicado no item anterior, esse conjunto de sentimentos existe tanto para quem é religioso quanto para quem não é. Em uma sociedade com a presença do componente religioso muito forte, a ideia da ausência de deus embute a impressão de que não há mais quem retenha as violências e imoralidades de seus membros. Mas os freios morais estão lá, de qualquer forma. Porém, se em última instância uma pessoa só deixa de cometer crimes porque acredita na punição pelo seu pecado, vá lá que seja. Melhor assim.

Qual é a perspectiva de vida futura de um ateu?

De um ateu convicto, nenhuma. A vida se realiza neste plano e somente aqui. É angustiante? Sim, mas não dá para fazer nada. A fórmula geral é não ficar se debatendo com isso. Já para um agnóstico, há a dúvida, tipo esperar para ver. Talvez haja ateus que esperam errar, não sei.

Ateus e céticos são a mesma coisa?

Um ateu de fato é um cético, mas estritamente com relação à religião. É perfeitamente possível que um ateu acredite em qualquer outra história da carochinha, inclusive de cunho pseudocientífico, como as recentes conspirações da fosfoetanolamina ou da cloroquina. Ceticismo significa dúvida, desconfiança, um não acreditar em alguma coisa sem passar por crivos da razão, é um descrer consciente. Este é o motivo pelo qual essa confusão é costumeira.

Qual a diferença entre ateísmo e agnosticismo?

É raro um ateu cem por cento puro, pela simples razão de que o principal motivo para não se crer em um deus é a ausência de uma predisposição lógico-material dessa divindade. Isso não exclui uma possibilidade de existência, mas reduz muito sua cognoscibilidade. Sempre que um religioso fala em sentir seu deus, dá mais cara de poesia à sua convicção do que qualquer outra coisa, e é disso que o ateu se afasta. Entretanto, é muito difícil, pela própria estrutura humana, não se aceitar a hipótese de que há algo lá fora.

Ateísmo e materialismo são a mesma coisa?

Não, embora seja verdade que, em sentido lato, os ateus sejam materialistas. Essa palavra às vezes tem uma conotação errada, de que tudo o que importa é o mundo material, e que isso seria um sinônimo de mesquinhez.

O ateísmo é uma crença?

É preciso ser bem concessivo para admitir que sim. Há uma diferença fundamental entre o ateu e o agnóstico (e até entre outras posições diante da crença, conforme descrito aqui), que se sintetiza no seguinte: o ateu acredita que deus não exista, enquanto o agnóstico não assume nenhum lado. O ateu tem uma resposta ativa, uma colocação contra o que não pode ser demonstrado, um posicionamento no que diz respeito à transcendência: ela não há. Como não há provas da existência, também não há da inexistência, embora em termos de argumentos haja uma diferença bastante clara no ônus da prova. Sendo assim, temos uma forma de crença que não ocorre na agnose, que simplesmente vaticina que, havendo deuses, eles são incognoscíveis, e isso motiva não uma descrença, mas uma suspensão do juízo sobre o tema.

O ateísmo é uma forma disfarçada de religião?

É uma afirmação frequente, e, apesar de parecer absurda, não é totalmente desprovida de sentido. Isso porque há muitos ateus militantes, que se comportam como se tivessem as mesmas armas das religiões: o proselitismo, os argumentos em forma de desafio, a inconveniência. É o tipo de gente que é mais um raivoso contra a religião do que alguém que não crê e pronto. Para esses, o ateísmo funciona de maneira muito similar a uma religião. É claro que a existência de associações de ateus não responde adequadamente a essa pergunta, porque qualquer grupo de pessoas pode se juntar para a defesa de seus interesses. Um sindicato não é uma igreja, por exemplo, mas tem símbolo próprio, tem condições para a associação, incentiva a manutenção da união entre os seus membros e lutam por suas pautas. É a mesma coisa com as poucas associações de ateus que existem por aí.

O ateu não tem medo do diabo?

É impressionante a quantidade de gente que diz ser o ateísmo uma obra de Satanás. Miseravelmente, se o ateu não acredita em deus, também não acredita no diabo. Do contrário, não seria ateu, mas satanista. Parem com esse tipo de bobagem.

É possível ser ateu e religioso ao mesmo tempo?

Discutível e estranho. De fato, se levarmos em conta estritamente a etimologia da palavra, não faz muito sentido. Entretanto, se não colocarmos a religião unicamente no plano da existência de um deus, mas de uma transcendência, uma instância metafísica que vai para além do alcance humano, neste caso sim, é possível que esse fenômeno aconteça, como é o caso dos budistas (leia mais aqui). Portanto, temos o caso da necessidade de uma definição do que é religião para responder essa pergunta.

Por que existem tantos ateus não declarados?

Como acontece com qualquer grupo minoritário em uma sociedade, ateus são alvo de preconceito. Sabe aquela história de não ter deus no coração? Isso é atribuído não para aqueles que não acreditam em deus, mas para aqueles que são maus. Dessa forma, muita gente acha melhor ficar na miúda a se mostrar como é de fato, como acontece com tanta gente.

Estado laico é uma expressão do ateísmo?

Erro crasso, soturno e desditoso, de quem não compreende mesmo o que é Estado laico. A laicidade não diz respeito à descrença na existência de um deus ou do valor das religiões, mas mui simplesmente a algo que não se mistura com religião. Um estado laico é a garantia de que ninguém será objeto de perseguição por conta de suas crenças ou, vejam só, pela ausência dela. Os mártires do Cristianismo existiram em profusão até o século IV justamente porque o estado romano não era laico. Se o Estado laico não proíbe o exercício de qualquer religião, como pode ser acusado de ser uma expressão do ateísmo? A ideia já era um dos pilares da Revolução Francesa, mas sua assunção mais conhecida vem dos Estados Unidos, um país fortemente ligado à religião cristã. Veja o que diz a primeira emenda da Constituição ianque, com meu grifo ao que mais importa para nós neste texto:

"O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão ou imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem petições ao governo para que sejam feitas reparações de queixas".

Se deus não existe, porque está em todas as culturas do mundo?

É a velha questão dos antropólogos estruturalistas. O homem é fundamentalmente igual em qualquer lugar que esteja. Da mesma forma que fisicamente todos os seres humanos têm cabeça, tronco e membros, também possuem estruturas culturais muito semelhantes. Todas as culturas possuem diversos elementos que divergem na aplicação, mas que se igualam na existência intrínseca: todas as culturas têm regras, têm símbolos, têm valores, têm organização social e política, têm usos e costumes e têm crenças. Ocorre que o nascimento de uma cultura sempre pressupõe uma ancestralidade, que vem de tempos imemoriais. Dessa forma, como o desenho da cultura humana não difere muito de povo para povo, não é de se surpreender que o começo de uma crença se baseie na oralidade, onde qualquer coisa pode ser considerada, menos a origem empírica do conhecimento. É a velha história do Deus das lacunas: estruturalmente um ser humano sempre busca uma explicação para um fenômeno qualquer, e, na falta desta, busca-se elementos do lado de fora, como um alienígena, um deus.

Ateísmo é opção?

Olha... talvez de tanto insistir alguma pessoa possa acabar se convencendo de que deus não existe, como faz para achar que coentro é bom, por exemplo. Na maioria dos casos, chamo isso de autoengano. Normalmente as pessoas não optam por serem ateias, assim como não detesto coentro porque acho feia a planta. Simplesmente acontece, seja porque já se nasce no meio descrente, seja porque se passa por um processo de desencantamento.

Por que o ateísmo é mais forte entre os jovens?

Não sei não, tenho minhas dúvidas. Mas penso em dois motivos. O primeiro é aquela sensação de independência que se tem ao ir contra a corrente. Eu me lembro bem disso quando comecei a fumar, aos doze anos de idade. Era aquela coisa que os mais velhos viviam dizendo para não fazer, então era uma bela maneira de se mostrar aos colegas. O problema é que depois do vício a brincadeira perde a graça. E o outro, que imagino mais real, é que a religião não traz mais boas respostas para as maiores aflições da rapaziada. Eu já disse por aí que um antibiótico funciona melhor que uma reza, e fica difícil de confrontar a realidade como ela é.

Por que ateus falam “graças a deus”?

Por habitualidade. Eu sempre gostei muito de andar descalço (estou descalço nesse exato momento). Isso provavelmente se deve à habitualidade da infância. Como não éramos ricos, nem ao menos remediados, nós, pequenos petizes do meu bairro, ficávamos descalços para economizar tênis quando íamos brincar na rua. Acontece que esse costume, deixando os pés desprotegidos, fazia as topadas nas pedras ser inevitável. Quando isso acontecia, eu não gritava “puuuuuuuuxa vida, que coisa mais chata”, e sim o famoso e sonoro PQP. Eu não estava testemunhando o parto de nenhuma moça de má fama, apenas soltando a explosão à que estava acostumado, sem a busca de um sentido intrínseco das palavras. Quando alguém fala graças a deus, minha nossa senhora, meu pai do céu ou coisa que o valha, faz exatamente a mesma coisa: o uso da função expressiva da linguagem, sem que a literalidade do que se diz seja fundamental para a sua compreensão.

Você é ateu?

Já discorri sobre o tema neste texto. Leia porque foi escrito com muito cuidado.

E é isso, mais uma vez. Espero que gostem e adicionem outras perguntas que vocês gostariam de fazer ou que escutam por aí, de maneira meio esparsa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Certamente não é um livro que eu recomendaria para um religioso convicto, que só ficaria com raiva ao lê-lo. Também é desnecessário para aqueles que já são ateus: seria pregar para convertidos. Este livro pode ser um ponto de viragem justamente para quem se encontra na linha que divide ambas as situações. É meio agressivo, até um pouco mal-educado, mas que coloca muitos dedos na ferida. E é bem escrito.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

* Estou fugindo do sentido negativo desta palavra, de imposição; estou pensando aqui na função de exercer arbítrio, ou seja, de decidir.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Navegações de cabotagem – o Orquidário de Atibaia e as discussões sobre sexo e gênero

Olá!

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Não, este texto não representa uma nova fuga para Atibaia, como já havia contado aqui, mas a sua extensão, pelo fato já relatado de que precisava ficar por lá o dia inteiro. Na parte da tarde, quis pensar no que era possível fazer com a fama desta calma e montanhosa urbe, sabidamente uma das principais produtoras de morangos e flores da Ilha de Vera Cruz. Quem tem boca vai a Roma, mas das bocas de agora saem coronavírus, então achei que poderia tentar a sorte seguindo as placas de trânsito, que davam a indicação “orquidário”, al di là da rodovia Fernão Dias. “Não deverá estar cheio”, pensei eu preventivamente, já que tínhamos até mesmo uma leve garoa. Lá chegando, vimos que se tratava de um sítio particular, e não um parque municipal ou coisa semelhante, como deixava transparecer a sinalização pública. Bem, não é problema. Vamos lá para apreciar morangos e flores.


O sítio pertence à família Takebayashi, evidentemente de origem japonesa, que foi um dos principais povos a colonizar esta região serrana, e se dedicar ao cultivo de plantas ornamentais, com destaque para as orquídeas, sua atividade inicial.


O trabalho lá é sério, com uma bióloga trabalhando no desenvolvimento das espécies de orquídeas e um engenheiro na construção da estrutura que guarnece as plantações de morango, que possui uma metodologia de produção toda própria.



O sistema utilizado na plantação dos morangos é o semi-hidropônico, onde os morangueiros ficam embutidos em baias de isopor e é feito circular um líquido enriquecido entre eles, com uma quantidade de terra muito menor do que seria necessário em uma cultura convencional.



Os morangos são plantados em estufas, o que ajuda a controlar o ataque de pragas e a minimizar os efeitos das condições meteorológicas, já que se trata de uma planta delicada, com flores muito sensíveis.



É do miolo desta flor que brotará a futura fruta. A espécie cultivada aqui é chamada de San Andreas, um dos mais populares, ao lado dos tipos Albion (que costuma ter um fundo fendido) e Diamante (mais claro).



Quem visita as estufas tem o direito de colher e pagar. Por um valor de R$ 15,00, você recebe uma tesourinha escolar e pode escolher diretamente dos pés os morangos que quer levar para casa, numa quantidade correspondente a uma clássica caixinha de sanduíche. Como a estrutura permite a dispensa de agrotóxicos e adubos orgânicos, você pode comer alguns morangos direto na planta.



Poderia ser esperado que, sendo um processo orgânico, os frutos fossem menores do que o encontrado nas feiras, o que não é fato. Saborosos.



Depois da colheita, fomos até a parte das orquídeas, que fica mais para baixo na elevação do terreno. As flores são cultivadas em estufas de rede clássicas. Estes paramentos são necessários para simular o ambiente nativo das espécies, tipicamente oriundas de florestas tropicais.



Mesmo para os exemplares que se encontram a venda, é necessário estabelecer algum tipo de condicionamento, tendo em vista a sua delicadeza. Por esta razão, o galpão de vendas é, ele mesmo, uma estufa.



Um dos mecanismos necessários é produzir umidade adequada, o que não precisa ser obtido unicamente com aparelhagem destoante da reprodução de um ambiente natural. Uma das maneiras é a utilização de fontes e lagoas, embora a que está logo abaixo não estivesse em uso.



Existe um sem número de variedades de orquídeas espalhadas pelo mundo, com uso predominantemente ornamental, e que tem em comum a presença de tubérculos que lembram testículos, origem de seu nome (do grego orchis). Em termos de formatos de flores, há muita variação entre si, dependendo de origem geográfica e de eventuais hibridizações.



Normalmente as orquídeas vivem presas às cascas das árvores, que lhe apoiam e dão abrigo. Entretanto, não se trata de uma parasita, porque não rouba seiva de sua hospedeira, tão-somente aproveitando o material orgânico em decomposição que cai da copada das árvores. Os arranjos feitos em tábuas remetem a essa interatividade entre espécies.




As orquídeas são, de longe, as plantas que maior engajamento produz em admiradores, provavelmente pelo simbolismo que há na precariedade de sua beleza.

Para além das orquídeas, outros espécimes são cultivados no orquidário, como este tipo de bromélia, tão típica das serras de nosso pedaço.



Em outros tempos, o que vou falar agora seria uma espécie de confissão, mas hoje posso falar com todo o conforto: gosto de flores, como gosto de plantas em geral. Em um espaço mínimo que é a varanda do meu apartamento, tenho pelo menos quinze espécies diferentes, que incluem rosas, primaveras e, ora, orquídeas... além de outras plantas que têm sua época de floração, como os tais morangos, uma laranjeira, ora pro nobis, um multicolorido caeté, as minúsculas flores do manjericão e as inesperadas flores de cebolinha, entre outras. Essa é uma característica minha, que me traria problemas se minha cabeça não tivesse amadurecido adequadamente. Sou heterossexual, casado, pai de três filhos, dois ainda com vida, e nunca tive atração por ninguém do mesmo sexo. Isso tudo não tem o condão de dizer coisas como “não sou homofóbico porque tenho amigos gays”, mas de mostrar como essa coisa de azul é de menino, rosa é de menina é uma mera construção social.

Temos tido longas discussões sobre a definição de gêneros em nossa sociedade atual, com um duplo viés: o fortalecimento das novas identidades e a reação de quem não quer que as coisas fujam de seus quadrados. Já é possível resumir logo de cara – temos uma guerra de poder. Discussões de gênero têm sido uma das pautas mais bombásticas dos últimos tempos, regadas de desonestidades intelectuais no estilo “ideologia de gênero”, ou factuais, como as já célebres mamadeiras de piroca. Mas a questão de fundo nem é tão difícil de entender assim. Vamos tratar brevemente sobre o tema.

Tanto homens quanto mulheres possuem um forte elemento de identidade: o seu sexo. Afinal de contas, estruturalmente os homens possuem semelhanças entre si, o mesmo valendo para as mulheres, com uma pequena quantidade de exceções. Portanto, em uma perspectiva comum, homens são mais altos e com mais massa muscular que as mulheres, cada um deles possuem órgãos sexuais próprios, que igualmente produzem internamente hormônios próprios. Dessa forma, é possível designar o sexo do indivíduo, dicotomicamente como ocorrem nos cadastros de pessoal pelo mundo afora, quando temos as opções “Masculino” e “Feminino”. Entretanto, embora os parâmetros biológicos sejam suficientes para dar conta do que é cada um desses sexos, mesmo eles não são suficientes para explicar o que cada um dos indivíduos tem de diferente entre si. Afinal de contas, há seres humanos altos e baixos, magros e gordos, cabeludos e carecas, de canelas grossas e finas e assim sucessivamente. Mas a coisa vai bem mais longe.

Se compararmos homens que vivem em nosso ocidente judaico-cristão, aborígines australianos, nômades berberes, mursis africanos ou inuits do Alasca, verão que todos eles têm hábitos diferentes, o que inclui as afirmações de sua masculinidade. Alguns utilizam adornos em profusão, outros os abominam; uns entendem que a força é um distintivo da masculinidade, enquanto outros veem que é a astúcia na liderança. O que eles têm em comum é o sexo, e todos, mais enfeitados ou mais austeros, são tidos como os machos em seu meio social. Se há essa variação, não podemos entender que é a biologia que constitui o que é um homem nos diferentes povos. Falta alguma coisa e é aí que vai entrar a categoria a que chamamos de gênero.

O gênero está na esfera mais subjetiva da maneira como os humanos enxergam aos outros e a si mesmos. É a afirmação peremptória de que não nascemos prontos e acabados, com todos nossos costumes e jeito de ser já predeterminados. Aqui, a representação do que significa cada um dos gêneros fica recoberta por inúmeras capas de cultura que são construídas por cada povo. É evidente: em cada processo social que um ser humano vive, há uma maneira diferente de se amoldar subjetividades. Portanto, o modo como um indivíduo do sexo masculino se vê no Gabão é absolutamente distinto do que outro homem na ilha de Okinawa, apenas para dar um exemplo, inclusive com a possibilidade de haver conflitos entre ambos. Tudo isso se aplica não só a indivíduos, mas ao modo com o qual a sociedade como um todo enxerga cada um de seus membros.

O gênero, mais complexo que o sexo, e seguramente complementar a essa noção, não se obtém a partir a observação das partes pudendas. Está muito mais ligado à simetria com o comportamento que é esperado de um determinado sexo. No meu exemplo pessoal, tenho uma característica que transpõe a linha, que é gostar de plantas e flores. Em nossa cultura, a normatividade indica que essa é uma característica feminina, o que pode fazer com que outras pessoas estranhem meu gosto e meu hábito. Homens só lidam com esses produtos por obrigação, como fazem quando esse é seu trabalho.

Isso se aplicou inúmeras vezes na vida. Eu lembro bem de que minha mãe já dizia que lavar louça não fazia “cair o pinto”, e que na década de 80, quando os rapazes começaram a usar brincos (em uma orelha específica, que fique claro), muito se falava que se tratava coisa de mariquinhas. Estamos percebendo que já aqui a coisa vai para além do rótulo. E, por isso mesmo, todas as vezes em que as atribuições se entrecruzam, temos uma reação gerada, que vai desde um desconforto até chegar à violência.

O grande problema está em quem podemos conceder o poder de dizer quem pertence a qual gênero em especial. Alguém do sexo feminino pode não se enquadrar por vontade própria naquilo que a sociedade estabelece para tanto, e pode querer ela mesma se determinar como pertencente ao gênero masculino, sem que se faça necessária nenhuma cirurgia de transformação. Acontece que a parte majoritária da sociedade é cruel com esse tipo de individualidade, a quem considera desviante, e a dificuldade está instaurada. A sociedade é imperativa nesse sentido, e é lenta na aceitação de mudanças nos seus crivos, porque tem mais dificuldades em desvincular o que é natural do que é comportamental. Para essa camada social, o máximo para quem se desenquadra do seu gênero, fortemente associado pelo senso comum ao seu sexo, é manter suas preferências no âmbito privado, e por isso tantas pautas, como casamento, adoção e herança homoafetiva são temas espinhosos. Sexo está ligado à natureza, e gênero à cultura, o que são coisas diferentes. Mas sempre é preciso lembrar que casamento, adoção e herança são pontos culturais, e não naturais. Esse é o impasse que vivemos nos dias de hoje.

A discussão ainda vai muito longe, mas é preciso pensar, primordialmente, que não é uma orquídea que vai determinar a masculinidade de ninguém. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Os conceitos de gênero não são nem tão recentes, nem tão antigos. Surgiram em meados da década de 1970, e desde então vem sendo incrementado por diferentes antropólogos. Entretanto, foi com A norte-americana Gayle Rubin que o termo ganhou uma espécie de formato bem descrito. Recomendo a leitura abaixo:

RUBIN, Gayle. Políticas do Sexo. São Paulo: Ubu, 2017.

O orquidário é uma bela pedida para quem gosta de um passeio simples e próximo ao meio natural. Não estou indicando por nenhum benefício financeiro, apenas por ser um lugar bacana. Fica aqui sua localização:

Orquidário Takebayashi 
Estrada Hisaichi Takebayashi, 1675
Jardim Colonial
Atibaia/SP

Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Sobre o tédio dos dias que parecem não terminar nunca

Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último o que agora quebra as tirrenas ondas contra as pedras, sejas sábia, diluas os vinhos e, por ser breve a vida, limites a longa esperança. Enquanto falamos, foge invejoso o tempo: colhe o dia, minimamente crédula no amanhã.

Horácio

Olá!

Eu não tinha como começar 2021 sem fazer um rescaldo do mais insólito de todos os anos. Não quero aqui discutir questões políticas e sociais da pandemia porque qualquer palavrinha a respeito já me deixa mais cansado que os corredores da São Silvestre que não houve. O maluco federal resolveu guerrear com o janota estadual com relação a uma vacina que todos querem a autoria, mas não a  responsabilidade,  e sobre remédios que só existem na vaidade de vossas excelências.  Sendo assim, quero encaminhar o tema para minhas percepções particulares e vivência pessoal, especialmente nas transformações que ocorreram em meu lar e em minha mente.

Quando tudo começou,  lá pelos meados de março,  já tratei de escrever um texto onde eu demonstrava até algum tanto de esperança na solidariedade humana. Paralelamente a isso, via o lado positivo de adquirir automaticamente mais tempo contemplativo e meditativo. Comecei essa tarefa com um aspecto muito prático: peguei quadro a quadro de minhas paredes para fazer uma limpeza criteriosa, com os devidos cuidados para não prejudicar os óleos nas telas e nem os vernizes das molduras, prestando atenção em cada detalhe das pinturas majoritariamente impressionistas, como a que mostrei neste post, e tentando aproveitar o máximo da iluminação dos cômodos, trocando suas posições até encontrar o posicionamento ideal, em um trabalho que me tomou longos… dois dias. Depois foi minha estante de livros, semelhantemente como faço de tempos em tempos (vejam um caso aqui), limpando peça a peça, tanto os livros quanto as prateleiras, que foram novamente forradas e rearranjadas, arrancando elogios da patroa. Também fui combater as sujidades da cristaleira, cheia de artigos delicados herdados de avós e tias, com um inconsueto charuto cubano a aromatizá-la. Por fim, dei um belo apoio no rearranjo do jardim, o que incluiu trocas de vasos, podas, adubação, alimentação das minhocas e etc. Algumas das plantas pareciam refletir um momento em um ponto futuro que viria a se concretizar em breve.


É preciso lembrar que no começo de tudo imaginávamos no máximo dois meses de reclusão, então esse trabalho empolgado realmente suprimia os buracos deixados nas horas vagas adicionais. Inscrevi-me em alguns cursos, peguei a cifra de algumas músicas e essas coisas. Enfim, uma preparação para iniciar minha vida eremítica.

Porém, na medida em que a coisa foi se arrastando e se perdendo no horizonte temporal, mais e mais as tarefas de fora da rotina foram se esgotando, e a tal nova normalidade se instaurando em casa. Sem perceber, fui esticando meu trabalho para bem depois do horário estipulado, esquecendo o primeiro mandamento do home office: “não estenderás teu horário para além daquilo que és contratado". Fui me fiscalizando um pouco melhor, e dado o fim do expediente parti automaticamente para outras plagas. Que tal achar um bom lugar para viajar, hein? Fiz isso várias vezes, achando redondezas para passear com a consorte. Em um determinado momento parei, dei-me conta da inutilidade do ato e perguntei a mim mesmo: até quando isso vai? Quando eu vou poder planejar de verdade minhas próximas férias? Não aguento mais acompanhar de perto o noticiário, perdi o foco nos livros e escrevi muito menos do que queria, quase que me limitando às audições de música, que redundaram em três boas escritas (aqui, aqui e aqui). Achava que ia arrebentar este blog com muitos textos, de modo a quebrar o recorde anual. Não, nem cheguei perto.

Quando começo a escrever este texto, estamos no dia 31/12/2020. Embora não faça tanto gosto com as comemorações de virada de ano, preferindo o Natal, o fato é que sempre é uma oportunidade de se reunir com o pessoal mais chegado, o que ficou restrito à esposa e os dois filhos, no más. Mesmo honrando a parte armênia da família com suas carnes e massas típicas, a mesa já está pronta com uma antecedência nunca dantes vista. Pudera: por mais que deixemos a mesa farta, não é preciso tanta coisa para forrar quatro estômagos. Até o almoço já está prontinho em suas travessas, só esperando o forno para produzir as reações químicas necessárias ao cozimento. Esperávamos o sogrão para o almoço, aquele de quem já andei fofocando aqui e aqui, mas na última hora ele resolveu não vir. Acometido de labirintite e glaucoma agudo, chegou-lhe uma depressão daquelas bravas, de deixar largado na cama. Está se tratando, é verdade, mas ainda tem muita variação no humor, e ainda é muito imprevisível seu comportamento. A reação da patroa e das crianças (de 28 e 26 anos) foi de melancolia, deixando o clima pesadão, silente, bem distante do que pretendemos em uma festividade. Lavei a louça e fui sentar na poltrona da sala, onde dei continuidade a este texto que está diante de seus olhos, meu heroico leitor. E mais nada flui além disso.

Bateu o tédio,  essa é a real. Seja pela prudência para evitar a doença, seja por uma consciência cívica que eu mesmo desconhecia, o fato é que levei de boa a quarentena infindável até agora. Todavia, já venho percebendo um aborrecimento cada vez mais recorrente em todo mundo ao meu redor, e isso também parte de mim.  Um encurtamento na paciência, uma espécie de descrença com relação a planos e assim por diante. Os últimos abusos naturalmente não foram suficientes para tornar rediviva a expectativa de se fazer projetos. É  isso, a vida está chata prá caralho. Pronto, falei.

Sempre lidei bem com o tédio. Sou capaz de me sentar na sala e ficar um bom tempo articulando meus sistemas filosóficos, sem a necessidade de nada mais do que refletir, bastando, para tanto, estar longe do dia de ir ao banco. Fazendo uma rápida reciclagem, já me é uma prática comum desde os tempos de eu-menino,  quando os castigos pelas peraltices me faziam brincar de nada comigo mesmo, na base das ações construídas em minha pequena cabecinha oca. Mas junto com a epidemia do corona parece que chegou a todos uma epidemia de tédio, como se o vírus consumisse não somente as energias do pulmão, mas do próprio sentido da vida.

Por que será que temos que ter um sentido? Por que não podemos pura e simplesmente viver, colhendo o dia como sugeriu Horácio em sua ode da epígrafe? Ou como tantas vezes recomendaram os estoicos em sua dor ou os epicureus em seu prazer simples?

De certa forma, é fácil de explicar. Somos dependentes daquilo que não temos. O tempo não passa lentamente como nossa intuição parece perceber, mas ele apenas reflete nosso vazio diante das coisas que não conseguimos atingir, e isso nos dá cor e sabor de derrota diária. Pensem bem: qual é o significado para nós de um dia que sucede o outro? Não há, embora seja exatamente isso a vida. Nossos dias de herói são muito menos que os de mané, e isso não deveria causar espécie. Quem sente isso, eu incluso, perdeu um bom tanto da consciência de si mesmo. É como se morrêssemos em termos de sentido, mas isso só ocorre na subjetividade, e não no campo físico. Comemos, bebemos, respiramos e vivemos, mas de uma forma como se não estivéssemos mais aqui.

Sim, o tédio é parente direto da depressão, e seu componente inevitável. E isso tem tudo a ver com o modus vivendi de nossa modernidade, que nos obriga não só a uma ocupação da subjetividade, mas que esta ocupação exista a cada instante, incessantemente. Não damos folga para o nosso próprio eu, que, acreditem, clama por pelo menos alguns momentos de estabilidade. Afinal de contas, não é isso que qualquer vida pede? Pela sua própria manutenção? Pelo seu próprio curso?

O grande problema atual com a necessidade de dar um sentido à vida, é que ninguém imagina isso ficando enclausurado dentro de casa. Chega um ponto em que a saída para o desencanto esbarra em nossa incapacidade de agir. Olhem só: a não ser que não tenhamos a menor consciência do que é cuidar do outro, entramos em uma travessa cujo término fica em uma encruzilhada: ou nos isolamos para manter a própria saúde, ou para manter a das pessoas que nos circundam. Se precisamos sair, optamos pelos locais mais isolados, utilizamos o mínimo estritamente necessário de compartilhamentos e nos recolhemos novamente assim que possível. Ou seja, a única medida sensata sempre vai incluir isolamento, onde vamos encontrar sempre as mesmas coisas, o que inclui nosso encontro com nosso próprio desalento. Para conseguir sobreviver, realizamos uma espécie de lobotomia da vontade, uma mola schopenhaueriana que movimenta o mundo, e que, por azar num momento tão conturbado, é nossa maior característica.

E como se faz numa hora dessas? Eu não sei, entediado interlocutor. Como estou confessando neste momento, eu mesmo já não consigo dar respostas às minhas próprias aporias. Para algumas coisas, é possível tomar decisões sensatas. Eu, por exemplo, conheço muita gente que se esfalfa para conseguir uma casa de praia ou uma chacrinha no interior. Há muito tempo eu adotei por compromisso próprio retirar esse tipo de coisa de qualquer lista de prioridades. Sabe-se que uma aquisição dessas não vem sem custos fixos, e a empolgação suplanta o desconforto por um ano ou dois. Daí para frente, é só dor de cabeça. Prefiro mil vezes pagar meu hotelzinho humilde, como já relatei tantas e tantas vezes neste espaço, e não carregar o transtorno para além de minha própria casa. Mas esse é um ponto de vista meu, e só o coloquei aqui a guisa de exemplo, pobre até.

Talvez a resposta, até meio piegas, venha do próprio curso das coisas, e elas costumam acontecer à nossa frente. Prosseguindo com a saga familiar, ao fim da tarde do dia primeiro, com uma chuva que não parava mais, maometanamente fomos à montanha. Achamos por bem dar um apoio ao sogrão, ao invés de continuarmos com a cara de esquife que cada um levava ao seu canto. Nunca fomos assim, e sempre tentamos nos ajudar mutuamente, então era hora de ao menos mostrar a cara para o velho, mesmo que fosse para sairmos de lá mais desanimados ainda. Quando nós chegamos lá, ele estava surpreendentemente bem melhor, falante como de costume. Comeu o bombom de bandeja e a carne assada até tomar a famosa bronca da sogra, e acabamos indo embora bem mais tarde do que imaginávamos inicialmente, relembrando histórias, caçando fotos no celular e falando de nossas perspectivas. O resultado é que voltamos já em outro clima, muito mais fraterno, e, ainda antes de dormir, fomos comer o manjar branco que estava preparado para a véspera, e que acabou esquecido diante do véu de tristeza difusa…

É… o ser humano ainda é capaz de mover suas reações pela empatia que tem pelo seu próximo, e isso permanece como a esperança que precisamos ter para viver. Tudo é tempo: vivemos no tempo e somos, nós mesmos, uma parte inseparável do tempo. Com ele vem tudo, a cura das feridas e a saída para o desencanto, neste momento representado por um ser invisível que nos colocou em outro tipo de dimensão. Mas este ser acaba, enquanto o tempo permanece. Um ótimo 2021 para todos. Nem vai ser tão difícil que ele seja melhor.

Recomendação de leitura:

Vai para o livro da epígrafe, o grande poema romano da importância do momento em nossas vidas.

Horácio. Odes. Lisboa: Cotovia, 2018.