Marcadores

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (19 - Filosofia da Mente)

Olá!


Mesmo precária, como de resto são quase todas as escolas públicas, a que eu estudei no Fundamental tinha lá os seus atrativos. Duas quadras, uma delas muito boa, dois níveis de pátio, cantina bem fornida, com seu famoso x-miséria (pão, tomate, alface e maionese) e um laboratório. Não era grande coisa, e os professores de Ciências sofriam para acomodar todo mundo lá dentro, mas ele tinha um cérebro em uma cuba.

Se estava imerso em formol, álcool ou outra beberagem qualquer, não sei dizer. Sei que era um líquido incolor, que servia para conservar aquela massa cinzenta feiosa, pouco mais consistente que um pudim, cheio de volutas e reentrâncias. Duas coisas me traziam questionamentos: a primeira e mais infantil era como aquele troço imenso cabia em uma caixa craniana, ao que a paciente professora Vera Lúcia explicou que o cérebro na cuba não estava em seu tamanho convencional, porque o relaxamento causado pelos líquidos e a ausência da “embalagem” da cabeça faziam com que este se expandisse. A segunda era, proporcionalmente à idade, mais humanista e filosófica: quem seria o ex-dono daquele cérebro? Certamente era um indigente, de nome incerto e não sabido, proveniente de algum gueto desse mundão. Eu me perguntava se ele concordava em estar ali, exposto na nudez extrema da sede de seus pensamentos, mas depois eu mesmo me respondia que ele não estava ali porra nenhuma, que aquilo à minha frente era um salvado do saco de ossos que virou seu cadáver após a morte, quando ele já não sabia de mais nada, nem do final da novela, nem dos resultados da loteca, quanto mais a destinação de seu telencéfalo extremamente desenvolvido, apesar da pobreza. Eu era criança, mas pensava nessas coisas.

Mas teve gente que tinha outras ideias quando via diante de si um cérebro encerrado em uma cuba. Partindo da premissa de que o cérebro é a matriz que processa toda a realidade ao redor de um corpo, cujas informações chegam a ele captadas pelos sentidos e transmitidos pelas fibras nervosas, imagina-se uma situação em que toda essa parafernália seja substituída por dispositivos computacionais. O cérebro seria ligado ao computador de tal forma que este lhe estimularia cada área de maneira a simular sensações visuais, táteis e demais quejandos como se fossem de uma pessoa com todos os seus órgãos e vacinas em dia. Que tipo de realidade esse cérebro vivenciaria? Ela seria menos real do que a nossa? Aliás, não poderíamos, nós mesmos, ser cérebros em cubas? Somos aquilo que nossas mentes dizem que somos? Essas são perguntas de um dos mais novos campos de investigação filosófica, a Filosofia da Mente. Vamos falar sobre ela.


Toda a experiência mental que eu descrevi acima pressupõe uma dificuldade em definir o que é essa tal de mente (que vem do latim mens). Se a professora Vera Lúcia permitisse, poderíamos tirar aquele cérebro da cuba e fazer picadinho dele. Ainda que com pouca clareza naquela maçaroca, veríamos que tal órgão é composto por dois hemisférios divididos em lobos, que, por sua vez, são ligados por um conjunto de fibras chamado de corpo caloso, uma ilha de substância branca espraiada pelas estruturas cinzento-opacas (falei sobre a função dessa ligação neste texto). Se pudéssemos olhar em um microscópio, veríamos as células cerebrais, os neurônios, com sua inconsueta forma alongada e ramificada, sabendo que as sinapses entre eles conduziam os impulsos elétricos que fariam aquele mendigo pensar, seja para bolar novas maneiras de pedir comida, seja para encontrar o canto onde, abatido por uma pneumonia, por um golpe de faca ou por indisposição em seguir na miséria, bateu com as vinte-e-uma. Mas, vejam vocês, ainda que chegássemos a nível molecular, não conseguiríamos saber nada sobre o pensamento de nosso pobre-diabo. Não está inscrito no corpo físico nenhum indício do que ansiava ou gostava. Não posso vasculhar o cérebro do gajo para encontrar uma plaquinha onde está escrito “coisas que eu gosto”, e lá encontrar um minúsculo camarão, uma micro-batata cozida ou um copúsculo de chope. Daí, encontramos a grande dificuldade de identificar cérebro com mente. Eles não são a mesma coisa; na verdade, um é suporte para o outro. Notem bem a natureza da questão. Temos algo em comum como seres humanos: cérebros. Também temos mentes, mas a única forma que se tem de pesquisar o que há nela é o depoimento. Ou seja, a subjetividade é insondável, porque é possível mentir, é possível se enganar e é possível ter visões distintas da realidade, em um claro problema gnosiológico. A observação do cérebro só permite que se analise alterações de calor e fluxo elétrico, e ainda que isso indique a existência do pensamento, não lhe aclara o conteúdo. E isso só piora o guaio. Se cérebro e mente não devem se confundir, o que aciona a segunda?

Em uma perspectiva dualista, a resposta é simples: a alma. O cérebro (matéria) é capaz de processar pensamentos porque há uma segunda instância, imaterial, que dispara seu uso quando necessário. Desta forma, toda a carga subjetiva, que não conseguimos investigar na pesquisa histológica suposta acima, fica residente no espírito. Esta é, aliás, na concepção dualista, a melhor diferenciação possível entre um ser humano e os demais animais. Ter uma alma é um abismo intransponível entre ambos. O que é difícil de explicar é porque certas doenças ou acidentes que danificam o cérebro fazem com que a personalidade de uma pessoa mude. Em um caso onde a pessoa virasse um eterno comatoso, ok, poderia ser inferido que a alma nada poderia fazer em um cérebro avariado, mas basta observar o exemplo de Phineas Gage* para deduzir que o ferimento foi no cérebro, e a alma, em dimensão etérea, não deveria ter sido atingida pela barra de ferro. Se cérebro e mente não têm nada entre si, e a sede da subjetividade é a alma, não haveríamos de falar em mudança comportamental. Definitivamente, a mente é assunto complexo.

Evidentemente, muitos filósofos trataram do assunto desde os primórdios, mas é com René Descartes que, pela primeira vez, a mente é adotada como critério para aferição da realidade. Insatisfeito com os malabarismos metafísicos, Descartes criou uma nova metodologia para a ordenação do pensamento. Primeiramente, pôs todo o conhecimento possível no âmbito da dúvida. Diferentemente dos céticos, a quem a impossibilidade de conhecer levava a uma desanimada desistência, ele o fez metodicamente, de modo a que toda proposição passasse pelo crivo da clareza e da evidência. Um desses questionamentos centrais dizia respeito à realidade. O que nos fará considerar que algo existe?

A resposta é clássica e positiva: o cogito. A própria dúvida é prova disso. Aquele que duvida existe, porque comete um ato de pensamento. A alegoria do gênio do mal deixa as coisas bem resolvidas. Mesmo que uma entidade maligna produzisse toda a realidade circunstante de maneira ilusória, ainda assim estaria a produzindo para um sujeito, uma consciência que tem como propriedade a capacidade de ser enganada. Se é enganada, é porque pensa, mesmo que de modo errôneo. Eu penso, eu existo.

Descartes cria então uma distinção bem marcada entre mente e corpo. Note-se como ele trata a questão da mente com o mesmo dualismo corpo-alma que tratei acima. No entanto, como sói a um bom filósofo, não de maneira tão simples. Para ele, toda entidade humana possui duas instâncias, a res cogitans e a res extensa. Esta última é aquela que existe fisicamente, que se pode tocar, que ocupa um lugar no espaço e por ele se movimenta, uma coisa extensa, em uma tradução direta do termo. Esse é o sentido de extensão que Descartes utiliza, o de ter presença concreta, ainda que de maneira minúscula, como um átomo. Por sua vez, a res cogitans (coisa pensante) é imaterial, é o pensamento puro, o raciocínio que se desenvolve com os limites de sua liberdade dados pela res extensa, que é onde se instalam os sentidos que lhe trazem o mundo exterior. É nela que estão os componentes da racionalidade, como a subjetividade, a consciência, a memória e a intencionalidade, e, por isso, a razão é autossuficiente como origem do conhecimento. Os conteúdos providos empiricamente pelos sentidos não são nada sem o pensamento que os elabora; são vazios se não apresentados a uma consciência, que carregam e acrescem os dados preexistentes ao sujeito. Por isso dizemos que Descartes foi o principal racionalista da filosofia moderna (ele ainda fala das res divina, a substância de Deus, mas, na minha humilde, foi uma habilidosa “passada de pano” na questão da primazia da res cogitans, em um momento em que era assaz perigoso contradizer as regras da Inquisição, como provou seu quase contemporâneo Giordano Bruno – vide aqui).

Mas agora, a partir de meados do século XX, essa visão dominante cartesiana foi sendo inscrita para aposentadoria. A evolução nas Ciências Cognitivas, que aliam Psicologia e Neurociência foram oferecendo respostas melhores para questão da mente, a partir da descoberta de seu funcionamento a nível profundo. Excluído o componente metafísico dual, a pergunta filosófica passou a se voltar para a tradução dos processos mentais: como uma atividade orgânica pode ser vertida na razão, na emoção, na dúvida e outras disposições tipicamente mentais? A mente é algo que podemos replicar de um humano para uma máquina?

Vou iniciar com mais uma habitual historinha. Vou tentar ser breve, não desanimem. Quando eu estava na época de ir para o colegial, havia uma área em moda: Processamento de Dados. Movido por essa onda, fui estudar no caro colégio Anchieta, já que o Colégio Técnico Federal, o único curso público disponível, era impossível para alguém da minha cultura. A mensalidade comia quase todo o meu salário de arquivista, mas, mesmo assim, fui empolgado, como costuma acontecer com todo mundo que tem um novo projeto. O problema eram os livros, que custavam os dois rins e uma boa parte do fígado. Fui no sábado seguinte às demandas, em uma das livrarias do gênero. Foi a primeira vez que utilizei um recurso que nos acompanha, brasileiros, pelo resto de nossas vidas - o crediário. Em três vezes, mais especificamente. Ainda assim, eu estava contente, com duas sacolas de material didático nas mãos.

Estando alojado dentro do ônibus, me pus a conferir alguns deles. Como não sou curioso doentio, só folheei aqueles que não estavam plastificados, enquanto dos outros só batia o título com a onerosa lista. Um deles me chamou a atenção, não pela beleza, ou pela temática, ou pela dimensão, mas porque era possível sentir que havia algo pregado em sua contracapa posterior, pelo lado de dentro. Algo retangular, cheio de buracos. Não quis abri-lo dentro do busão, já estava atrapalhado com as duas sacolas plenas, e deixei para investigar o defeito em casa. Lá chegando, esqueci de tudo isso e fui jogar bola, que a vida tem sua hierarquia de importâncias.

"Lógica de programação" era o singelo título do livro, para uma disciplina chamada Fundamentos da Informática I. Só peguei o dito cujo no dia em que a matéria estava na grade, e o fiz tão correndo que nem lembrei do detalhe da contracapa. Só fui me desvencilhar do plástico de proteção em plena aula, e pude averiguar do que se tratava: uma placa de plástico transparente, com uma série de desenhos geométricos, como se fossem aquelas réguas de crianças: triângulos, quadrados, círculos e que-tais. A única pergunta cabível era: que porra é essa? Enquanto o professor mandava abrir o livro na página tal, eu estava contemplando a peça insólita, já meio alheado ao tema. Esqueci que não era curioso e aproveitei um respiro do professor Estanislau (vulgo Lalau, na época em que isso não era demérito) para levantar a dúvida existencial.

“Ô, professor... Prá que serve essa reguinha geométrica?”

A resposta do mestre revelava sua indignação:

“Isso não é uma reguinha geométrica, meu caro. É um normógrafo vazado para diagramas de blocos, e serve para fazer fluxogramas”.

Normógrafo vazado... Fiquei um tempo até decorar esse nome, mas aprendi que era uma forma interessante de descrever a linha de fluxo lógico de um processo, contendo todas as suas operações: a entrada dos dados, o seu processamento, as intervenções externas, as decisões que bifurcam os caminhos e os possíveis resultados finais. Tudo isso mais ou menos assim:


Por que contei toda essa historinha? Porque uma corrente expressiva de filósofos da mente entende que, mesmo sem querer, o computador funciona tão bem pelo simples fato de reproduzir, em circuitos eletrônicos, o mesmo funcionamento do cérebro humano.

Com uma boa dose de determinismo (leiam mais aqui), esses filósofos entendem que a mente humana possui uma espécie de algoritmo que lhe guia a conduta, de maneira a existir uma programação muito semelhante àquela dos computadores. Sob medida para essa linha de pensamento é que surge a máquina de Turing, nome dado mais a um conceito do que a um equipamento em si, e foi imaginada por Alan Turing, um dos nomes mais seminais da informática.

O princípio geral da máquina de Turing, bem grosso modo, baseia-se em quatro componentes: um dispositivo de entrada, outro de leitura, uma tabela de ações e um registro de estados. Pelo dispositivo de entrada, são encaminhados os dados e as instruções, sempre sequencialmente, que são lidas pelo dispositivo de leitura. Através da tabela de ações, o equipamento realizará uma tarefa qualquer que lhe encaminhará para um determinado estado. As entradas poderão ser ilimitadas, mas os estados devem estar bem circunscritos. Mantendo a tosquice da proposta, vou dar um exemplo prosaico: vamos catar feijão.

Estamos sentados em uma mesa, com uma toalha branca a recobri-la. À nossa esquerda, temos uma tigela cheia de feijões crus, recém-saídos do seu pacote. À direita, dois destinos possíveis. Um escorredor, para os grãos em ordem; e um cartucho à guisa de lixo, para os rejeitos. Instalados todos os apetrechos, iniciamos a operação. Pega-se um feijão da tigela para ser examinado. Analisa-se peso e cavidades, busca-se orifícios, constata-se se o grão está quebrado. Se estiver bom, vai para o escorredor; ruim, para o saquinho. Um a um, o processo segue até que se esvazie todo o recipiente original. Pode ser que a tarefa continue, sendo a tigela enchida novamente. Não importa, a operação continua a mesma, com a verificação de um escopo finito: o feijão presta ou não presta, com sua destinação preestabelecida. E aqui entra a magia da coisa. Não importa o meio utilizado para catar o feijão. Pode ser um robô, uma esteira automatizada ou um caboclo que goste de feijão. A máquina de Turing está no conceito, e não no meio físico que se usa. Tudo o que funciona com algoritmos é uma máquina de Turing.

Se é verdade o que eu disse acima, então é possível, ao tempo certo, que venha a existir inteligência artificial. É o próprio Alan Turing que propõe um teste para aferir sua eficiência, um teste muito simples. Imagine alguém que dialogará digitalmente com outras duas pessoas, sendo que seu único contato com elas será através de um computador. Uma das pessoas é uma mulher, a outra é um homem. À mulher é destinada a tarefa de convencer ao indagante seu verdadeiro gênero; já o homem deverá tentar persuadir ser ele a mulher. E a pobre cobaia terá que acertar, através de perguntas adequadas, quem é quem de fato. O melhor da brincadeira vem agora. Substituamos o homem por um computador. Se este conseguir convencer o pesquisador ou tornar sua opinião indefinida, terá passado pelo teste de Turing e poderemos considerá-lo inteligente.

Dá medo. Se isto é verdade, nossa mente é comparável a um computador. Uma organização funcional é um programa, tanto para um homem quanto para uma máquina, como deduziu o filósofo Hillary Putnam, a quem voltarei outro dia, e nos dá a sensação de que as máquinas terão pensamento em algum momento, aflorando tantas perguntas da ficção científica. Mas há gente de peso, como John Searle (a quem também voltarei) que acha que a proposição da inteligência artificial é falsa, ao menos nos termos em que vem se delineando. Para tanto, cria o argumento do quarto chinês, que é assim:

Temos alguém encerrado em um quartinho perdido pelo interior da China. Este quarto só tem um contato com o mundo exterior: um buraco por onde entram mensagens escritas em chinês e por onde saem mensagens que ele usa para se comunicar com as pessoas de fora. O problema é que o contribuinte encarcerado não sabe uma única palavra em chinês. Nesta situação, não há como estabelecer nenhum tipo de comunicação. No entanto, há no quarto um subterfúgio disponível: um livro que contém os ideogramas chineses traduzidos para a língua do prisioneiro. Desta forma, é possível que ele consiga ler o que lhe é enviado, e até mesmo responder, invertendo a lógica – localizar uma resposta no dicionário e escrevê-la na folha de papel. Esse processo permite que o preso se comunique, e é indistinguível para quem está fora se ele é chinês ou estrangeiro. Só que ele continua não sabendo nada de chinês. Consegue ler mensagens, mas não sabe interpretá-las. Sabe da sintaxe, mas não da semântica. É como se a inserção em contexto daquilo que se lê fosse uma operação tão complexa e tão necessária a uma correta interpretação da realidade circunstante que o simples processo descrito por Turing não seria suficiente para dar dimensão cognitiva a um equipamento. Sendo assim, pensa Searle que a consciência e a intencionalidade são resultados de processos orgânicos. Elas são processos cerebrais assim como a digestão é um processo estomacal e a respiração é um processo pulmonar. Emulá-las em meio digital vai além de saber ler e decodificar instruções em uma lista de instruções e uma tabela de estados conhecidas.

É isso. Vou parar por aqui porque a tempestade cerebral (mental?) já está me dando dor de cabeça (nos chips?) e vou indo longe demais em tempos de abominação aos textões. Bons ventos a todos.

Recomendação de filme:

O melhor que tenho a indicar é o filme que fala sobre a atribulada vida de Alan Turing, que, se não me engano, está disponível no Netflix. Interessante e tocante, com boa atuação de Benedict Cumberbatch.

TYLDUM, Morten. O Jogo da Imitação. Filme. Estados Unidos: Warner Brothers, 2014. Cor. 114 min.

* Para quem não estiver com saco para ler, faço um resumo rápido. Gage era um operário de estrada de ferro que, no século XIX, sofreu um acidente em seu trabalho: uma barra de ferro atravessou sua cabeça após uma explosão. Não morreu, não entrou em coma, não teve problemas motores dignos de nota, mas mudou completamente de personalidade até sua morte, tornando-se irritadiço, briguento e indisciplinado, em contraste com sua sociabilidade anterior.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (18 – Filosofia da Linguagem)

Olá!


Domingão é dia de jogo. Recomeçou o futebol miúdo, após o longo lapso deixado pela Copa do Mundo, fenômeno que se repete a cada quatro anos. Se já se espreme tudo com os clubes de elite e nos campeonatos principais, que não se fará com os deserdados da famélica Ilha de Vera Cruz... Enfrentam-se Portuguesa e Nacional, dois times que eu gosto, pela Copa Paulista – um torneio tampão para os escretes que não tem o que jogar no segundo semestre. Ora, direis, você perde tempo assistindo jogos de times pobres em campeonatos de pouca valia. Por que não vai acompanhar seu Corinthians em sua esplêndida arena? Bem, já expliquei a coisa aqui, mas, além disso, cumpre lembrar que o ingresso desses novos estádios é muito caro, escorchante mesmo. Não dá para ir sempre, sendo eu um assalariado. Por outro lado, chego em dez minutos no Canindé, compro o ingresso em cinco e pago dez reais. É garantia de bons jogos? Não, mas quem assistiu Croácia vs Dinamarca na pomposa Copa, com todos os seus ornatos e pompons, sabe muito bem que isso não existe. E, no final das contas, para quem gosta de futebol em uma tarde de domingo está bom. Ou você prefere ver o Rodrigo Faro? Faustão? Gugu? Datena?

À parte disso tudo, um estádio é um lugar favorabilíssimo à pratica de Filosofia. É verdade! Já falei tantas vezes de futebol neste blog que nem vou ficar relacionando minudentemente (vejam aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Isso porque temos um microcosmos compactado em um único lugar, e, embora não seja um recorte preciso da sociedade, dá para observar e refletir sobre um monte de coisas. A torcida, por exemplo, manifesta-se a todo instante. Canta para incentivar seu time, para ameaçar o adversário, para regozijar o craque e escrachar o perneta, para homenagear mães da equipe de arbitragem. O técnico fala mais que pobre na chuva, berrando orientações que os jogadores obviamente não escutam no burburinho. Gesticula freneticamente, como se estivesse com o Baile de San Vito*, desesperado para se fazer entender. O juiz apita, aponta, exibe cartões, peita jogadores reclamões, e os bandeiras agitam suas, ora... bandeiras, sinalizando impedimentos e faltas. Há o placar, há os cartazes, há a inútil numeração dos assentos, há vendeiros apregoando seus amendoins, há faixas das organizadas, há setas – arquibancada para cá, cadeiras para lá. Há tudo isso e muito mais, e, permeando cada canto, cada grito, cada xingo, e mesmo cada gesto, há uma essência comum costurando e amarrando tudo, uma espécie de teleologia que vai fazendo farto uso da palavra, escrita e falada, e de um monte outro de símbolos. É uma das características mais marcantes do ser humano em pleno funcionamento e pulsação: a Comunicação, feita através de sua fascinante ferramenta – a Linguagem. O que ela é? Qual é o seu alcance e seus limites? Ela é eficiente? Podemos nos fazer entender sempre? O que seria do conhecimento sem a linguagem? São perguntas que são abordadas pela Filosofia da Linguagem, que passaremos a esmiuçar agora.


Linguagem é um conjunto de códigos destinados a interpretar e traduzir conteúdos mentais, de maneira a permitir que as pessoas se comuniquem. Sua etimologia engana um pouco, já que, evidentemente, se originou do órgão tão hábil na maledicência, sendo que a fala é a forma mais perceptível de comunicação que conhecemos. No entanto, ela não se limita a isso. Gestual, escrita e outros mecanismos permitem que, através da convenção de símbolos, as pessoas se manifestem. Só que ela é tão corriqueira e tão humana que, se observarmos a história da Filosofia, veremos que as perguntas sobre a linguagem são bem recentes. Em um passado mais remoto, veremos que apenas a questão dos universais, uma das favoritas da Idade Média, tem algum fundamento na linguagem, mas, mesmo assim, de fundo mais metafísico do que propriamente linguístico. A coisa não é, a princípio, muito complexa. Há duas correntes divergentes e uma de consenso, que apazigua as duas. Os realistas entendem que tudo o que existe possui um modelo de si próprio que dá origem a todas as suas cópias, e é isso que podemos encontrar ao nosso redor. Por exemplo, pensemos em uma roda. Existem milhões delas por aí, em veículos, motores, brinquedos, relógios, carrinhos de mercado. Mas haveria um paradigma de roda que plasma todas as outras, uma espécie de “Deus das rodas”. Parece ridículo? Pois Platão era seu principal propugnador, e essa roda-protótipo habitaria no mundo das ideias, servindo de fundamento para todas as demais que existem. Ou seja, existiria uma roda-em-si-mesma, universal, válida em qualquer tempo e em qualquer lugar, em uma realidade à parte, e as demais rodas, as rodas do mundo sensível, seriam cópias dela.

Os principais contestadores dos realistas eram os nominalistas, para quem os nomes que damos às coisas nada mais são do que isso mesmo – nomes. Chamamos qualquer coisa por um nome que lhe lembra tal objeto, por uma onomatopeia ou porque a palavra é bonitinha. Roda, portanto, poderia ter qualquer outro nome, e nada mudaria. Maria, José, Abraão, café, botijão, Pink Floyd, edema... Imagine o grito na rua: “Olha! Seu edema está furado!” – sim, eu sei que o que fura não é a roda, mas o pneu. Mas o nome não muda o objeto em si. O universal, neste caso, não traz nada de comum aos objetos que representa, a não ser um nome pelo qual são conhecidos. Guilherme de Ockham, aquele da navalha, é um dos principais pensadores nominalistas, homem prático e pragmático que era.

Finalmente, a terceira via chegava pelas mãos dos conceptualistas, para quem o nome em si não traz nada, mas que serve para agregar um conceito que temos da coisa-em-si. Dessa forma, quando usamos o nome “roda”, já se evoca o seu conceito, ou seja, um objeto circular, que tem o propósito de girar e reduzir atritos. Enfim, um conceito é uma carga de significados, e não um mero nome, apesar de também não ser um paradigma, como queria Platão. Como filósofo conceptualista relevante, cito Pedro Abelardo, de quem dei uma palhinha neste texto.

Mas os problemas linguísticos vão muito além de uma mera querela metafísica. Há muita dificuldade em que se consiga uma forma de expressão que se faça entender sem nenhum tipo de ruído. Há sutilezas para quem fala e para quem ouve que impedem que o elo comunicacional se feche. Eu mesmo já tratei da questão como uma síndrome da linguagem, que nos perpetua o isolamento (é um texto bem interessante, onde eu fui filósofo, e não professor. Leiam aqui). E com o crescimento das Ciências a partir do Renascimento, e mais especificamente após os avanços da Revolução Industrial, a linguagem necessita ser vista com maior cuidado, pelo simples fato de que a precisão requerida em uma encontrava um eco insuficiente na outra. Pense, por exemplo, no que queremos dizer com a palavra “quente”. Como é possível estipular o que é quente? Cem graus é quente? Para ferver a água, sim. Para fundir ferro, nem faz cócegas. Para saber, precisamos de referenciais que são mais móveis do que laterais-direitos em dia de clássico. Isso sem contar os muitos sentidos conotativos que a palavra pode auferir: um ritmo é quente quando convida à dança, um namoro é quente quando há mãos naquilo e aquilo nas mãos, uma aposta é quente quando tem boa chance de emplacar. E pergunte para uma quituteira baiana e você conhecerá um conceito completamente diferente para quentura. Essa indefinição não serve para a Ciência, que necessita de exatidão em seus cálculos e teoremas. Já pensou passar por uma ponte que o engenheiro não sabia se tinha que multiplicar por 10 ou por 1000? Daí, a Filosofia partiu em busca de uma linguagem inequívoca, que conseguisse refletir indubitavelmente toda sorte de fenômenos. Não conseguiu completamente até hoje, mas a principal influência nesta linha de pensamento é Gottlob Frege.

Frege dá, pela primeira vez, um olhar mais carinhoso para a linguagem. Ele constata, por exemplo, que uma das fontes da ambiguidade é o fato de que os nomes que damos a pessoas e objetos possuem uma referência e um sentido. A primeira é aquilo que designa o objeto em si, enquanto a segunda é uma espécie de modo de apresentação, e este pode ser extremamente variável. Digamos que eu evoque o homem Edson Arantes do Nascimento. Estou falando de alguém bem específico e definido, conforme está registrado em sua cédula de identidade. Ou seja, estou fazendo uma referência. Sabemos, no entanto, que é raro que esse cara, tão conhecido, seja tratado por seu nome de batismo. Ele recebe outros tratamentos, que vão além da referência pura que seu nome dá. “Pelé”, por exemplo, é um apelido de infância cuja origem se perdeu no tempo. “Atleta do século” e “rei do futebol” são reverências à sua carreira de brilhantismo. Poderia ainda ser chamado de muitas outras coisas, como o “pai do Edinho”, “filho ilustre de Três Corações”, o “poeta quando tem a boca fechada” (segundo outro gênio, o Romário) ou tantas outras, muitas elogiosas, outras nem tanto, algumas sem juízo de valor. Essas são as diferentes maneiras como o cidadão Edson é apresentado, e essas são as funções de sentido da linguagem. Todos os sentidos exemplificados têm uma única referência. Esta é pura e seca, tentando ser inequívoca, enquanto os sentidos vêm carregados de uma carga emocional, histórica, social, ambiental, contingencial. Mas o próprio nome Edson, não é ele mesmo um sentido? Sim. Nesse caso, a própria referência é um sentido. Confuso, né? Talvez eu volte a abordar o assunto, com mais cuidado.

É óbvio que Frege estava mais preocupado com a lógica e com os desvios que a linguagem produz, mas é a partir daí que ela passou a ser um objeto de estudo de Filosofia em si própria. O pano de fundo tem a ver com o mesmo avanço científico. Se o projeto da Ciência é apresentar a verdade, e sendo esta mais poderosa do que as ferramentas especulativas da Filosofia, faz todo o sentido que a tarefa lhe seja atribuída. À coruja de Minerva restará trilhar outras sendas, que não se preocupem em perscrutar um conhecimento castiço, mas a lhe buscar significados. Sabemos que a Teoria do Conhecimento sempre encontrou dificuldades para determinar como se dá o processo de aquisição cognitiva, pelas peculiaridades dos pontos de vista, dos defeitos dos sentidos, do aporte intelectivo de quem aprende e cosí via. Na virada do século XIX para o XX, os filósofos incluem na pauta a linguagem não só como meio, mas como componente do conhecimento. É a chamada virada linguística.

Com efeito, o que essa nova tendência traz como principal inovação é a promoção da linguagem ao mesmo patamar do saber. Anteriormente, a linguagem era vista como um meio para “pôr para fora” o conhecimento. No entanto, a partir da ideia de que a linguagem é imprescindível para a articulação dos conteúdos mentais, percebe-se que ela é indissociável do conhecimento. Este seria, portanto, uma formação dupla, composta por conteúdos mentais e linguagem, um não podendo sobreviver sem o outro, até mesmo porque é a partir da existência do código que os fluxos mentais podem fazer associações e novas constituições. A linguagem sem conhecimento é vazia; o conhecimento sem linguagem é inefável.

A virada linguística teve duas importantes escolas: O Wiener Kreis (Círculo de Viena) e o movimento de Cambridge-Oxford. No primeiro, floresce uma vertente conhecida como Positivismo Lógico. Nomes como Otto Neurath, Rudolph Carnap e Moritz Schlick trabalharam na concepção de novos critérios que aliassem o indutivismo tradicional com as novas linguagens da Lógica para dar base às afirmações da Ciência. O princípio da verificação sepultava qualquer pretensão da Metafísica em dar valor de verdade aos fenômenos. Não que esta fosse falsa, mas vazia de significado, porque inverificável, dando assim um novo molde à Filosofia da Ciência. Sua principal ligação com o estudo da linguagem se dá no âmbito da redução dos fatos científicos a proposições – somente será considerado científico algo que possa ser sintetizado em uma declaração verificável. Portanto, a primeira análise de uma hipótese é linguística. É possível verificar a assertiva de que “nenhum planeta do universo contém vida além da Terra”? Não. Portanto, é uma afirmação descartada como científica já no plano da linguagem. O Positivismo Lógico foi posteriormente superado pelo princípio da falseabilidade de Karl Popper, mais factível e, no fundo, mais simples.

Já o segundo movimento deu origem ao que hoje é aplicado como sinônimo de Filosofia da Linguagem, a Filosofia Analítica. Além da óbvia alusão à análise da linguagem como elemento constituinte do conhecimento, esse nome também deriva da revista editada em Cambridge e principal órgão da tendência em se substituir a análise do objeto pela linguagem que o representa, Analysis. O principal objetivo das duas universidades britânicas era demonstrar como a Filosofia era análoga à própria linguagem, na medida em que esta É conhecimento. Analisar a linguagem seria a nova Gnosiologia, agora voltada para seu elemento mais evidente, como pode ser visto na Teoria Pictórica da Frase de Ludwig Wittgenstein, no Atomismo Lógico de Bertrand Russell e em outros pensadores, como George E. Moore, Gilbert Ryle e John Wisdom. Eles se aprofundam na estrutura da linguagem para descobrir o modo com o qual ela espelha realidade e pensamento.

Bom... por ora, é isso. A Filosofia da Linguagem não é análise de origem de palavras, isso é Etimologia; não é análise dos usos e desvios da norma, isso é Gramática; não estuda como se formam os idiomas, isso é Filologia, e não se ocupa com aspectos morfológicos ou sociais, isso é Linguística. A tarefa da Filosofia está na análise da linguagem como fenômeno humano que lhe fornece meio para desenvolver sua melhor característica – a razão. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Vamos de Frege, que é basilar na compreensão da moderna interpretação da linguagem, e que é muito válido ainda hoje.

FREGE, F. Gottlob. Sobre o sentido e a referência. São Paulo: Cultrix, 1978.

* Baile de San Vito é uma expressão espanhola para ataque epilético. Crê-se que São Vito Mártir era o protetor contra esse tipo de moléstia. Fonte: Tia Antonia, espanhola.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (17 – Filosofia Ambiental)

Olá!


Era uma vez um tempo em que os homens não se preocupavam muito com o ambiente que os rodeava. Havia uma profusão tão grande de meios naturais que não parecia haver riscos em se derrubar uma boa parte das florestas, extinguir uma boa parte das espécies ou transformar uma boa parte deste ambiente em meio urbano, mais apropriado às comodidades típicas do lento progresso tecnológico. É bem verdade que, aqui e ali, fosse notado um aumento das tosses, a troca da poeira pela fuligem, um acinzentamento do horizonte, o sumiço de bichos tão comuns em outras eras, mas a vinculação entre os fenômenos era toldada pelo conforto e pela acumulação. Acontece que os tempos passaram, e a falta de cuidado empilhada por milênios de relações conturbadas vai cobrando seu preço, representada por temperaturas elevadas constantes e uma umidade tão baixa que enchem nossos narizes de escaras. Será que não perdemos nossa noção de participação do meio natural? Será que nosso distanciamento com o que éramos originalmente não nos leva a uma situação pior daquela que tínhamos anteriormente? Será que temos riscos reais de pôr tudo a perder? Será que ainda há algo a fazer? Essas são as perguntas que fazem brotar um campo recente para a coruja de Minerva plainar, a Filosofia Ambiental.


Pelo fato de ter se destacado o mote do ambiente das demais áreas de investigação filosófica, dá a impressão que a Filosofia nunca se preocupou com questões ambientais. Não é verdade, até mesmo porque o primeiríssimo tema abordado pelos filósofos ocidentais foi justamente a questão do cosmos, qual a origem e o fundamento último das coisas, chegando à arché, já tão explorado neste espaço. E é claro que não dá para falar do universo sem falar da natureza que nos rodeia. Basta que se veja quantos tratados denominados De Natura (Sobre a Natureza) possuímos na Filosofia pré-socrática. Anaximandro, Anaxímenes, Heráclito, Parmênides, Melisso, Empédocles, Anaxágoras e outros compuseram textos assim denominados e que se preocupavam em tratar da questão. Ora, direis, quando esses filósofos falam de “natureza”, não é sobre arvorezinhas e bichinhos, mas sobre aquilo que é inerente às coisas, o que é a natureza das coisas, seu ecochato. Eu sei disso, mas hás de concordar que o mundo em seu estado natural é a melhor forma que temos de descrevê-lo e entendê-lo pelo que ele é. Não vamos fazer explorações botânicas ou paleontológicas no meio da Praça da Sé, mas em meio mais rústico, o mundo como seria se não houvesse a interferência humana. Sendo assim, investigar a natureza das coisas exige um tal nível de regresso às origens que somente a podemos encontrar no mundo preservado, e isso nos faz ter um elo com essa Filosofia mais antiga. Ademais, estes filósofos não faziam a distinção entre o homem e a natureza que passou a ocorrer a partir dos sofistas e seu antropocentrismo, radicalizado a partir da trinca clássica Sócrates-Platão-Aristóteles. O homem era tão parte do mundo quanto a arvorezinha e o bichinho, ou seja, não era apartado do meio natural. E mais ainda, uma parte da metafísica da arché era baseada na ideia de elementos naturais como basilares na composição do cosmos: Tales com sua água, Xenófanes com sua Terra, Anaxímenes com seu ar e Heráclito com seu fogo, além da mistura de todos eles proposta por Empédocles. Portanto, a Filosofia não nasce descolada do meio ambiente, apenas acontecia que a relação entre homem e natureza possuía linhas de divisão mais borradas. A questão se torna mais importante somente após a Revolução Industrial, quando a interferência humana se torna muito mais significativa. E influente. E perigosa.

É óbvio que o salto entre a filosofia da physis e as revoluções técnicas não foi tão abrupto. Do intimismo do homem como parte da natureza dos gregos antigos, passamos para a visão do homem como objeto de estudo, que possui um tempo distinto do meio natural e uma possibilidade de conhecer que não se encontra em qualquer outro ser. Platão dá a nós uma visão desconfiada com relação aos nossos sentidos: tudo o que podemos apreender dos objetos são suas aparências – o verdadeiro conhecimento está no intelecto. Dessa forma, a nossa interação com o ambiente que nos cerca, incluindo o natural, é passível de erro. Esse é um nascedouro, quase embrionário, de um afastamento cada vez mais crescente com a ideia do homem natural.

A coisa não muda de figura no período teocêntrico da Idade Média. Apesar de se ter em mente que Deus cria tudo o que existe, incluindo homem e natureza, este primeiro é um ser especial, criado para ser o herdeiro das benesses divinas. De acordo com a escrita bíblica, Deus dá ao homem a primazia sobre todo o restante do universo, ao fazer dele uma imagem de si próprio. Desta forma, há uma espécie de hierarquia relativa ao domínio sobre o cosmos. No alto, o Deus criador de todas as coisas. Em seguida, o homem, sua imagem e semelhança. Por fim, todo o restante da natureza. Apesar de reconhecer o homem como proveniente do mesmo Deus, dá-se a ele um estatuto de dominador, que pode decidir seu uso e seu destino (“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento; e assim foi” – Gn 1:28-30). Aliás, se considerarmos que é da natureza que o homem extrai sua perdição, ainda que simbolicamente, perceberemos que a relação com o meio natural possui sua dose de conflitos. Afinal, é pela influência da serpente e do fruto da árvore no centro do jardim de Éden que se concretiza o pecado da desobediência e da vontade de autossuficiência, considerados mortais na exegese judaico-cristã. Não parece que estas predisposições influenciem diretamente nos problemas ambientais contemporâneos, mas percebam como vai se formando um cerne que opõe ser humano e sua ambiência.

Nós já sabemos como termina a Idade Média. Paulatinamente, a Ciência que a tudo observa empiricamente vai apresentando mais resultados e melhores explicações acerca da realidade do que faziam os tratados teológicos. Cada vez mais desvinculados de aspectos mágicos, o homem mais uma vez se volta para o mundo que lhe cerca. A pesquisa substitui o vaticínio na predição dos fenômenos, e é constatada a maior eficácia de fármacos em relação a rezas e mandingas, dentre outras miudezas. Evidentemente, esse olhar que novamente se vira para a natureza vem com componentes diferentes daquele dos gregos da velha guarda. O que temos agora é que pensamos não mais como conviver com o meio natural, mas como usufruir dele e essa diferença é fundamental. O advento do Capitalismo reforça o aspecto de utilidade dos recursos, especialmente sob o ponto de vista de produção de riquezas. Não há mais um valor intrínseco em um vasto território arborizado, se em seu lugar puderem existir pastos ou campos cultivados. O braço direito da expansão comercial é a tecnologia. Cada vez mais, as técnicas agrícolas permitem alcançar áreas impensáveis para a cultura, estendendo os limites antes refreados pelo alcance dos braços ao potencial produtivo da máquina. A natureza torna-se um óbice, e não uma aliada.

Tudo isso nasce de uma perspectiva mais mecanicista e menos holística, criada a partir do momento em que o mundo é desmembrado em suas pequenas engrenagens motoras. Há uma certa perda na relação de causalidade: não é imediatamente perceptível que o despejo feito no rio sujará a mesma água que será utilizada para irrigar as plantações ou dar de beber ao gado. Ou melhor raciocinando: primitivamente, há tanta disponibilidade de recursos que parece que os mesmos nunca faltarão. Notem como esse pano de fundo intelectivo agrava ainda mais a separação entre homem e meio. No antropocentrismo, tínhamos uma distinção entre homem e animal; no teocentrismo, entre homem possuidor de espírito e mundo bruto. Agora, temos um completo desenlace entre homem e o restante do mundo. É levada ao paroxismo a questão do domínio da humanidade sobre o território que habita, e este é cada vez mais amplo, pela técnica que se desenvolve mais e mais. Poucos filósofos ainda mantêm algum tipo de pensamento totalizante, como Baruch de Espinoza, mas mesmo ele é ultrapassado com a aproximação de eventos como a Revolução Industrial. Vejamos: Espinoza entendia que o universo era composto por uma e apenas uma natureza, sendo que nosso holandês era, por isso, enquadrado como um monista. Mas, em geral, o monismo vem de braço dado com teses materialistas, que acreditam que nada há além daquilo que os sentidos estão aptos a captar, e não há uma instância metafísica que ultrapasse nosso entendimento. Não é esse o pensamento espinoziano. Para ele, só há uma substância de onde emana todas as demais: Deus. Não havendo outra fonte de onde se origine o cosmos, Deus não só está presente em tudo; ele É tudo. Ao contrário do que queriam as religiões em geral, Deus é imanência pura: está em toda parte e é toda parte. Se por um lado esse panteísmo exclui o aspecto transcendental divino, por outro dá sacralidade a tudo o que existe. Mais que isso, dá unidade. Homem e natureza, neste contexto, são uma só coisa. Mas, como dizia a crítica da época, o panteísmo de Espinoza era uma forma criativa de ateísmo, e ateus nunca foram muito bem vistos. Sendo assim, um crescente Capitalismo que encontrou a escusa weberiana da obtenção do acúmulo fez muito sucesso, pelo motivos óbvios.

É só do meio para o final do século XX que os recursos naturais dão sinais claros de esgotamento, e começamos a sentir falta de uma doutrina integralizante, que conseguisse medir consequências antes da execução das causas. Às crises nos preços do petróleo se somaram os primeiros sinais de aquecimentos global e outros prenúncios de potenciais catástrofes. É fácil perceber as alterações no ambiente com exercícios simples. Eu tenho quase 50 anos, o que, na história da humanidade, não passa de um átomo. Nasci e sempre vivi na cidade de São Paulo. Na minha infância, havia um pacote de pequenos bichos que são difíceis de ver hoje em dia. Pirilampos eram muito comuns. Piolhos de cobra eram abundantes em época de chuva. Havia gafanhotos e grilos audíveis em qualquer noite e em qualquer lugar. Havia também os temíveis chupa-sangue, uma espécie de besourinho vermelho que os mais velhos faziam questão de nos tocar terror. Hoje em dia, todos esses insetos são raros de se ver. Só tem baratas e baratas e mais baratas, que dominarão o mundo logo mais, quando nenhuma outra espécie puder resistir às condições climáticas do planetinha. Ah, e há pernilongos, muitos, de todas as formas e cores. Esse desnível, perceptível em nossas próprias vidas, podem ou não ser causados pela humanidade, mas são empiricamente detectáveis, não há dúvida. Perguntem a seus avós porque o epíteto de São Paulo é “Terra da Garoa”. Hoje ele não faz mais sentido, e por quê? Por alterações climáticas, simplesmente. A névoa matutina é rara, e dias com temperatura mais baixa que dez graus são contáveis nos dedos de uma só mão nos últimos vinte anos. E a discussão descamba improdutivamente para o campo da antropogênese das mudanças climáticas. Que importa se o aquecimento é causado ou não pelo homem? O que precisamos discutir é O QUE podemos fazer para minimizar o problema, porque é ele que vai nos matar.

A Filosofia Ambiental surge, como se pode ver, com um forte propósito ético. Parece muito semelhante à Ecologia, mas difere desta porque uma é Ciência, e a outra é especulação, como toda boa disciplina filosófica. A Ecologia estuda as relações do meio ambiente com os seres que nele habitam (ecologia significa Estudo da Casa em grego), ou seja, não há viés ético obrigatório no seu objeto, mas é a partir dela que passamos a fazer a investigação e a levantar hipóteses, e essa é a conexão que há entre ambas. A Filosofia Ambiental, por seu turno, tem na sua conta a questão dos valores. Um exemplo é a discussão do especismo, uma espécie de racismo com relação a outras espécies, que tratei neste e neste textos, já bem antiguinhos. A ideia base é racionalizar a relação entre homem e ambiente, levantando questões que antes eram mal pensadas. Já tratei do tema por estas plagas, ao discorrer sobre a ecologia profunda de Arne Naess, o utilitarismo ecológico de Peter Singer e a hipótese de Gaia de James Lovelock. Em todos eles, transparecem conceitos que incomodam. Uma Filosofia que sirva para dar base a uma nova visão que tenhamos sobre o mundo obrigatoriamente precisa nos mover. Isso dá uma certa cara ideológica à defesa do meio ambiente, o que é ruim. Ecologia e ética ambiental não deveriam fazer parte somente da pauta da esquerda (para recordar dos cuidados a tomar com os estereótipos e pacotes ideológicos, leiam mais aqui), mas o fato é que o tema, por ser naturalmente político, cai na mesma armadilha da polarização, tão frequentemente disponível aos nossos incautos pés nos dias de hoje. Dizer, como dizem os defensores do modelo liberal que, por exemplo, a cobertura vegetal se restabelecerá em pouco tempo se restituídas suas condições originais oculta duas questões mais delicadas – quando haverá alguma vontade de restabelecer um meio já devastado e o que existirá para fazer essa recomposição, já que não há o milagre da reposição das espécies extintas.

No fundo, no fundo, era inevitável que a Filosofia se enveredasse por esse campo do modo como o fez e que as reações viessem. Temas como poluição, uso de defensivos, esgotamento do solo, expansão agrícola, ameaças de guerra, poderio econômico na administração da terra, todos eles dizem respeito a todos nós, ainda que estejamos longe das arvorezinhas e dos bichinhos, e isso PRECISA nos interessar. Afetam nossa vida, e isso é o motor do pensamento problematizador. Mas afetam também os nossos ganhos, o modo como pautamos nossa evolução histórica, e tirar o rei do trono é sempre um processo doloroso. Bons ventos a todos, enquanto houver vento.

Recomendação de leitura:

Os acordos internacionais prometem muito e entregam pouco. A crise ambiental afeta também o mecanismo social. Ao colapso ecológico seguirá, inexoravelmente, o colapso financeiro e de todo a humanidade como conhecemos. Este é o assunto tratado pelo professor Luiz Marques, da Unicamp, em um livro repleto de embasamento, para que ninguém diga que são bobagens. Não deixem de ler.

MARQUES, Luiz. Capitalismo e Colapso Ambiental. Campinas: Unicamp, 2015

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (16 – Filosofia Política)

Olá!


Vamos reciclar rapidinho um tema muitas vezes mencionado neste espaço. É extremamente difícil rastrear com precisão como se desenhou a história humana no pequeno planetinha azul, mas é certo que, tendo descendência comum com tantos outros primatas, tenhamos mais pontos de semelhança que a cara achatada e os olhos frontais. Um destes nos coloca no grupo dos animais gregários, ou seja, aqueles que se associam e vivem junto, partilhando recursos comuns e realizando um processo de custos e benefícios que é vantajoso biologicamente. É fácil de entender por que. Isoladamente, um ser humano é frágil. Seu equipamento corporal não possui grandes destaques, a não ser por um córtex cerebral sui generis. A vida comum permite que o conjunto se comporte como um grande organismo, onde os subgrupos dividem as tarefas de acordo com sua aptidão ou sua disponibilidade: uns caçam, outros coletam, outros vigiam, outros cuidam da prole e assim sucessivamente. Essa estratégia funcionou tão bem que, no final das contas, derivou nas grandes metrópoles que temos hoje. Evidentemente que, na medida em que a quantidade de membros se tornava maior e ao gregarismo foi somado o sedentarismo propiciado pela incipiente agropecuária, as relações entre os membros do grupo foram se tornando mais e mais complexas. Quando a vida consistia em caçar de dia para ter o que comer à noite, as coisas eram bem delineadas – era partir para o pau e pronto. Estando mais fixos e mais protegidos das intempéries, os homens começaram a se deparar com problemas que não existiam: a organização das tarefas, a distribuição dos recursos, a divisão dos resultados dos esforços comuns. Seria muito bonitinho se tudo fosse tratado com justiça, mas, desde que esse é um conceito um tanto dúbio, o que é justo para um pode não ser para outro. Essa é a raiz dos conflitos oriundos da vida comunitária, e, para mediá-los, nasce toda uma linha de pensamentos que tenta compreender como os homens ajustam acordos e concedem a certas pessoas a atribuição de ter poder sobre as demais. Esse é o cerne da Filosofia Política.


Como sempre, vamos começar pela etimologia. Já notaram como há inúmeras cidades que contêm em seu nome o termo polis? Petrópolis, Teresópolis e Florianópolis no Brasil, Indianapolis, Minneapolis e Persépolis no exterior, dentre muitas outras. Isso não é à toa. Vem do conceito grego de cidades-Estado, que eram os grupos humanos que tinham como característica uma forma de poder delegado pelos seus cidadãos a uma determinada figura, que era obtida por alguma forma de consenso – ou porque os cidadãos concordavam que era adequado, ou porque não tinham como derrotá-lo e baixavam as orelhas. É dessa ideia de uma especialização na tarefa da gestão que nasce a Política, a arte de viver na polis.

O desenvolvimento de uma lógica do poder, no entanto, antecede a formação das cidades-Estado. Antes disso, foi preciso que surgisse o próprio conceito de Estado, que corresponde a um poder decisório em nome de uma coletividade. Sendo que os homens não poderiam resolver todas suas pendências e arestas com base em uma guerra interna, foi necessário que a tarefa fosse atribuída a alguém que pudesse ter nas mãos o bastão que decide, e que, em nome desta mesma coletividade, ditasse os rumos que deveriam ser seguidos, como a determinação na execução de tarefas. Entretanto, como os conflitos são o nascedouro da necessidade de uma intervenção externa, podemos dizer que a Política nasce em uma perspectiva judicial. Se observarmos a história dos hebreus, através da Bíblia, veremos que, antes de nomear um rei (o que, aliás, era objeto de contestação de muita gente), em cada aldeia era escolhido um juiz, cuja tarefa era distribuir justiça, exatamente mitigando conflitos. Somente mais tarde, quando há uma institucionalização crescente das territorialidades ocupadas por etnias, que são unidas por um elo cultural e que tem normas e costumes em comum, é que surge a concepção de Estado. Neste momento, não é mais um grupo de pessoas que se relaciona com outros, mas uma nação. Não conversam, discutem ou batalham gregos e troianos, mas Grécia e Tróia. Só que Grécia e Tróia, como Estados, são entidades abstratas, que precisam ser personificadas através de representantes de carne e osso. É nesse âmbito que surge a figura do governante, o ocupante do poder no Estado. Uma pausa para respirar... Sem dúvida alguma, temos uma visão muito torta da figura do político no Brasil, pelo óbvio motivo de que os mesmos fazem um uso ainda mais torto do poder, mas é tarefa da Filosofia Política lembrar que o fogo serve tanto para queimar quanto para aquecer. E Estado não é governo, governo não é Estado, como eu bem acabei de explicar. Está claro?

A delegação do governo confere muitas responsabilidades aos seus ocupantes, mas, por outro lado e até mesmo por isso, também lhe dá muito poder. Por isso mesmo, os primeiros pensadores políticos trataram da questão no âmbito do idealismo. Como deve se portar o bom político? A quem deve se voltar os interesses do Estado? O que torna legítimo o exercício do poder? Já transparece aqui um amplo substrato axiológico, porque, em tese, estaremos sempre falando de valorações do bem ou do mal. Enfim, nessas linhas de pensamento, a Filosofia Política é, essencialmente, uma derivação da Ética. Os historiadores da Filosofia chamam essa corrente de moralista*.

Gente grande usava a abordagem moralista, como Platão e Aristóteles, mas é com os sofistas e sua inédita visão antropocêntrica que podemos falar em um primeiro pensamento político baseado na razão. De um modo geral, a linha-mestra do que eles pensam tem fundamento na estranha democracia direta helênica, baseada, grosso modo, nas discussões na ágora, a praça pública que acampava as decisões políticas na polis. Os sofistas viam a política como um reflexo da cidade: uma construção humana, e, portanto, tão volúvel e variável quanto. Sua ideia geral era a de que os discursos deveriam se adequar às circunstâncias da variabilidade da vida comum, muito mais do que seguir princípios rígidos.

A partir de Platão, a coisa muda de figura. A noção de cidade como criação humana é deixada de lado, por conta da ideia de agrupamento natural. Agora, os homens vivem em cidades porque é de sua natureza, como já vimos, serem gregários. A invenção da cidade nada mais é do que a evolução esperada das antigas tribos que viviam em choças ou cavernas. Sendo assim, é esperado da polis que tenha o mesmo objetivo dos indivíduos: a virtù, em especial a virtude da justiça. Platão não gostava da democracia ateniense, porque não entendia ser um sistema que favorecesse o exercício de virtudes. Para ele, a distribuição da justiça só poderia se dar pela via da sabedoria, e não pelo conteúdo dos discursos, ou pelo poderio econômico. É a figura do rei-filósofo, aristocrática em sua essência, porque poucos saberiam usar sua razão sem se afetar pelas benesses do poder.

Já Aristóteles nos fala sobre a eudaimonia coletiva, ou seja, uma felicidade que seja aplicável a todos, como já refleti neste texto. É possível detectar a cidade feliz: ela é viva, embora tranquila. O espaço público é ocupado por seus cidadãos, que cuidam bem dele e fazem com que ruas e praças sejam lugares aprazíveis. A cidade feliz só é possível quando há equidade distributiva e participativa. Na primeira, a distribuição dos bens da polis é razoável, não havendo pessoas demasiadamente ricas em detrimento de um grande número de pobres; na segunda, todos têm direito de participar da vida política, tendo espaço para dar e receber justiça e para fazer parte do consenso que resolverá o modo de governar a cidade. Esquerdalha, esse tal de Aristóteles.

Notem que, apesar da beleza do idealismo platônico-aristotélico, cada um do seu modo, não foi frequente na história a sua aplicação. Em contraposição à justiça distributiva de Aristóteles, presenciamos a ascensão de tiranos que concentraram todo o poder em suas mãos. E ao rei-filósofo de Platão, tínhamos seu antagonista direto: o imperador que se impunha pela força. Diante do caráter opressivo e repressivo que caracterizaram os diferentes impérios espalhados pela Terra, era inevitável que a Filosofia levantasse a questão da legitimidade. O que dá guarida ao detentor do poder para que os outros o aceitem no lugar onde está colocado?

Como já vimos no caso dos gregos, a legitimidade se daria pelo consenso da polis: o governante está no poder porque a sociedade assim assentiu. Só que, no caso das tiranias, sabemos que esse consenso não existe, ou, ao menos, não é livre. O que há é uma espada na garganta dos cidadãos. A violência, no caso, explica o governante e os motivos que o mantém no poder, mas não o legitima. Essa posição, por mais que o tirano seja poderoso, é instável. Conspirações e alianças podem fazer com que o eixo do poderio se desloque, a não ser que se encontre uma justificativa para a guarda do poder. E essa é encontrada na esfera divina – nasce a crença de que o poder é um legado dos deuses.

Essa regra originar-se-á no politeísmo, mas será confortavelmente absorvida pelo Cristianismo crescente. Deus é um imperador supremo, que não rege somente a Terra e os homens, mas o universo inteiro. Sua vontade basta por si própria, não cabendo aos homens conceituar se está certa ou errada, já que suas razões são inescrutáveis. O poder régio dos homens é uma atribuição que Deus dá a indivíduos específicos, supostamente cunhados para governar, com a benção de sua igreja, e esse mandato, portanto, tem o seu selo ISO-9001. Desta forma, como representante de Deus na Terra, o rei goza de uma submissão muito próxima da que é devida a Deus. Perfeito!

Isso significa que, indistintamente, toda decisão proclamada pelo governante é incontestável, por ser reflexo da palavra divina? Nem sempre. Segundo Santo Agostinho, o poder político realmente emana de Deus, mas o homem é dotado de livre-arbítrio, ou seja, não é mera marionete nas mãos do titeriteiro supremo. Sendo assim, nada ter a ver a conduta do governante com o fato de ter lhe sido dado o poder por Deus. Um chefe político é um homem como outro qualquer, inclusive nas imperfeições. A vida perfeita se encontra fora do mundo, e não nele. Agostinho projeta duas dimensões existenciais: a cidade de Deus e a cidade dos homens. E apenas na primeira há regência direta de Deus e, consequentemente, a perfeição. Na cidade dos homens, é perfeitamente possível que o ocupante do poder degenere – imutável é só Deus, a eternidade é um dos atributos da perfeição. No entanto, o governante, apesar de não atingir, deve perseguir esta mesma perfeição. De que forma? Seguindo as leis divinas.

Já para São Tomás de Aquino, o Estado é um espaço para o desenvolvimento das virtudes comuns, algo típico em um ser comunitário como o homem. Se este espaço não cumpre essa função, principalmente na tirania que só se importa consigo mesma, é justo que as pessoas se revoltem com a situação. A base para isso é o desacordo com a lei divina. A imposição de uma regra que leve à profanação dos valores, por exemplo, é um caso. E aqui justifica-se o motim. No entanto, a revolta contra o dirigente deve se limitar a extirpar o que há de errado e sempre deve sopesar os bens e os males que dela decorrerão ao bem comum, de modo que não se imponha uma situação ainda pior, como a adoção de um regime ainda mais despótico, que aprofunde a imoralidade e afaste a nação cada vez mais da lei divina.

Bom... É possível perceber que, até agora, mencionamos um monte de ideias que visam estabelecer o que é um bom governante, ou, melhor dizendo, como a Política deve ser. No entanto, toda a história humana nos mostra que a luta pelo poder é escapadiça a esta perspectiva deontológica. Das duas, uma (ou ambas): ou as palavras dos filósofos eram poesias soltas ao vento, ou a análise deveria se voltar para o mundo concreto, despido de tanto idealismo. É com esse painel que lida uma outra cepa de pensadores, à Política que é praticada, ao seu funcionamento e aos seus meandros. São justamente chamados de realistas, e é nessa corrente que nasce a imponente obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.

O termo “maquiavélico” já denuncia o alcance da mudança do pensamento filosófico político. Às portas do Renascimento, quando o pensamento científico vai lentamente afastando a metafísica religiosa do substrato do conhecimento, Maquiavel traz uma concepção política vista de dentro. Membro da corte, observou criteriosamente todo o jogo que se desenhou desde os primórdios conhecidos para produzir um livro incisivo, voltado inteiramente para a práxis política, uma espécie de manual sobre como tomar e manter o domínio de povos e adversários. Sua abordagem exclui todo o mote da justificativa do poder; este é obtido pela força e pela astúcia, não por consenso deliberado ou interveniência divina. Ele deixa de olhar para a Política como uma derivação da Ética, e passa a estudar seus mecanismos. Com esse afastamento e esse sentido prático, Maquiavel se torna detestado por aqueles que exigiam um fundo moral, e o adjetivo derivado de seu nome é, até hoje, um sinônimo de demoníaco. Parece que a injustiça nesse ponto de vista está no fato de que há um desalinhamento irreparável entre o que se oferecia como legitimação ao poder e seus corolários éticos e o que se exercia de fato nos bastidores do poder: traições, eliminação de adversários, favorecimento de aliados e um projeto incessante de continuidade nos tronos reais. Neste sentido, a obra maquiaveliana pode ser vista como um libelo contra a hipocrisia dos detentores do poder e dos devaneios moralistas. Ele enfatiza a necessidade do príncipe (termo que pode ser transposto para qualquer categoria de dirigente) acautelar-se para ser amado ou temido, nunca odiado, porque este é o combustível da deposição. Adota a virtude não no sentido utópico da virtù latina, mas da areté original grega, a virtude propositiva de quem sabe o que fazer na hora certa, com a virilidade necessária, em especial diante da fortuna, a personificação do destino inesperado.

Sua obra, apesar das polêmicas, fez escola, e a Política começou a ser vista mais em si mesma. O laço que une os homens, por exemplo, passou a ser tratado mais pragmaticamente. A humanidade se une em torno de uma impossibilidade de viver em estado de guerra permanente, como preconiza Thomas Hobbes em sua obra mais conhecida, o Leviatã (vejam mais aqui). Em seu entendimento, a natureza humana não é corrompida; é má em si. Veja-se que as crianças nascem eminentemente egoístas, e só vão se solidarizando à medida que captam vantagens em seu relacionamento interpessoal. A sociedade nasce de uma espécie de acordo tácito de se aliar e não se agredir, que foi denominado de contrato social**. A garantia de que estes acordos sejam cumpridos reside na existência do Estado, que é colocado acima do interesse individual.

A Filosofia Política continuou a produzir teses contratualistas, notadamente em 
Rousseau e Locke, que aperfeiçoaram cada vez mais a necessidade da preponderância da lei sobre os membros do Estado, a ponto de, através de Montesquieu, chegarmos a mecanismos que limitem o excesso de poder na mão de poucos, de modo a não se colocar ninguém para além do Estado de Direito, princípio com o qual a legislação deve abranger todo o guarda-chuva social, sem diferenciações. E sua ferramenta para a cumprir essa tarefa é a tripartição dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, onde, respectivamente, são colocadas em prática as medidas de administração do Estado, elaboradas as leis e verificados os seus cumprimentos. É algo que perdura até hoje nas democracias, ainda que, em algumas, de maneira cambaia.

A Filosofia Política ainda solta sua coruja sobre muitos outros temas, mas, sucintamente, é sobre a descrição destes desenhos do poder que ela se debruça. Em tempos de instabilidade, como o atual, é importante que se saiba bem em que tipo de terreno se pisa, para que se saiba filtrar a torrente de bobagens que costumeiramente temos presenciado em redes sociais. Bons ventos a todos.

Recomendação de Leitura:

Não confie em ninguém que queira se meter a politizado, mas não saiba te dizer do que trata o livro abaixo. Ele é a base para entender o que é a Política em bases práticas, mesmo que você não queira entendê-lo como um guia de conduta da classe dirigente.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Centauro, 2001.

* É evidente que este termo, no caso, não tem o sentido moderno de “prócer dos bons costumes”, mas de observação dos valores como critério de avaliação.

** Aqui, não há nenhuma equivalência com o termo utilizado para fins contábeis.