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quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Discussões sobre nossa capacidade de legislar adequadamente sobre a maioridade penal

Olá!

Nos últimos tempos, estamos assistindo uma nova onda de debates sobre a redução da maioridade penal em nosso país. Isso se deve à utilização cada vez mais frequente de menores de idade na execução de crimes violentos por motivos totalmente fúteis, como foi o caso de um rapaz que foi assassinado em um roubo de celular, por uma pessoa a poucos dias de completar 18 anos. A fórmula é simples: como a pena destinada ao menor de idade é muito mais modesta que aquela imputada ao adulto, o “menino” é colocado nos bandos para receber as culpas mais escabrosas, sendo-lhe atribuída a liderança da quadrilha, o porte da arma ou do entorpecente, o tiro fatal, etc.
País estranho, esse tal de Brasil. Há um bom tempo os índices de desemprego são baixos (os economistas consideram que um índice de 5% de desempregados representa a circulação normal de empregados de um país – é o que se chama de “pleno emprego”), há programas de redistribuição de renda e a economia como um todo não vai mal, mas os índices de violência teimam em não baixar, até mesmo pelo contrário. É preciso procurar outros motivos, porque o buraco parece ser bem mais embaixo.

Bem recentemente, deparei com uma frase pichada em bom português no muro que fica de frente onde moro: “Enquanto não houver justiça para os pobres, que não haja paz para os ricos”. Frase boa, perdida em meio a outras garatujas ilegíveis. Inteligente, ameaçadora, e que lembra os protestos estudantis de 1968 espalhados pelo mundo. E, no final das contas, é mais verdadeira que as questões colocadas sobre qual a idade ideal para se punir.
A redução da maioridade pena de 18 para 16 anos é uma das balelas mais estúpidas que ouvi nos últimos tempos, e é elemento representativo da crise intelectual que grassa e desgraça em nosso país. É uma cortina de fumaça que parece destinada a ocultar quatro fatos fundamentais que são ainda mais feios de se observar: nossa indefinição política, um sistema prisional medieval, órgãos de coerção ineficientes e especialmente um ethos adoentado. Vamos tratando de cada um, aos poucos e não necessariamente nessa ordem.


Para entender porque reduzir a maioridade penal é algo ineficaz e perigoso, vamos pegar alguns conceitos do brilhante educador suíço Jean Piaget, o principal papa da escola construtivista da aprendizagem, através de sua teoria da epistemologia genética. Antes da gênese do ideário piagetiano, a psicologia da educação dividia-se basicamente em duas correntes: a visão inatista, que via os processos de aprendizagem como algo hereditário e dependente exclusivamente da capacidade individual, o que explicaria as diferenças de desempenho entre duas pessoas expostas à mesma fonte de conhecimento; e a visão ambientalista, onde se cria que o conhecimento é derivado direto da experiência com o ambiente com o qual se vive, o que explicaria a diferença de aptidões a certas atividades entre os indivíduos. Piaget concorda com ambas, mas não de maneira isolada. Na verdade, elas interagem entre si e se complementam. Desta forma, a criança traz em si um conhecimento que herda e agrega à experiência que obtém do seu ambiente e de seus relacionamentos. A argamassa que solidifica essa construção é a maturação.

O que significa a maturação? É a capacidade de tornar cada vez mais sofisticados os processos de ligação do ambiente que nos rodeia com o nosso aporte cognitivo. Isso se dá aos poucos, na medida em que adquirimos experiência e aperfeiçoamos nossos esquemas mentais. Para citar um exemplo, uma criança muito nova aprende o que é um cachorro, definindo-o através de poucos parâmetros, como o fato de ter pelos e quatro patas. Qualquer outro animal que se encaixe nessa característica, seja um gato, seja uma vaca, seja um cavalo, é, para essa criança, um cachorro. Aos poucos, o contato com outros ambientes e pessoas agrega tijolos à construção, e a criança aprende a estabelecer diferenciações entre os animais de pelos e quatro patas. A aprendizagem é um processo constante de assimilação, acomodação e equilibração.

Na medida em que progride no seu processo de aprendizagem (e aqui não estamos falando apenas no ensino formal), o indivíduo muda de estágios de maturação. Piaget estabeleceu quatro deles:
- Sensório-motor: inicia-se com as ações reflexas típicas de um bebê, como o ato de chorar quando se tem fome, e vai evoluindo para o alcance de objetivos. O processo de absorção de informações e memorização é intenso nessa fase;

- Pré-operacional: intensificação do uso da linguagem e caráter egocêntrico. A criança tem dificuldade em compreender o ponto de vista do outro;
- Operacional-concreto: uso da lógica na resolução de problemas concretos, mas ainda sem compreensão plena da alteridade e com pouca capacidade para lidar com uma lógica abstrata;

- Operacional-formal: consegue lidar com a abstração. Adquire sentido de identidade, o que faz com que se situe no mundo e, consequentemente, lide com limites.
Pois então. Se compreendermos que as teses de Piaget são corretas, podemos começar a entender porque a redução da idade penal é inócua e até mesmo arriscada. A lógica que rege a utilização de jovens criminosos baseia-se, como já falei, em uma punição mais discreta ao menor. Um rapaz de 18 anos tecnicamente sabe usar um revólver, e um de 16 também, assim como um de 14 e até mesmo um de 12. Se hoje se utiliza alguém de 17 anos para servir de vidraça na consumação de crimes, utilizar-se-á alguém de 15 doravante, ora pois. Isso porque a lógica não muda, mui simplesmente. Continua existindo um determinado cidadão punido menos rigorosamente pela lei. E daqui a pouco teremos uma campanha para reduzir a idade penal para 14 anos, 12, 11, 10...

A brincadeira vai se tornando cada vez mais cruel porque, na medida em que se diminui a idade, aumenta-se a inconsequência derivada da falta de maturidade. Quanto mais nova a pessoa, menos critérios ela possui para deter seu dedo no gatilho, ou fazer outro tipo de bobagem. Corremos o risco de chegar ao ponto de atingir indivíduos que somente articulam bem no sentido concreto, e que tem maior dificuldade em lidar com a alteridade.
A solução? Claro que não há fórmula a seguir. Mas não há como fugir do questionamento incômodo: se o direito penal existe, pressupomos a existência da transgressão à lei. E é preciso pensar em como o brasileiro se coloca diante da lei, a maneira como se dá a relação da sociedade brasileira com suas disposições jurídicas. Mas é crucial que tentemos entender esse posicionamento para que possamos deduzir se é acertado ou não baixar a idade penal. E, no meu entender, não há motivos para otimismo.

Tenho percebido que há uma completa dissonância entre o que pensamos coletivamente e o que queremos individualmente. As pessoas em geral querem a aplicação de penas duríssimas para os transgressores da lei. Não se conformam com a progressão do regime, nem com a concessão de indultos. Também não costumam apreciar exclusões elitistas, como é o caso da prisão especial para as pessoas que possuem curso superior. Mas procuram salvaguardar um certo esquema de exceção, para quando elas mesmas, enquanto indivíduos, necessitarem da burla à legislação. A pena é dura para os outros, mas para mim ela deve ser amenizada, em uma explicitação de um processo de egoísmo. Pode parecer que a análise é um pouco pontuda demais, mas pense em pessoas que burlam o imposto de renda, que não respeitam vagas reservadas, que cantam o guarda para não aplicar a multa, que adiantam os minutos da zona azul, que se valem de aplicativos para celular para localizar blitzes, que multiplicam pontos de acesso de tv a cabo, que pagam um “quebra” para tirar a carteira de motorista, que mentem na renda para ganhar bolsa escola, que “perdem” a carteira de trabalho para não denunciar uma demissão rápida, que usam passe escolar no dia em que não tem aula, que marcam o ponto para os colegas e que pedem para que os colegas lhe marquem o ponto (o mesmo valendo para as listas de chamada das escolas), que subornam fiscais para aprovar os puxadinhos, que usam materiais do escritório em que trabalham nas suas casas; cadastramos apólices para pessoas mais velhas – com o objetivo de reduzir o valor do seguro, compramos produtos piratas e falsificados, baixamos músicas e filmes sem pagar direitos autorais, compramos atestados para faltar no trabalho, tungamos cinzeiros dos motéis, pegamos troco a mais e não nos manifestamos, pagamos oficiais de justiça para não nos achar, omitimos os defeitos daquilo que vendemos, fingimos dormir nos assentos reservados, e, principalmente, damos estatuto de otário para quem não se reserva o direito de transgredir (desde já excluo aqueles que transgridem para licitamente contestar uma situação de injustiça).
Tudo isso é relativamente comum, e é difícil atirar a primeira pedra, porque é improvável que nunca tenhamos cometido nenhum desses pecados. São todas pequenas indulgências que costumamos utilizar com a desculpa de que a sociedade é injusta. Mas o grande problema é que o brasileiro é desonesto no miúdo, em coisas onde não haveria a menor necessidade de sê-lo, e habituamo-nos a utilizar destes expedientes. Vivemos em uma cultura da vantagem que nos impede de enxergar claramente os limites de nossa ética social. Nosso modo de ser é um tanto distorcido, no que diz respeito ao viver democrático.

Uma boa parte disso se deve à indefinição dos rumos políticos adotados pela nossa sociedade. A mesma Constituição que defende a propriedade como um dos direitos fundamentais do cidadão também garante o acesso à moradia como direito social, para dar um exemplo entre tantos. Ora, são princípios discrepantes enquanto o Estado não garantir este último direito a todos aqueles que estão sob seu guarda-chuva. Não sabemos bem se vamos à direita ou à esquerda, e o resultado é que tanto aqueles que invadem edifícios sem uso quanto aqueles que querem ver salvaguardados seus direitos à posse e propriedade tem razão. Dessa forma, toda a sociedade se coloca em uma posição de confronto permanente, com cada classe erguendo suas bandeiras e suas indignações.
Essa contraposição é gênese de um mal que insistimos em não reconhecer como originário de nossa propensão à exclusão social: um sistema carcerário no qual podemos incluir qualquer qualificativo, menos o fato de ser eficiente. Também aqui temos uma visão dual e indefinida: não sabemos se queremos punir ou recuperar. Uma das tendências que dificilmente vemos ser assumida em público, mas que bombam nas redes sociais, é de ampliar o escopo punitivo, fazendo-se cumprir penas mais rigorosas, com um processo legal mais ágil e com menos benesses aos detentos. É a pena imputada como castigo e vingança – uma posição legítima como qualquer outra, desde que racionalmente defendida, o que é incomum. É mais corriqueiro vermos aqueles ambíguos arroubos de defesa da violência para combate da violência. Isto está na raiz das reações humanas porque a insegurança lida diretamente com nossa psique, perturbando-a. E isso gera indignações fáceis e mentirosas, como aquela que está famosinha no Facebook, que diz que todos os presos têm direito a uma bolsa de algo em torno de R$ 800,00 por filho (o valor varia). A informação é completamente falsa, mas como o ódio e o medo das pessoas está à flor da pele, elas replicam estupidamente essa mentira, sem se preocupar minimamente em conferir a sua veracidade, o que pode ser feito em segundos, nestes tempos de internet (veja este folheto do Ministério da Previdência explicando sucintamente como funciona o auxílio-reclusão – só os presos segurados têm direito, sendo que o cálculo do benefício é baseado no seu salário e possui um teto, que será dividido entre TODOS os seus dependentes).

Por outro lado, temos um discurso mais público, de que as instituições penitenciárias devem promover a reeducação e recuperação dos encarcerados. As condições sociais desfavoráveis acabam por empurrar o cidadão para o crime, e ele acaba não se tornando o único responsável por sua condição; por isso devem ser propiciados a ele mecanismos de reinserção, como a aprendizagem de um ofício, a paulatina redução de suas penas de acordo com seu progresso e et cetera. O busílis é que, aqui também, a sociedade e seus representantes eleitos não conseguem definir um rumo adequado, e com isso as penitenciárias são um misto de indutores da inutilidade e quarteis generais do crime organizado, como tão bem temos visto nos noticiários. O norte dado ao judiciário é desanimador, as leis são dúbias e já nascem com esse escopo. Fala-se muito: a polícia prende e a justiça solta. É fato, mas essa é a lei. A lei permite isso. A culpa não é nem da polícia, nem do judiciário. Penso que uma das piores causas do não arrefecimento da violência no Brasil está justamente no fato de que as regras penais não são claras, e isso permite que grandes criminosos estejam soltos, enquanto ladrões de galinha, que deveriam cumprir penas alternativas, sejam presos por bagatelas.

No final das contas, quem defende a maioridade penal aos 16 anos nada mais faz do que empurrar mais um contingente para esse sistema, sem solucionar o problema. Antes de se pensar nisso, é preciso ter um pensamento de duas vertentes:
- Evitar que as pessoas cheguem ao crime, e a chave disso é a presença do poder público onde ele é mais necessário;

- Para as pessoas que praticaram crimes, garantir que CUMPRAM penas, que conheçam com exatidão sua cominação e que os presídios sejam entidades de recuperação e integração.
Por estes motivos todos, penso em algo ousado: os órgãos judiciários devem ser providos de recursos (não apenas financeiros, mas de dispositivos legais) que se permita pensar em uma ação transformadora sobre o sujeito passivo em um processo penal. Que sejam disponibilizados assistentes sociais em número suficiente para descrever o ambiente em que vive o réu, suas dificuldades e limitações. O mesmo se aplique a psicólogos, para traçar perfis adequados, as angústias e expectativas dos detentos. Que sejam detectadas, através de especialistas vocacionais, as aptidões e conhecimentos dos acusados, para que o juiz possa decidir qual a instituição mais adequada a cada perfil. Que a educação profissional não se limite a “costura de bolas”, mas se volte à efetiva formação do detento. Que se formem convênios com empresas, se necessário através da concessão de incentivos fiscais, para que os ex-detentos tenham acesso a emprego, e que o juiz tenha suporte para decidir qual é a melhor para seu encaminhamento. Que os professores possam trabalhar com pequenos grupos e possam relatar ao juiz sobre o desempenho e comportamento dos recuperandos. É preciso, portanto, que se abandone a generalização e se possa investigar o indivíduo. Afinal, nosso sistema social é efetivamente voltado para o indivíduo. Se isso for obtido, provavelmente não precisaremos da arbitrariedade de uma idade penal preestabelecida, porque será possível, com maior precisão, identificar a penalidade necessária (e se é necessária), e com isso termina essa inútil discussão sobre qual a idade ideal para as imputações penais. Custa caro, mas vale a pena, podem ter certeza. Não vivemos reclamando que o gasto público é mal dirigido?
Recomendação de leitura:
Jean Piaget elaborou uma teoria educacional que é seguida por inúmeras escolas hoje em dia (muitas delas apenas no nome). É muito interessante para aquele que se interessa por educação dar uma boa lida em sua obra, em especial na seguinte:

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. Petrópolis: Vozes, 1971.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Sobre abelhas e a criminalidade como vício social gerador de faturamento

Olá!

Vocês conhecem o Parque da Água Branca? Ele nasceu como uma antiga escola de práticas agrícolas, o que, convenhamos, tornou-se totalmente anacrônico em uma cidade onde só florescem prédios e violência, mas que foi transformado em um interessante atrativo, porque há algumas características que o distanciam de um parque convencional. Por exemplo: não há amplos gramados e quadras, mas um enorme picadeiro onde é praticada equitação. A quantidade relativamente pequena de árvores é compensada por pérgolas e bambuzais, além de uma infinidade de galinhas, patos, marrecos, gansos e até mesmo alguns pavões. Seus espaços recebem clara intervenção humana, e muitas feiras são realizadas em seus galpões, incluindo uma de produtos orgânicos, na qual me encontro defronte, neste exato momento, enquanto aguardo em um misto de contemplação e angústia ao término das compras de minha patroa e de minha patroinha.

Por falar nela, devo dizer que se chama Deborah, que significa “abelha” em hebraico. Não quis homenagear nossas simpáticas himenópteras nem a juíza cujas aventuras foram narradas na Bíblia, apenas gostei do nome. Mas há uma coincidência contingencial: enquanto aguardo a Deborah, estou rodeado de abelhas, atraídas pela barraca de doces mascavos aqui ao meu lado. Olhem só essa humilde, certificada e mal fotografada jataizinha...

 

... que batalha incansavelmente por algumas poucas e deliciosas partículas de pólen. Diante disso, resolvi falar sobre elas, ou melhor, usá-las como ponte para falar sobre outra temática.

Imaginem uma pujante, vanguardista, altaneira, vigorosa, venerável, álacre, denodada, auspiciosa, sobranceira, proeminente, altiva, egrégia, insígne, colenda, notável colmeia. Esta é habitada por expressivo enxame de laboriosas abelhas, com os mesmos qualificativos e predicados já mencionados. Vista de uma perspectiva externa, a colmeia é o máximo do sonho positivista de ordem e progresso (do amor nem tanto, não há tempo para isso em ambiente tão célere). Uma peça arquitetônica de perfeição modelar, um verdadeiro ideal que habita na forma aristotélica que a define não como um amontoado de cera, mas como legítima obra de engenharia natural. Todos os sistemas parecem funcionar a contento, porque a abundância era evidente, dando mostras de que todo aquele universo era tremendamente bem governado.

No entanto, ao deslocar o olhar para as abelhas como indivíduos, percebia-se algo inusitado: imperava entre elas a inconstância, a inquietação e a insaciedade. Todo o trabalho destes milhares de seres era insuficiente para abastecer de benesses uma pequena cúpula formada por abelhas privilegiadas.

Havia lá uma inaparente divisão social ao observador externo. Essa divisão era muito bem marcada, mas todas as classes viviam com um mesmo objetivo: a ascensão social. Para as abelhas mais ricas, a meta era alcançar um conforto cada vez maior, enquanto para as camadas de baixo a esperança consistia em galgar a escada para a camada rica, e, aí sim, almejar o mesmo conforto e inoperância. Só que a penúria destas classes mais baixas era mantida a ferro e a fogo pelas camadas superiores, cientes de que o bolo monetário mais dividido traria um pouco mais de felicidade para as mais pobres e muito menos regalias para seus membros. Desta forma, as abelhas proletárias se viam condenadas a conviver com as parcas disponibilidades que o suor de seu rosto conseguia obter, enquanto as nababescas irmãs afortunadas viviam no ócio e no luxo.

Havia ainda aquelas que viviam em uma espécie de submundo, se alimentando de toda espécie de miséria para obter ganho e status. Viviam de atividades subversivas e transgressivas da ordem emanada pelo governo da colmeia: aproveitavam de jovens e viúvas, usavam das viciadas em jogos, iniciavam muitas abelhas em atividades sujas e exploravam seu trabalho até ultrapassar os limites da dignidade apícola. É bem verdade que, desta forma, traziam o benefício de ofertar trabalho àquelas que foram expurgadas pelo sistema trabalhista daquele local, dando-lhes algum tipo de “ocupação”, mas o faziam apenas porque os líderes da colmeia faziam vistas grossas (e às vezes até mesmo usufruíam) às tais atividades.

Em uma categoria correlata, havia aquelas abelhas que viviam da ilusão do povo, como as abelhas-sacerdotes, que através da fé cega de certo séquito obtinham rendas e ócio suficiente para poderem ser inúteis à vontade. Sua tarefa básica era inculcar culpa nas fiéis para que a vida delas se tornasse um constante expurgo de pseudo-pecados, que eram basicamente compostos de reparações devidas a seus deuses através da prestação de serviços aos lídimos representantes, ora, as próprias abelhas-sacerdotes. Desta forma, ao redor da instituição religiosa, formava-se um autêntico feudo sustentado pela dor.

Todas as abelhas que possuíam algum nível que as retirassem da base da pirâmide social agiam de forma a obter maior proveito próprio. As abelhas-advogadas, por exemplo, cuidavam não de obter justiça para suas clientes, mas de estender as causas ao máximo das economias disponíveis; as abelhas-médicas não procuravam curar as pacientes, mas tão-somente prolongar as doenças até os limites de suas forças, receitando remédios inócuos; e, mesmo quando os remédios eram receitados com seriedade, as abelhas-boticárias tratavam de encher suas pílulas com farinha, seus xaropes com açúcar e seus elixires com aguardente ordinária - princípio ativo, que é bom, muito pouco; as abelhas-soldado, ao invés de buscar a defesa da lei e da ordem no interior da colmeia, preferiam viver de surrupiar e extorquir justamente aquelas que deveriam defender, a coletividade; haviam abelhas-soldado sérias, é bem verdade. Mas estas invariavelmente se viam mutiladas pelo combate e pela defesa do território, e eram sepultadas sem grandes honras ou aposentadas com baixo ganho. Mas os postos de comando eram ocupados por aquelas mesmas abelhas que mencionei anteriormente, que nunca souberam o que era uma frente de batalha e a quem era granjeada imensa láurea, com medalhas e comendas, dentre outras honrarias.

Apesar disso, o crime era punido com exemplar rigor pelas abelhas-magistradas. Quer dizer, os crimes cometidos pela prole, a quem eram imputadas as principais causas das mazelas. Uma abelha-operária que ousasse subtrair uma pequena porção de alimento por incapacidade de obtê-la através de seus meios legais era levada à forca. Isso para defender a propriedade da nata (em uma colmeia, poderíamos chamar de geleia real? – argh!), que deve ser defendida com eficácia pelo Estado, com o fim de evitar a desordem. Já os crimes cometidos pelas abelhas de escol... Bem, não se pode ser perfeito em tudo. E, no final das contas, é preciso levar em conta o status psicológico do acusado, suas atenuantes, seus atos falhos... Tudo isso é digno de perdão, não é mesmo?

Mas é preciso observar tudo por um outro lado. Mesmo com todos estes desajustes individuais, a sociedade da colmeia formava uma máquina que operava muitíssimo bem. Se é verdade que os comandantes viviam em um luxo quase sórdido, também é verdade que esse mesmo luxo fornecia trabalho para muitas abelhas. As abelhas-artesãs tinham na elite verdadeiros mecenas que financiavam suas obras, e estas se tornavam cada vez mais criativas, tentando superar a obra umas das outras. Os aposentos cada vez mais chiques empregavam abelhas-marceneiras, abelhas-tapeceiras, abelhas-costureiras. O serviço das madames fazia com que as abelhas-mordomo, abelhas-camareiras, abelhas-cozinheiras e outras tivessem seu sustento. As abelhas-sacerdote reuniam um sem-número de abelhas-auxiliares para manter o serviço dos templos. Os emaranhados de leis a partir das quais as abelhas-magistradas julgavam e as abelhas-advogadas litigavam traziam trabalho para as abelhas-escribas, abelhas-carregadoras-de-processos, abelhas-editoras, abelhas-revisoras e muitas mais. Assim, mesmo as abelhas mais humildes ainda podiam se regozijar de possuir um meio de vida, ainda que muito simples.

Desta forma, todos estes vícios privados constituíam virtudes públicas, porque faziam girar as engrenagens desta máquina social. Lidando com a vaidade das abelhas, o desejo do luxo e do conforto gerava uma indústria que se retroalimentava, gerando mais vícios e mais ocupações, e, claro, mais riquezas!

Mas eis que algo de estranho acontece. Em uma espécie de insight, um pequeno grupo de abelhas se tornou consciente de que toda a riqueza da colmeia era constituída pela maldade e pela iniquidade, e essa ideia passou a ser cada vez mais difundida, a ponto de uma abelha-comerciante, conhecidíssima como solerte praticante desta mesmíssima maldade e iniquidade, velhaquíssima usuária da malandragem de falseamento de pesos e medidas, e dos juros exorbitantes disfarçados de benesse ao comprador, proferiu a seguinte imprecação:

- “Que os céus nos mandem somente a probidade!”

A reação inicial do séquito celeste constituiu-se em uma imensa e retumbante gargalhada, mas Júpiter, o maior deles, aborreceu-se com a desfaçatez do apelo e resolveu atendê-lo, eliminando todo o sentimento de roubo e fraude daquela comunidade.

Deste momento em diante, houve uma transformação no espírito da colmeia, com as consequentes manifestações externas. Imediatamente, os produtos viciados foram retirados do mercado e os preços sofreram uma baixa nunca vista. Os credores passaram a remover as usuras de seus direitos, e os devedores começaram a quitar suas dívidas. Os tribunais passaram a se esvaziar, já que as abelhas buscavam acordos antes de realizar qualquer demanda. O reflexo imediato foi o esvaziamento do papel das abelhas-advogadas, que ficaram sem serviço. A desnecessidade das prisões suprimiu na necessidade de muitos funcionários, como oficiais de justiça, carrascos, carcereiros. Estes não achavam justo aproveitar de carreiras estáveis para garantir seus ganhos, e preferiam ficar desempregados.

Despojadas da vaidade, as abelhas-médicas passaram a se preocupar efetivamente com o seu ofício e, naturalmente, com seus pacientes, que passaram a receber cuidados necessários a qualquer momento do dia. O mesmo se aplicou às abelhas-sacerdotes, que passaram a cuidar efetivamente da religião, vivendo em simplicidade austera, atendendo os fiéis dia e noite, dispensando a agora desnecessária ajuda de suas abelhas-ministros.

As abelhas estavam despidas de seus vícios anteriores. O luxo e ostentação passaram a ser mal vistos, eram frívolas ligações ao mundo material. A suntuosidade dos palácios passou a ser indesejada, e estes foram abandonados, assim como todo o pessoal necessário para mantê-lo. Toda a arte foi abandonada, e a que ainda existia estava deteriorada, ao relento.

A consequência direta disso tudo foi um desemprego sem precedentes, o que levou a um imenso êxodo daquela colmeia, e mesmo as abelhas que insistiram em ficar viviam na miséria. A prostituição, o puxa-saquismo, as malandragens em geral estavam extintas naquela nova moral. Quem não se adaptou, resolveu partir; quem permaneceu, não lançou mais mão desses recursos. As fábricas de artigos supérfluos, ante a nova austeridade, a nova modéstia e a falta de vontade de aparecer, precisaram fechar suas portas, que ficaram enferrujadas, seus pátios sujos, suas máquinas - outrora produtivas -  totalmente empoeiradas. O comércio só vendia materiais essenciais à sobrevida, mas mesmo esse era afetado: as porções de consumo se tornaram tão diminutas que pouquíssima coisa era disponível para comprar e vender.

E o resultado não poderia ser outro: desprovida de suas principais fontes de circulação e emprego, a colmeia assumiu um aspecto que era a exata contradição de sua condição anterior: um local feio, miserável, sujo e decadente. As ruínas de sua outrora grandiloquente civilização restavam apenas como um monumento e um registro histórico do torvelinho de desgraça que se abateu sobre este povo. Sua honestidade era o último refúgio para dar razão à sua atual existência.

Essa historinha não é de minha autoria, mas é uma livre leitura de uma fábula de Bernard de Mandeville, holandês de origem francesa, radicado em Londres tão logo concluiu seus estudos em Medicina. Sua obra mais famosa é exatamente essa “Fábula das abelhas”, que sofreu muitas reedições e acréscimos. Nesta fábula, o sentido e a moral que o filósofo quer atingir é que há sempre algo de bom nos mecanismos que consideramos injustos, e isso deriva da natureza humana. Ao observar a sociedade ao seu redor, Mandeville percebeu o quanto a vaidade dos homens se imiscui em seu modus vivendi, a ponto de se tornar o eixo central de todo o mecanismo social. O homem não tem como se livrar disso porque esses defeitos são fruto de impulsos naturais e de seu congênito egoísmo – toda a sociedade é moldada de forma a prever e a encapsular no seu interior essas características.

A análise é aguda. A sociedade é refém de seus defeitos, e toda tentativa de realizar uma humanização das suas relações pode resultar em desastre. Parece uma crítica ao marxismo, que preconiza uma sociedade mais igualitária, mas não é esse o foco, até mesmo porque Marx e Engels nasceriam e trariam suas ideias muitos anos depois. No entanto, Mandeville é um defensor da divisão do trabalho, porque entende que o homem já não tem mais contato com uma pureza originária. Este estado de coisas é irreversível, a não ser que todas as estruturas sociais sofram um desmonte, com as consequências danosas que procura expor.

Evidentemente, o pensamento de Mandeville pode ser objeto de exacerbadas críticas, principalmente por não levar em conta que o desenvolvimento humano não tem a obrigatoriedade de se dirigir ao vício e que causas nobres são possíveis e desejáveis, mesmo sob o signo do lucro e do conforto. Mas não deixa de ser interessante observar o quanto sua crítica pode ser dirigida aos dias atuais. Pensemos, por exemplo, no que aconteceria se o crime fosse extirpado de nosso pobre mundo. Toda uma macroestrutura existe para dar combate a ele. E isso não se dá só por órgãos governamentais, mas por muitos e muitos agentes privados, entre empresas e pessoas físicas. Um país sem crime faria supor a desnecessidade de policiais militares, policiais civis, guardas municipais e que-tais; as empresas de escolta poderiam ser desmontadas, os vigilantes perderiam seus empregos; fabricantes de alarmes para carros e prédios teriam que procurar outra atividade, assim como os produtores de arames farpados e cercas de segurança; as empresas que fabricam chaves e cadeados, assim como grades e portões seriam relegadas à inutilidade; também as empresas de seguro passariam por forte abalo, já que o ramo mais crítico e lucrativo estaria encerrado; os noticiários seriam bastante diminuídos, os Datenas e Resendes da vida teriam que procurar outros temas para suas bravatas – que tal receitas de bolo? Interfones e porteiros eletrônicos seriam os novos companheiros das maria-fumaças e dos relógios de areia nos museus; idem com câmeras de segurança e outros dispositivos para detectar presenças indesejadas. Tem também a extinção da indústria bélica e suas correlatas; os prontos socorros poderiam se prepara para receber bem menos casos; psicólogos que lidam com os traumas da violência teriam esse tópico a menos para lidar; a indústria de vidro blindado e a blindagem de veículos iriam mandar mais alguns desempregados para o bolo geral. Isso tudo entre outras atividades que já nem lembro mais, e da própria atividade criminal, que movimento uma grana impossível de medir.

Para se ter uma ideia da brincadeira, apenas em empresas legalizadas, o faturamento do setor de segurança, em 2005, foi de 12 bilhões de moedas. R$ 12.000.000.000,00!!! Quem nos informa isso é a Fenavist (Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores – quem quiser acessar o site, o endereço é http://www.fenavist.com.br), que congrega o setor a nível nacional. Temos de convir: O crime é um grande negócio, e isso deveria ser encarado com mais seriedade. O que esses números querem dizer para nós? Qual é o impacto deles em nossas vidas? A que rumos vamos levando nossa sociedade e de que maneira vamos amarrando-nos sem poder nos desvencilhar, talvez para sempre?

E desta forma podemos compreender um pouco mais sobre como nossas pequenas abelhinhas ajudam a explicar a infelicidade de se reconhecer que os nossos vícios particulares acabam por se transformar em grandes virtudes públicas, necessárias ao funcionamento social nos moldes com os quais lidamos hoje, em um ambiente liberal e capitalista. Essa é principal advertência de Mandeville para os nossos dias.

Recomendação de leitura:

MANDEVILLE, Bernard. The Fable of the bees or Private Vices, Public Benefits. Oxford: Claredon Press, 1966.