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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (22 – Antropologia)

Olá!


Quase todos os dias eu desço a Rua da Consolação, por motivos trabalhistas. Para quem não conhece São Paulo, trata-se de uma via muito movimentada, que liga o centro à região da Avenida Paulista, além de se imiscuir por área chique da cidade. É possível vê-la na TV por ocasião da parada LGBT e da corrida de São Silvestre, por ser parte do percurso de ambas. Tem um sem-fim de logradouros conhecidos, como a universidade Mackenzie, o Tribunal do Trabalho, a Advocacia Geral da União, o Cine Belas Artes e o Cemitério da Consolação, o mais antigo ainda em uso na Terra da Garoa. Mas o foco aqui vai ser voltado para duas casas espelhadas, um pouco para baixo da caixa d’água. São duas construções que claramente tiveram seus dias de glória, mas que hoje têm propósitos bem distintos da habitação original. Uma foi virou um cortiço, e a outra foi ocupada por coletivos de artistas jovens. Tentei uma foto minimamente decente, mas há muitas árvores na frente, de modo que, para entender bem o contexto, só olhando presencialmente.

Seria de se supor que a casa ocupada por sem-tetos seria mais objeto de conflitos do que a outra. Muito embora ninguém ali tenha vida fácil, o fato é que basta uma ordem judicial para que os despejos ocorram, o que se dá vez por outra. Mas a encrenca está mesmo na assim chamada Casa Amarela, o ateliê coletivo. Os moradores dos arredores alegam que os artistas, na verdade, desrespeitam seguidas vezes as leis do silêncio e provocam muita sujeira, além de não filtrar a presença de menores em meio a consumidores de drogas as mais várias. Já os agitadores culturais erguem a bandeira do preconceito e da sombra da indefinição do poder público.

No final das contas temos uma guerra cultural. Os moradores dizem que se pratica qualquer coisa ali, menos arte. Os atelieristas dizem que a redondeza é elitista e que não compreende uma arte ao mesmo tempo popular e inovadora. Quem tem razão?

A explicação passa, sem dúvida, pelos jogos de interesse, mas não sejamos simplistas. Em uma mesma cidade, ou melhor dizendo, em um mesmo quarteirão, não há consenso sólido sobre o valor da arte e sobre a preponderância ou não da manifestação coletiva sobre a vontade individual. Na natureza, teríamos um embate de forças físicas e a coisa estaria resolvida. Mas entre nós as coisas não podem ser assim. Somos seres humanos, e guiamo-nos por anseios e desejos tão distintos entre si que há momentos em que parece não haver unidade na espécie. Mas ainda assim somos humanos, estranhos nos caminhos que traçamos, merecedores nós mesmos de sermos estudados. É o que tenta fazer a Antropologia.


Anthropos, em grego, significa “homem”, o homem-espécie. No bojo filosófico, o humano é colocado sob o holofote logo em seguida à filosofia da physis. Deixou-se de pensar no universo e passou-se a olhar para aquele que pensa o universo. Isso começa com os sofistas e não se dá gratuitamente. Com o modelo democrático ateniense, que cria a cidadania, o desenrolar da existência já não depende dos deuses diretamente e dos reis subsidiariamente. Os homens da polis participam das decisões e são responsáveis por elas, de forma a constituir um parâmetro para explicar a realidade, cada um com seus próprios pontos de vista, experiências, preferências, preconceitos. “O homem é a medida para todas as coisas”, dizia Protágoras de Abdera.

Este é o ponto em que a Ética, a área filosófica que analisa os comportamentos e as escolhas dos seres humanos, tomará o timão da nau intelectiva, e, de certa forma, temos aqui o nascedouro da Antropologia, até porque, com a devida vênia de quem pensa o contrário, os animais não-humanos são aéticos (o que é diferente de antiéticos). Portanto, quando falamos em Ética, estamos compulsoriamente falando dos bípedes implumes. Só que, da mesma forma que a Sociologia e pelos mesmos mecanismos, a Antropologia tem a intenção de ser uma Ciência, cujo objeto é estudar o humano em si mesmo, na sua relação com sua comunidade e com seu ambiente, atribuindo-lhe um papel. E, para isso, precisa de uma metodologia que lhe dê rumo e guarida.

Por ser uma Ciência jovem, a Antropologia ainda não possui o mesmo nível firme de concordância em sua estruturação das Exatas, havendo quem a divida em várias subáreas. Nós aqui vamos nos deter na mais simples de suas taxonomias, que a divide em dois: Antropologia Física e Antropologia Cultural. A primeira vê o ser humano como organismo, e deixaremos esse papo para os biólogos. Melhor será estancarmo-nos na segunda, o que já é o bastante.

Tudo tem que começar pela noção de cultura, o que nos remete à questão “Casa Amarela vs. Redondezas”: ainda que definir cultura não seja a tarefa mais hercúlea, atribuir-lhe valor é o grande busílis. Mas sempre vamos tentar. Cultura, em latim, significa a ação de cultivar. Sabemos que o homem desenvolveu suas cidades justamente porque dominou as técnicas agrícolas, que lhe permitiram a fixação na terra. Dessa forma, a cultura ganhou o sinônimo de produção humana. Tudo o que tem o dedo do homem é cultura, sendo este um dos seus principais diferenciadores dos demais animais. Certo: o homem faz muitas coisas que outros bichos fazem, mas, para investigar a cultura, não ligamos para O QUE o homem faz, mas COMO faz. Comer, dormir e trepar são ações orgânicas, que um cachorro ou um camelo também fazem. Isso não é cultura. Ela entra quando resolvemos arriscar fazer sushi, quando optamos por lençóis de seda ou quando quebramos a rotina em um motel. Aí temos cultura, um conjunto de usos e costumes que reflete nossa vida como humanos – nossas religiões, nossas artes, nossas técnicas, nossos lazeres, nossos artefatos, nossas comunidades e tudo o mais que for “cultivado”, incluindo nossas filosofias.

Sim, tudo bem. Cultura é a produção humana que nos destaca do meio natural, como já pude escrever neste texto, mas é preciso entender como ela se forma e como funciona, e, para isso, a Antropologia possui várias linhas de estudos, que acabaram por constituir diferentes escolas de pensamento. Vamos rabiscar um pouco sobre as principais.

Comecemos pelo Evolucionismo. Esse nome não é estranho. Uma das principais descobertas do século XIX, que impulsionou a cientifização do conhecimento, foi a evolução das espécies através de processos de seleção natural, em teses elaboradas por Charles Darwin e Alfred Wallace (leiam mais aqui). Em resumo resumidíssimo, a evolução enuncia que as espécies atuais originam-se de outras anteriores, cujas modificações se deram por uma melhor adaptação às condições ambientais disponíveis à época. Quanto melhor a adaptação, mais facilmente a espécie se reproduz e se mantém. Darwin e Wallace não chegaram a essa conclusão em um papo de boteco, mas através de muita observação. Com o correr do tempo, a evolução ganhou muitas evidências, como o registro fóssil, as convergências evolutivas, as estruturas vestigiais, as distribuições e isolamentos geográficos, a embriologia comparativa, a filogenética e, mais recentemente, o estudo de DNA.

Edward Tylor e outros pensadores do evolucionismo cultural seguiram o mesmo raciocínio geral. Seus defensores, empolgados com a descrição do funcionamento evolutivo, entendiam que, da mesma forma que uma espécie, um ato cultural também prepondera quando tem melhores condições de adaptação do que outros, tornando a cultura cada vez mais aperfeiçoada. Isso dá uma perspectiva histórica à cultura, porque explica seu surgimento e desenvolvimento. Vejamos: da mesma forma que a evolução biológica converge para soluções semelhantes em espécies diferentes, como é o caso das asas de morcegos e aves, o mesmo acontece culturalmente, como no caso das pirâmides egípcias e astecas. Da mesma forma que as aves continentais guardam semelhanças entre si e diferenças com pássaros ilhéus, também povos isolados diferem bastante de etnias fronteiriças. Da mesma forma que os fósseis dão o registro de como eram espécies ancestrais, é nos achados arqueológicos que se acham referências passadas da cultura. Através do estudo destas inflexões evolutivas é possível desenhar o desenvolvimento de um determinado traço cultural, assim como podemos compreender como surgiram caracteres biológicos.

O problema maior na antropologia evolucionista é que ela ignora uma regra básica da própria teoria da evolução. Para esta, todas as espécies existentes atualmente estão igualmente evoluídas, sem uma distinção de avanço. O critério é existencial – se a espécie está hoje no mundo, é porque está adaptada a ele, não importando se é uma cianobactéria ou uma baleia azul. É o caso das minhocas, uma espécie antiquíssima, que tem espécies derivadas e mais complexas, como é o caso das sanguessugas. Mas o fato de haver derivações não indica que não existam mais minhocas, ora essa, ou mesmo que minhocas sejam mais retrógradas que sanguessugas. Ambas existem, portanto ambas estão no mesmo nível evolutivo. Já em termos de cultura, cria-se em uma hierarquia etnocêntrica. A cultura evoluía em ritmos distintos em cada um dos locais do globo, sendo que (que surpresa!) aquela desenvolvida no hemisfério norte estaria em estágio mais avançado, ainda a ser alcançado por latinos, subsaarianos, austral-asiáticos e demais “primitivos”, que seriam fósseis culturais a serem estudados para se compreender a linha histórica da cultura. Aqui, o pressuposto da existência contemporânea é deixado de lado, e que as necessidades culturais de cada povo tinham diferenças fundamentais para explicar seu estágio. Havia algo como uma meta cultural comum, cujo caminho estava trilhado em mais milhas pelos europeus e vizinhos hemisféricos. Essa vertente, mais tarde conhecida como darwinismo social, foi propugnada por Herbert Spencer e tinha uma conotação que era, no final das contas, marcadamente racista. Por isso, essa escola foi muito criticada.

Como alternativa, foi desenvolvida a corrente do Difusionismo, que, embora também tivesse foco na historicidade da cultura, de certa forma inverteu a lógica da pesquisa evolucionista. Esta última tinha como pano de fundo a seguinte pergunta: “Por que as culturas possuem diferenças entre si?”. Já os difusionistas perguntam “por que as culturas possuem semelhanças entre si”. Sua resposta geral se dá pelo contato dos diferentes povos. Ao estabelecer o convívio entre culturas distintas, ocorre a difusão de alguns conhecimentos, trazidos por quem chega ou recebidos por quem espera. Toscamente falando: eu sei fazer churrasco e Fulano sabe fazer feijoada. Vou na casa dele e assisto, maravilhado, todo o ritual de feitura da iguaria, compreendendo os pontos onde seu método é melhor que o meu: as quantidades de tempero, tempo de cozimento, os acompanhamentos. O mesmo se dá no sentido inverso, com o corte das carnes, a intensidade da chama, a distância exata para o ponto ideal. O processo de absorção se dá em uma medida na qual minha feijoada e o churrasco do Fulano tornar-se-ão mais próximos entre si, até se tornarem indistinguíveis de sua origem. Eu difundi o churrasco para Fulano e Fulano difundiu a feijoada para mim. Esse é um exemplo reduzido de um processo de aculturação, ou seja, de absorção de conhecimentos e elementos antropológicos de uma cultura por outra. Ela pode ser feita gradualmente, como ocorre nas imigrações incentivadas e pacíficas, como ocorreu em países jovens, e aqui temos uma assimilação cultural, que costuma manter os propósitos originais dos usos e costumes nos seus novos praticantes. Mas é claro que nem sempre o processo de difusão se dá sem conflitos. Em invasões e conquistas territoriais, a cultura dos invadidos é sobreposta pela cultura invasora. O mesmo se dá nos casos de imperialismo econômico, onde a cultura do povo dominante impõe os seus elementos ao povo subalterno, e, quando não suprime sua cultura original, absorve-a para si em outros termos, descolados do seu uso anterior. É o que acontece com os artigos rituais que são transformados em enfeites. São casos de apropriação cultural, que já discuti aqui.

Percebam como no Difusionismo a ênfase do estudo das origens dos fenômenos culturais está muito mais ligada à maneira com a qual as diferentes culturas interagem entre si do que na relação hierárquica do Evolucionismo, o que lhe retira o ranço etnocêntrico. Mas é uma escola que tem defeitos que a outra não tem. Em linhas gerais, essa corrente acredita que a difusão sempre se dá a partir de um ponto para daí se espalhar ao mundo. Acha que o homem tem uma tendência à acomodação que torna rara a aparição de grandes revoluções culturais. Isso não é uma mera preguiça, mas uma propensão a repetir indefinidamente coisas que já deram certo, sem se arriscar muito com “novidades”, e empreendimentos significativos não dariam em árvores. Apesar desta ideia de cultura conservadora ter sua lógica, imaginar que grandes descobertas não podem ser concomitantes é algo difícil de se aceitar. Vejamos novamente o problema das pirâmides. Apesar da soberba fama das egípcias, há pirâmides núbias, centro-americanas, chinesas, templos piramidais e zigurates babilônicos e sumérios, contemporâneos ou até anteriores aos mausoléus faraônicos. É preciso uma ginástica desproporcional para explicar uma rota de difusão com esse traçado, e sabemos que a construção das pirâmides é complexa o suficiente para não ser considerada um elemento cultural grandioso. Pelo princípio da navalha de Ockham, é mais fácil supor que nem todo processo cultural é difusório, podendo ocorrer espontaneamente em diferentes locais e épocas. Eis um dos motivos pelos quais brotou o Relativismo Cultural, que, nas mãos de gente como Franz Boas, diz não ser possível enxergar a cultura alheia pelos olhos de nossa própria cultura, já que sistemas antropológicos precisam levar em conta valores locais que nascem por contingências próprias. Atribuir valor de melhor ou pior corresponde a ter um ângulo só da questão.

Tanta preocupação com a história das formações culturais foi fundamental para o estabelecimento da disciplina, mas se o intuito é ter uma visão horizontal sobre a questão, onde a cultura de um determinado povo fosse focada holisticamente, a briguinha entre evolucionistas e difusionistas revela-se uma interminável e inútil caceteação. Afinal de contas, a história pregressa de qualquer coisa pode ser importante para entender como essa coisa se tornou o que ela é, mas não responde como ela funciona, algo tão importante de se saber quanto. Neste sentido, nasce o Funcionalismo, de Bronislaw Malinowski e congêneres, que tem o objetivo de compreender a cultura como um organismo, em que cada parte isolada tem uma determinada função para benefício do todo (daí o nome da corrente). De certa forma, o Funcionalismo é muito imiscuído com a Sociologia, por uma relação de dependência: uma sociedade se caracteriza como um imenso organismo, cujas instituições existem para executar funções específicas e cuidar de um aspecto da vida social. A maneira como essa função é executada corresponde ao papel da cultura. Por exemplo: toda sociedade possui determinadas instituições que provêm lazer aos seus membros, e isso é um membro do grande organismo social. Agora, se as pessoas utilizarão esta instituição jogando futebol, empinando pipa, dançando, assistindo filmes, rezando terços ou simplesmente cultuando ócio, isso faz parte da cultura. A mesma analogia pode ser feita na equiparação entre natureza e cultura. O corpo é um todo que possui partes, cada uma com suas tarefas que visam suprir necessidades orgânicas. Isso é determinístico, não há como fugir de supri-las. A cultura, no entanto, não é unívoca e isso é fácil de perceber. Diferentes culturas se alimentam de forma diferente, vestem-se, divertem-se, locomovem-se... A cultura representa um modo de atender uma necessidade, de maneira peculiar a cada povo.

Essa é a principal distinção que fazem os funcionalistas: a cultura é sempre artificial, e, por isso, distinta da natureza humana que, a princípio, clama por seu uso, por uma maneira de resolver um determinado problema. Mas é preciso alguns critérios científicos para distinguir o que é um fenômeno cultural, e o funcionalismo indica que o mesmo deve preencher os seguintes requisitos: estatuto, pessoal, normas, aparelhagem material, atividade e função. Vamos dar um exemplo, obviamente. Para que a sociedade possa se sustentar, há uma instituição chamada “ocupação”. O estatuto empregatício consiste em uma relação produtiva que desemboca em algo que pode ser comprado e vendido, gerando giro e renda. O pessoal são os atores que participam desta relação, como o patrão e o empregado. As normas são aquelas ditadas pelo governo e pelo dono do negócio, que estabelecem o quanto e quando pagar. A aparelhagem material diz respeito aos locais e ferramentas necessários ao desempenho das tarefas que concretizarão o objeto da relação. A atividade é o desenrolar propriamente dito daquilo que precisa ser feito para a obtenção do produto ou do serviço, enquanto a função corresponde à necessidade da existência de toda essa parafernália, ou seja, gerar sustento para o trabalhador e lucro para o empresário. Notem como o estudo sociológico e antropológico são fortemente imbricados na escola funcionalista, e esta acaba se tornando uma das principais críticas contra a metodologia: uma indistinção de objeto quase irresolvível, embora tenha sido com ela que os pesquisadores saíram de verdade dos gabinetes para fazer o estudo direto e vivencial com diferentes culturas, porque o estudo das instituições deve ser feito in loco, contrariamente ao que faziam as correntes anteriores.

Por fim, temos a escola do Estruturalismo. É uma corrente que lança mão de um forte psicologismo em suas bases, como veremos. A estrutura que dá nome à corrente é aquilo que está por baixo da casca de cultura que pode ser colhida empiricamente. Claude Lévi-Strauss e demais membros da tendência percebiam que a estrutura cultural de qualquer sociedade é essencialmente a mesma. Temos como comparativo a construção civil: uma ponte, por exemplo, pode ser pênsil, estaiada, cantilever, treliça contínua, em arco, em vigas ou uma simples pinguela, mas sua estrutura é a mesma: um tablado que percorre por sobre um meio aquático sustentado em algum apoio. A manufatura e seus detalhes, estes sim, são extremamente variáveis, mas o objetivo é sempre o mesmo: atravessar de uma margem à outra, e algo chamado “ponte” tem as características acima. Se colocarmos um cipó amarrado em uma árvore ou uma rampa para saltar de um lado para o outro, teremos outra estrutura que não uma ponte.

Da mesma forma funciona a sociedade. Um conjunto de normas rege um determinado agrupamento de pessoas que pretendem ter vida em comum, com uma liderança bem definida e tarefas bem especificadas para cada um dos estratos que a compõe, de forma a obter um mínimo de colaboração mútua. Seja em uma comunidade indígena, seja em uma nação industrializada, a estrutura de uma sociedade é essencialmente essa. Se a cultura se desenvolve tendo como eixo uma sociedade, ela também obedece a uma estrutura.

E por que isso acontece? Os estruturalistas entendem que a mente humana tem, em qualquer lugar onde esteja, uma espécie de esqueleto que lhe dá também uma estrutura. Vistos como indivíduos, todos os seres humanos possuem conteúdos próprios que lhe dão características subjetivas, mas a estrutura mental é comum a todos. Temos todos um aparelho instintivo que nos permite dar uma resposta rápida a uma necessidade premente, temos todos uma memória que nos possibilita armazenar informações e conhecimentos, temos todos uma inteligência que nos faz processar a razão, temos todos critérios subjetivos de gosto e preferências e, se Freud estiver correto, temos divisões na consciência, com uma parte animal sendo refreada pela moral introjetada pelo meio em que se habita. Esta estrutura psíquica se plasma pela humanidade inteira e isso termina por se espraiar para os meios externos de convívio, começando pela sociedade e pela respectiva cultura. Essa é uma linha de pensamento que fere de morte o racismo do darwinismo social, porque coloca não só todas as culturas e sociedades em pé de igualdade, mas também toda a humanidade. Estruturalmente, somos todos iguais. Lévi-Strauss falou sobre essas coisas, e eu já falei sobre Lévi-Strauss e estruturas, como neste texto.

É isso por enquanto. Há outras correntes, e mesmo estas se mesclam muito, mas as questões da Antropologia são tão extensas que eu extrapolei bastante sobre o que queria falar. Faz parte. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Nada como um pequeno manual para entender um pouco melhor sobre o tema. O que eu mais usei na faculdade foi o seguinte:

MELLO, Luiz Gonzaga de; Antropologia Cultural. Iniciação, Teoria e Temas. São Paulo: Vozes, 2007.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (21 – Sociologia)

Olá!


Vamos entrar em um novo estágio deste pequeno manual. Há muitas áreas do conhecimento que já escapam do âmbito puro da Filosofia, seja porque ganharam muita especificidade, seja porque desenvolveram métodos próprios de pesquisa, mas sem deixar de guardar algumas penas da coruja de Minerva em seus fundamentos. Até mesmo por isso, são ciências humanas das quais faço uso frequente neste espaço, e que merecem destaque apartado, ora pois.

Em inúmeros cantos, por exemplo, comentei sobre as maneiras e os porquês pelos quais os homens preferiram associar-se e viver juntos, partilhando bens e gêneros de primeira necessidade, protegendo-se mutuamente e dando manutenção ao grupo, cuidando das suas crianças e enterrando seus defuntos. Essa malha ganha complexidade à medida que se torna maior, sendo composta por indivíduos com anseios próprios, mas que, de alguma forma, se submetem aos ditames do todo em que vivem. Essa vida em comum é o que se chama de socius em latim, e é o que modernamente chamamos de sociedade. Sabendo que grupos sociais se inter-relacionam, podemos chegar à extensão máxima do planetinha como campo de estudo, o que é realmente bastante coisa. Percebendo e tentando compreender o funcionamento destes entes que englobam e que superam as individualidades nasceu a Sociologia, que vamos analisar agora.


Se comparada à Filosofia, a Sociologia é uma criança cujos dentes-de-leite ainda estão brotando. Isso não quer dizer que somente com a modernidade nasceu a questão social. Encontramos inúmeras referências à vida em sociedade nos socráticos, como o animal político de Aristóteles e a cidade ideal de Platão, e mesmo antes, nos pré-socráticos e pré-filosóficos, como Homero e Hesíodo, encontramos embaraços entre grupos humanos a tentar serem resolvidos. No entanto, é apenas no século XIX que os fenômenos sociais passam a ser objeto das Ciências. Estamos no âmbito do Positivismo, derivação direta do otimismo com os avanços tecnológicos, que vê a Ciência como meio de resposta muito mais eficiente do que a Metafísica e a Religião para sanar nossas ambiguidades e problemáticas. Explica-se: diante da dor de cabeça, um comprimido funciona muito melhor do que uma prece ou do que se especular sobre o que é a dor, seu sentido, sua essência e o conformismo diante dela. As respostas para os enigmas do universo estão no próprio universo, e não em instâncias imateriais, é o que diz o saber científico. E, por isso, a Ciência, o arauto do Positivismo, é considerada a única forma de conhecimento válido. Tudo isso nos fala Comte, o papa da corrente.

Muito bem. Acontece que a sociedade existe, como podemos determinar empiricamente. E, como tal, merece e precisa ser estudada. Mas não o será mais em termos especulativos, e sim científicos, submetida a um método que permita aferições e medidas, que possa ser reproduzido e verificado. É nesse âmbito que a Sociologia, agora como Ciência, vem à luz. Bem... Comte a chama de Física Social. O termo Sociologia nasce depois, com um cara que veremos já, já. Era preciso dizer, após isso, como deveria ser dado tratamento a ela, ou seja, qual seria a metodologia que lhe daria respaldo. A Sociologia é do campo das Humanas, mais difíceis de tratar em termos de reprodutibilidade do que as Exatas, mas o desafio precisou ser enfrentado.

Como a Sociologia é ainda uma área do conhecimento bastante recente, as linhas-mestras do seu pensamento são um tanto restritas. Não se trata de simplificá-la; é só uma questão de cronologia. Se falamos de Matemática desde Pitágoras, é natural que as correntes tenham se ramificado muito mais, mesmo sendo do escopo das Exatas. Por isso, quando falamos em Sociologia, três nomes brotam logo de imediato e são unânimes, porque consolidaram o campo investigativo: Durkheim, Marx e Weber. Seus trabalhos são extensos e vão além da análise social pura e simples. Por isso, nosso intento aqui será apenas e tão-somente trazer o carro-chefe do pensamento de cada um deles, aquilo que mais contribui para delimitar a Sociologia como Ciência.

Vamos seguir a boa e velha cronologia dos manuais e começar pelo francês Émile Durkheim (de quem já falei aqui). Como sabemos, toda Ciência tem um objeto bem claro de investigação. A Biologia, por exemplo, não estuda pedras, a não ser naquilo que elas dão de apoio à vida. Idem com a velha confusão entre Arqueologia e Paleontologia. Uma estuda a cultura de povos antigos, a outra estuda espécies antigas. De cara dá para perceber que a primeira é ligada às Ciências Humanas, e a segunda às Ciências Naturais. Se você achar um caco de panela velha em seu quintal, deverá procurar um arqueólogo; se achar um ossinho esquisito, um paleontólogo – não se engane mais. Essa definição do que a Sociologia deve estudar é o que Durkheim fez muito bem, além de batizar esta nova ciência.

Durkheim cria o conceito de fato social para delimitar o campo de estudo sociológico. Ou seja, não é qualquer coisa que ocorre em uma sociedade que faz parte do mecanismo social. É preciso que, para ser elegível como fato social, um fenômeno atenda a alguns requisitos. A base do raciocínio é a ideia de que a sociedade é mais do que a mera soma dos indivíduos que a compõe. Os acordos que são constituídos socialmente superam as vontades de cada um, e trazem a obrigação de cumprir normas e regras, ainda que estas não estejam escritas, mas que sejam parte de um hábito consensual. Por isso, o fato social, em primeiro lugar, é coercitivo: há um mecanismo que obriga a sua existência. É óbvio que o que mais salta aos olhos é o cumprimento da lei, que determina, por consenso de representantes eleitos ou de concessão do poder, o que é passível de punição e o tamanho da pena. Mas há outros dispositivos de pressão social que funcionam de maneira igualmente eficaz, como a habitualidade, a noção de moral, a etiqueta. Senão, o que explicaria o uso de paletós e gravatas em pleno verão nas nossas terras tropicais? Há uma confluência tácita de que terno é sinônimo de elegância e de que é desrespeitoso comparecer a um evento formal fora de trajes ditos elegantes. A pessoa se obriga a tais desconfortos porque há um escape de seu interesse individual, e vai suar às bicas porque a sociedade lhe coage.

Outra caracterização do fato social é sua exterioridade com relação a indivíduos. Isso significa que a sociedade é um organismo independente dos organismos que a compõe. Não importa se a sociedade é formada por Maurícios e Mateus; se forem trocados por Tarcísios e Tadeus, dá na mesma, continua sendo uma sociedade, com todas as suas características. O que significa isso? Que, ao olhar para um fato social, como o processo educativo, por exemplo, examinaremos os papeis dos atores, e não os seus ocupantes. Veremos existir um diretor, alguns professores e vários alunos, e não o diretor Toninho, os professores Lalau e Vera Lúcia e os alunos Décio, Rogério e Ricardo. O fato social é impessoal, e, se um fenômeno não puder ser dissociado de um indivíduo, então não estaremos falando de um.

Por fim, um terceiro aspecto do fato social é a sua generalidade. Isso significa que um fato social é aplicável quando se tratar de um uso comum na sociedade onde se pratica. Como exemplo mais escancarado, temos a utilização da língua portuguesa em território brasileiro. É um código linguístico que forma uma unificação social através da compreensão comum. Mesmo um surdo-mudo, através da língua de sinais, se fará compreender pela estrutura da linguagem mútua. A generalidade se dá porque a sociedade se caracteriza por algum nível de coesão. Mesmo em uma suposta sociedade anômica há um nível de consenso nas consciências que faz com que certas regras sejam estabelecidas.

O resumo da ópera durkheimiana é que não são os indivíduos que compõem a sociedade, mas a sociedade que molda os indivíduos, e, nesse sentido, o fato social é aquele que deve ser analisado por si só, independentemente dos elementos subjetivos que lhe propulsam.

A seguir, vamos falar sobre o alemão Karl Marx, tão polêmico e decantado hoje em dia em Pindorama. Enquanto Durkheim define um objeto de estudo para a Sociologia, Marx lhe prescreve um método. Como já falei neste post, Marx define uma Filosofia da História não linear, que se dá pela movimentação entre polos contrários, que chamamos de materialismo histórico dialético. A mola propulsora desta navegação entre extremos antitéticos é seu grande conceito sociológico: a luta de classes. Vamos esmiuçar.

As sociedades, vistas à distância, podem ser enxergadas como uma entidade, com características próprias a cada lugar onde for observada. Assim, podemos falar em uma sociedade alemã, uma sociedade brasileira e assim por diante. No entanto, quando olhamos estruturalmente, verificamos não possuírem uniformidade. Há vários estratos e camadas, formando grupos que possuem algum elemento de coesão, mas que se distinguem de outros e se lhe opõe, em maior ou menor nível. Alguns desses grupos não possuem diferenças irremediáveis, e podem conviver sem conflitos (embora nem sempre isso ocorra). Já entre outros, o estado de tensão é permanente. Por exemplo: imigrantes andinos chegam ao Brás e povoam os cortiços locais, por conta de sua mão-de-obra barata. Eles constituem uma classe, a dos imigrantes, que é mal recebida por outra, a dos nativos. Estes se opõem com veemência, reclamando da desvalorização dos salários e da diminuição da disponibilidade dos empregos, gerando uma inquietude entre ambas. Percebam como uma realidade empurra a outra. Uma classe foge da miséria e a outra não quer dar elementos para que a mesma miséria se avizinhe. No final, há a síntese, até mesmo porque, ao se escalar o nível, nota-se que andinos e locais pertencem, eles mesmos, a uma mesma classe, mais abrangente: a dos pobres, que se oporá à dos remediados, e que, somadas, se oporão à elite. Esse impulso espiral compele (ou força) as situações a saírem de suas estagnações, e rumar para seu lado oposto, porque, obviamente, não faz sentido que caminhem para o lado pior.

Segundo Marx, é o sob o prisma da luta de classes que todo fenômeno social deve ser compreendido. Se o dólar subiu, se há poucas vagas nas creches, se a escolaridade melhorou, se há mais crimes contra a vida que contra o patrimônio, deve-se encontrar quais são os interesses das classes envolvidas no fato e deslindar a dialética que redundou em seu desfecho, em sua síntese.

Finalmente, vamos falar de outro alemão, também ele pilar sociológico: Max Weber (de quem já falei neste texto). Se Durkheim propõe um escopo e Marx um método, Weber dá à Sociologia suprimento para outra necessidade científica – os modelos, essenciais à capacidade de realizar predições. Isso é feito através do que foi chamado de tipo ideal.

Um tipo ideal é um modelo social que independe da sua existência concreta para a análise do sociólogo. O senso comum pensaria em tipo ideal como modelo de perfeição, mas não é nada disso. “Ideal”, no caso, indica que o modelo existe na ideia, e não obrigatoriamente no mundo prático. Desta forma, ao invés de trabalhar com realidades palpáveis e complexas de se obter, a pesquisa social utiliza modelos abstratos que permitem a sua substituição.

Mas de onde o pesquisador extrai o tipo ideal? Do mesmo lugar que outras Ciências: de um processo de indução, e, para isso, lança mão de uma quantidade suficiente de dados estatísticos, que são a grande ferramenta de trabalho da Sociologia. Weber detectou a impossibilidade de deter a totalidade de informações de um determinado organismo social, e concluiu que amostras significativas podem constituir perfis que permitem prever características coletivas como um todo. Eu vou aqui fazer um exemplo-brincadeira para explicar. Observada a sala onde trabalho, temos as seguintes preferências esportivas:


Eis que temos que o tipo ideal da sala adora futebol e fórmula 1, curte um pouco de basquete, mas não gosta de vôlei e boxe. O tipo ideal, neste caso, tem um encaixe perfeito, que é o indivíduo D***. Veja que, enquanto indivíduo, o cidadão W*** é o exato oposto dessa tendência, um contramodelo, mas se você socialmente quiser colocar uma TV para nossas horas de folga, terá que priorizar futebol e fórmula 1, com alguma coisa de basquete. Essa é a preferência do grupo, sintetizada em seu tipo ideal. Pode deixar vôlei e boxe para lá, W*** que se lasque. É óbvio que isso é um chiste para aporrinhar o colega de gosto exótico, mas é uma maneira eficiente de abranger maiores fatias de uma determinada população em uma decisão governamental, por exemplo.

Minhas remissões aos três autores são meramente superficiais neste post, há muito mais para extrair deles, com teses absolutamente geniais sobre suicídio (Durkheim) e capitalismo (Marx e Weber). Mas, para dar uma palhinha sobre suas contribuições seminais à Sociologia, parece-me suficiente. Bons ventos a todos.

Recomendação de canal:

Recomendo o canal Sociovlog, do Robson Lima, um professor e pesquisador jovem e muito claro, que fala sobre vários temas ligados à Sociologia, indo muito além da santíssima trindade mencionada no presente texto. Segue o link:

https://www.youtube.com/channel/UC_-q4wp-W3B6HJW_mqI4Cmg

domingo, 9 de setembro de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (20 - Filosofia do Tempo)

Olá!


Já vimos várias vezes neste blog as dificuldades que a velha Metafísica tem em subsistir. Em eras onde as grandes explicações vêm das Ciências, que possuem instrumentais e métodos cada vez mais poderosos, cabe a ela ser o nascedouro das novas ideias e depois sair de cena (como eu falei neste texto). Fora alguns conceitos de altíssimo nível de abstração, e mesmo estes sem aqueeeeeeeeele destaque acadêmico, parece que o destino da pobre Metafísica não é muito promissor. Passons, as coisas são assim mesmo. Mas existe uma questão sua que não arrefece nunca, que mexe com a cabeça de filósofos desde sempre e que a Ciência não consegue dar explicações satisfatórias e definitivas. É a questão do tempo, aquela coisa que envolve o que é, o que foi e o que será. O tempo é algo concreto e mensurável ou é apenas uma abstração mental? É uma parte da nossa subjetividade? É possível dizer o tamanho do tempo? Afinal, o que ele é? Sim, a pergunta é tão complexa que existe uma área filosófica específica para ela: a Filosofia do Tempo.


É evidente que a Ciência fala sobre o tempo. Segundos, minutos, horas, dias, anos, séculos são medidas bem definidas, que são usadas instrumentalmente para benefício dos próprios experimentos científicos. No caso dos segundos, por exemplo, depois de tentar elaborar uma definição através do fracionamento de dias específicos (1/31.556.925,9747 do tempo de translação da Terra, começando às 12 horas do dia 04/01/1900), concluiu-se que, embora o número seja espantoso, não fornecia a exatidão necessária às aplicações científicas de altíssima precisão. A definição de segundo partiu, então, para nível atômico. Um segundo passou a ser representado pela duração de 9.192.631.770 ciclos de radiação da onda eletromagnética na transição de dois níveis do estado fundamental do césio 133 a 0 graus Kelvin. É um negócio inexplicável para o contexto deste espaço, mas assumirei que é o suficiente para a função a que se propõe.

Só que o conceito de tempo é tão mais amplo do que a mera matematização de intervalos que, mesmo noções já consolidadas, como o espaço-tempo einsteiniano, são altamente abstratas. Ao se tentar fazer uma representação gráfica deste termo, sempre temos que contar com uma noção espacial. Afinal de contas, a folha de papel está no plano do tangível. Eu, por exemplo, tento imaginar as dimensões espaço-temporais como um cubo que desliza em uma linha:


Ora, direis, esta representação é de todo inadequada. E é mesmo, mas é o que eu tenho para a janta. Ela é inteiramente espacial, já que consigo representar as clássicas altura, largura e profundidade, mas somente sugiro um deslocamento, outra característica espacial, e não temporal. Não há nenhuma característica desse tipo no desenho, apenas a sugestão de que o tempo modifica as coisas; no caso, a posição. Mas nada força que as coisas não permaneçam inertes. O espaço-tempo também nos é sugerido como uma malha de múltiplos pontos, um lençol entrelaçado ou uma grande redoma granulada, sempre com o defeito de tentar nos apresentar, sem conseguir, uma interpretação de uma dimensão que não ocupa espaço físico. O tempo, nesse sentido, é irrepresentável.

Apesar disso, a adição do eixo temporal aos planos espaciais resolveu um monte de problemas da Física. Einstein percebeu que o espaço e o tempo, apesar de ser algo completamente contraintuitivo, não são diferentes entre si. Ou melhor, eles se influenciam mutuamente de forma a um não existir sem o outro. Conhecemos as clássicas dimensões espaciais e a temporalidade como coisas distintas, mas existe uma interação entre ambas de forma a que uma interfira na outra. Agora pensem... Do mais distante limite do universo observável até o quintal de nossa casa, o espaço está todo presente o tempo todo. Não há uma única estrela que agora está em seu lugar enquanto outra não está. O universo todo está aí. Sendo o espaço-tempo um contínuo, e estando o espaço inteiro aí, o tempo também está. Seja presente, passado ou futuro, o tempo acontece em um mesmo bloco. Passado, presente e futuro não são alijados entre si, e coexistem.

(Pausa para respirar e pensar. Vou tomar um café e já volto).

Dessa forma, a noção que temos do tempo é completamente relativa à posição em que nos encontramos da imensa malha que entrelaça ambos. Não tenho um exemplo bem construído que demonstre isso. O que pensei de melhor foi nas distantes galáxias cuja luz demora bilhões de anos para chegar a nós. Elas talvez nem existam mais, mas o fato é que elas existem para nós no momento em que chegam a nós, assim como demorará ainda mais tempo para existir aos homenzinhos que habitam um desconhecido planeta, além do nosso. O que é passado para a longínqua galáxia é presente para nós e futuro para os verdes, tudo dependendo de nossa posição relativa.

Que coisa difícil de compreender, mas pasmem. Não é uma visão completamente inédita, pelo menos no sentido de presença temporal. Aliás, Santo Agostinho, já no século IV dC falava sobre um tempo todo presente, em sua tentativa de definir o indefinível. Anteriormente, o grego Plotino já falava sobre um tempo visto como um todo – a eternidade. Dividir o tempo em dias, meses ou anos era condená-lo à incompreensão. De fato, examinar o tempo em seus pedaços corresponde a analisá-lo em movimento, em mudança, em inconstância. Cada fragmento é contingente, e não permite que se tenha o tempo como Ser. Nesse sentido, o tempo é a “imagem móvel da eternidade”, um legítimo reflexo do Uno que dá origem a todas as coisas que existem, diferentemente de um universo que possua um ponto inicial. Se se quer analisar o tempo, é através do seu Ser que devemos fazê-lo, do seu todo, da sua unidade: a eternidade.

Para Agostinho, o tempo é igualmente distinto da eternidade, e só de lá conseguiríamos observá-lo. Como não estamos na eternidade, como Deus está, vivemos o mesmíssimo problema de quem quer observar o planeta em que vivemos. Como o faremos, se vivemos em seu interior? Somente quando Yuri Gagarin se distanciou da superfície da Terra pode contemplar seu azul, sua esfericidade, suas nuvens esparsas. É o mesmo com o tempo. Como nos distanciaremos dele para apreciá-lo e compreendê-lo? Essa é uma das grandes diferenciações entre o divino e o humano que Agostinho detecta: o homem vive no tempo enquanto Deus vive na eternidade. No entanto, há uma resposta, segundo ele. Passado e futuro são existentes, dados a memória e a expectativa, mas não fazem sentido se não são pensados no presente. O presente se estende para o passado e para o futuro, para trazer a si tudo o que se recorda e que se espera, fazendo que tudo se concretize nele e que o tempo esteja completo em si, desenhando uma das mais lindas alegorias filosóficas de toda a história: a metáfora da música, que pode ser lida neste meu texto.

Dessa forma, Santo Agostinho resolve a aporia aristotélica do tempo: se este é sucessão, é impossível que um instante coexista com outro, já que, neste caso, os dois momentos seriam, na verdade, um só, e seriam iguais entre si. No entanto, como são diferentes, é impossível de se afirmar que haja um só agora, mas é o que nos resta quando pensamos no tempo como linha sucessória de passado, presente e futuro. Só o presente é concreto, mas ele pode ser reduzido infinitesimalmente, como nos paradoxos de Zenon. Se o agora é um só, então precisaria ser sempre igual a si mesmo, e o que temos, empiricamente, é que ele não o é. Quando o bispo de Hipona coloca o agora na mesma teia do que era, é e será, ele quebra essa cadeia, porque este agora está na mesma folha elástica de qualquer outro momento. Tudo é presente.

Henry Bergson aprofundou a tese agostiniana observando quem pensa o presente. De fato, sem um homem que o perceba, o tempo é um grande nada. E é essa subjetividade que torna a percepção dos transcorrer das horas tão diferente de uma pessoa para outra. Como afirmar que algo é rápido (rapidinha?) ou lento? Qual é o ponto exato em que a tal rapidinha da piadinha que fiz deixa de sê-la para se transformar em uma, digamos, mediazinha? Esta é uma questão absolutamente pessoal, algo ligado a uma experiência do sujeito, e não nos ponteiros do relógio. Por isso, Bergson entende o tempo como duração (durée), e não como intervalo. A durée é o tempo em que uma consciência capta um momento de vivência, e não pela sucessão de segundos e minutos.

Santo Agostinho usou a música para representar o tempo; semelhantemente, Hume o comparou a instrumentos musicais. Bergson lançou mão dos novelos, e mesmo Einstein usou a metáfora do tecido para especificar seu espaço-tempo. Notem como as tentativas de concretização do tempo sempre recorrem à Estética, e lhe dão caráter poético, belíssimos. Isso acontece porque é muito difícil de se expressar o tempo, algo que, desde os primórdios da questão, é concedido ao âmbito da intuição. Por isso, é com comparações que os filósofos tentam pôr a claro suas tentativas. Mas, apesar de todas elas produzirem igualmente efeitos sensíveis, ou justamente por isso, as respostas oferecidas não são de todo convincentes. Que o diga John McTaggart, filósofo inglês que disse ser o tempo uma percepção ilusória. Como ele chega a essa conclusão?

Ele pensa que há duas maneiras de se encarar o tempo, às quais deu o nome de séries. A primeira é exatamente aquela que percebemos: presente, passado e futuro. Como nosso modo de percebê-los se dá através da sucessão de acontecimentos, temos a sensação de uma mobilidade entre estes tempos, com eventos do passado se mostrando cada vez mais distantes do ponto em que nos encontramos, ou projetos do futuro se aproximando cada vez mais. É como, por exemplo, eu me recordo dos tempos de garoto. Cada vez mais longínquos e enevoados na mente, parece que ficam cada vez mais para trás, como se eu movesse meu presente em relação a eles para mais longe. Idem com relação ao futuro: tenho ciência de que meu destino é envelhecer, como qualquer um, e tenho sinais na minha pele e em meus hábitos que registram isso, como se estivessem saindo de um lugar distante e se tornando cada vez mais próximos.

A segunda série se dá em outros termos, embora também possamos falar em três instâncias: o antes, o durante e o depois. A diferença é que aqui a noção não é de mobilidade e distanciamento como na primeira série; é de permanência, porque sempre há algo que acontece, com coisas que aconteceram antes desta e coisas que acontecerão depois, sem que os acontecimentos registrem as posições para nos dar referências. Não há que se falar em mobilidade aqui. Para além do depois, há sempre mais e mais depois. Para aquém do antes, há sempre mais e mais antes. E há sempre o instante, o concomitante, indeterminável de se colocar em uma linha, como acontece com o presente.

Colocadas as duas séries lado a lado, McTaggart diz que elas são mutuamente excludentes, e, portanto, logicamente contraditórias. Por ser sempre a sucessão de fatos, o tempo é transitório. Por ser sempre estruturado da mesma forma, o tempo é permanente. Não é possível subsistir desta forma incompatível, e, sendo assim, o tempo nada mais é que o engodo de nossa subjetividade; ele não existe.

(É ele quem está falando, não eu).

Então é isso. A questão parece que permanecerá inesgotada por mais um bom tempo (epa!), e não nos resta fazer muito além de esperar uma resposta que nos convença. Bons tempos a todos!

Recomendação de filme:

É um documentário interessante, que começa com muita potência, dando algumas opiniões sobre a natureza do tempo. É bem verdade que, para quem quer se manter no tema, o mesmo se perde um pouco do meio para o fim, quando se começa a tratar da velocidade do mundo contemporâneo, mas isso não representa um desvio do tema, apenas um desejo meu, de que o tempo em si fosse mantido no foco.

DUTRA, Adriana L. Quanto tempo o tempo tem. Filme. Brasil: Inffinito, 2015. 76 min. Cor.