#FiqueEmCasa
No animal, a gratuidade, a variedade das atividades do macho permanecem
vãs porque nenhum projeto o habita; quando não serve à espécie, o que faz não é
nada; ao passo que, servindo à espécie, o macho humano molda a face do mundo,
cria instrumentos novos, inventa, forja o futuro. Pondo-se como soberano, ele
encontra a cumplicidade da própria mulher, porque ela é também um existente,
ela é habitada pela transcendência e seu projeto não está na repetição, mas na
sua superação em vista de um futuro diferente; ela acha no fundo de seu ser a
confirmação das pretensões masculinas. Associa-se aos homens nas festas que
celebram os êxitos e as vitórias dos machos. Sua desgraça consiste em ter sido
biologicamente votada a repetir a Vida, quando a seus próprios olhos a Vida não
apresenta em si suas razões de ser e essas razões são mais importantes do que a
própria vida.
Simone de Beauvoir
Esses tempos de coronavírus são essencialmente crivados de
paradoxos. Por um lado, por exemplo, acabo de concluir que não me dou com o tão
propalado home office. Seja pela
falta de uma cadeira ergonômica, seja pela inépcia em trabalhar com o incômodo
teclado de um notebook, o fato é que todos esses dias têm sido de dores nas
costas, embora eu nem cogite desobedecer ao resguardo. Por outro, tem sido uma
oportunidade sem preço para reencontrar uma porção de músicas que eu não ouvia
há muitos e muitos anos. Claro que com a disponibilidade de internet o acervo
ficou enriquecido com vitaminas e ferro, mas comecei fazendo revisitas. Fui
atrás de dinossauros como o Vanilla Fudge, que começou a apontar a psicodelia
vigente na década de 60 na direção das distorções típicas do hard rock; como o
Blue Cheer e o MC5, com seus respectivos proto-metal e proto-punk; como o Iron
Butterfly, Taste, Cream, Free, Ten Years After... Vocês acham que é muita
velharia? Mas eu não tenho quinze aninhos, e não tendo grandes perspectivas de
retorno ao batente físico, meio que concluí que seria bom reavivar o
subconsciente com coisas já conhecidas. Não seria má ideia me inteirar um pouco
mais das novidades, mas elas vieram, de certa forma. Como o algoritmo do
YouTube procura seguir tendências, foi me indicando uma série de vídeos desta
mesma faixa etária e corrente musical, e um monte de música que eu não conhecia
foi se descortinando. Era coisa inalcançável para mim na juventude, que
dependia da boa vontade das gravadoras em lançar discos ou, principalmente, das
rádios em divulgar. Mesmo emissoras dedicadas ao rock não eram profusas em
coisas do tempo do ronca, com exceção daquelas mais conhecidas. E olha que eu
conhecia uma galera que tinha grandes coleções, além de ser atrevido o
suficiente para ficar escavando raridades que não iria comprar em lojas como
Baratos Afins e Grilo Falante, e até mesmo por isso eu tinha um conhecimento minimamente
decente sobre o cenário.
Fui dando chance a cada uma das bandas que o guru digital
colocava automaticamente na agulha de minha picape virtual. Muita coisa boa de
fato, e outras nem tanto. Grannie, Orang-utan, Farm, Murphy Blend, Green
Bullfrog, Dogfeet e outras, todas pequenas preciosidades que ficaram perdidas
no tempo e que vão me distraindo os ouvidos enquanto eu tento me entender
com Skype, VPN et caterva. Mas uma em
especial me gruda a atenção. É a banda Fanny, composta por quatro garotas que
tocavam e cantavam, uma grande raridade para a época*. Para não dizer que eu
não me lembrava delas de jeito nenhum, eu sabia da existência da guitarrista
Patti Quatro, irmã menos famosa da baixista e vocalista Suzi Quatro, e que ela
tinha feito uma passagem relâmpago por algum comboio em meados da década de 70.
Esse comboio é a tal banda Fanny. Como eu já fazia na época de juventude e
algum novo conjunto me encantava, fui correr atrás de toda informação possível,
como componentes, discografia, trabalhos anteriores e posteriores. Faziam um
som que ia no meio-termo entre o rock mais n’roll e o balanço da Motown**,
passando por algumas baladinhas, é bem verdade, mas usando de peso em boa parte
de suas músicas, especialmente com as vozes rasgadas da baixista e da tecladista, resultando em uma
mistura das mais interessantes, com bons corais. São musicistas competentes,
com as filipinas irmãs Jean e June Millington no baixo e na guitarra, a batera
Alice de Buhr e a tecladista Nickel Barclay, todas se revezando nos vocais.
Sim, você que é mais malandrinho no inglês poderá dizer que
o nome Fanny é
uma gíria para “partes pudendas femininas”, e você estará certo.
Mas, segundo as próprias integrantes, a ideia não é atribuir conotação sexual
pura e simples, e sim de fazer pairar um espírito feminino sobre a banda. Elas
não faziam um tipão rockeira sensual, como eram as Runaways, ou brucutus
motoqueiras, como a Girlschool. Vestiam-se sem grande apuro, quase como
hippies. Estavam longe do padrão de beleza esperado para um conjunto que
pretendesse vender vaidade, mas elas só queriam apresentar sua música. Aliás,
segundo elas mesmas declaram, a pressão para adotar uma atitude mais
sensualizada nas músicas e nas apresentações foi o principal fator a minar a
existência da banda, que queria o mesmo que seus congêneres masculinos: expor
sua arte e vender seus discos. Apesar de terem feito algum sucesso no começo
dos anos 70, hoje estão quase esquecidas.
Parei para tratar da bola por um momento (ao som de Fanny). Se
pensarmos em precursores do rock’n’roll, teremos vasto material à disposição.
Se buscarmos a raiz feminina do movimento, aí lascou. Quando pensamos na
questão do feminismo, temos a tendência irrefreável de achar que hoje as coisas
são melhores que antigamente. Talvez seja verdade, mas as coisas estão tão
imiscuídas em nossas mentes que poucas vezes percebemos esse tipo de coisa, por
mais que tentemos ser cabeça aberta. Vejam vocês: já há um bom tempo atrás,
escrevi um texto em
que falava sobre palavrões. Vou
transliterar o primeiro parágrafo para ficar mais fácil de entender onde quero
chegar.
“Praça da Liberdade.
Lugar interessante, geleia cultural que agrega e mistura muitas tribos, em
especial os divertidíssimos cosplayers. Terra invadida pelos jovens,
novíssima Ágora repleta de cores, música e... palavrões!!! Infinitos, variados,
ditos em alto e bom som, capazes de arrancar a casca de um carvalho,
principalmente quando saídos dos delicados lábios carmins das frágeis e
indefesas jovenzinhas, prontas para dar aula ao mais carrancudo dos
carroceiros”.
Retirado todo o ouropel e o sarcasmo da frase acima, o que
teremos é a afirmação da surpresa por ver meninas falando palavrões. E por quê?
Eu não me considero machista. Eu lavo louça, passo roupa,
varro chão e faço
quiches. Eu uso rosa e a patroa usa azul, para desespero do ministério dos
direitos humanos***. Aliás, as diretrizes orçamentárias do lar doce lar são
ditadas pela cara-metade, independentemente do tamanho da renda. No entanto, já
falei sobre o tempo mais de cinco vezes, sobre arché mais de dez vezes, sobre ciência mais de vinte vezes, sobre
futebol mais de trinta vezes, mas eu só falei sobre feminismo duas míseras
vezes, uma sob mero contexto histórico (aqui)
e outra cheia de senões (aqui).
Com essa observação, e sentindo-me autoprovocado, resolvi aproveitar as
larguezas temporais do covid-19 e me pus a contar as citações que fiz neste
blog, desde o tempo do morro cheio de mato até hoje. São 391 autores homens
contra 30 mulheres, bem menos de dez por cento. São constatações que caem de
repente à nossa frente, como se fosse uma pedra. Então a real é que eu sou
machista e nem percebo? Sim. A sociedade é assim.
Vou dar um exemplo de como certos fenômenos quase
imperceptíveis acontecem sem nos darmos conta de como ele está presente em
nosso dia-a-dia. Coloquemos no centro das atenções minha falecida madrinha, a
tia Nena. A coisa toda se dá na anual e onerosa época de Natal. Como a vida era
apertada e a família insistia em se reunir inteira, era infactível comprar um
presente para cada um, mesmo que fosse pequeno. Desta forma, a festança sempre
se baseou mais nas proteínas e carboidratos do que na distribuição de regalos.
Acontece que crianças pequenas são um problema (eu incluso) e satisfazer onze
petizes não era exatamente fácil. A solução para o rombo era a adoção de um
amigo secreto: ao invés de comprar uma arquibancada de porcarias
insignificantes, comprava-se uma única porcaria um pouco melhor. Quem quisesse
dar presentes avulsos, que os colocasse no pé da árvore de Natal, para gáudio
de seu futuro proprietário.
É óbvio que, sendo um só o presente garantido para se
receber, havia o risco de se ter um sonoro mal-me-quer nas mãos, e morrer com o
mico preto não é legal, por mais que sejamos compreensivos. Para evitar os
dissabores, ficava exposta uma tabuleta na sala da tia Nena com o nome de todo
mundo envolvido. Lá, cada um indicava as preferências para o ano. Não valia
especificar detalhadamente o intento, apenas abrir as possibilidades: perfume,
camisa, calçado, tudo bem genérico, senão não tinha graça (vejam minhas
opiniões sobre Natal neste
antiquíssimo post). Para a tia Nena, a demanda era sempre a mesma: panelas
e utilidades domésticas. Minha mãe só não virava na cova porque ela ainda era
viva. Dizia para ela pedir alguma coisa de prazeroso, de bonito, de
confortável, não de trabalho. Nunca adiantou. Enquanto durou o sistema, estava
lá cravado na pedra – panelas. A madrinha se justificava dizendo que lhe fazia
gosto cozinhar para as manadas
que lhe acorriam todo fim de semana, que era esse seu papel na família, e
que era feliz assim. Cosa fare?
Essa é só uma história das milhões em que mulheres se
conformam com o lugar que lhe é reservado. É bem verdade que se trata de uma
realidade em movimento, e que as coisas não estão exatamente iguais à década de
70, momento em que o jeito Tia Nena de ser ia começar a ser desmontado, mas
tudo vai tão lentamente que dá tempo de embranquecer os cabelos. Medimos a
sociedade pela régua dos homens, essa é a verdade. O mundo é todo acomodado de
acordo com o protagonismo masculino, e ainda hoje há um certo exotismo em ver
meninas mandando bala no rock’n’roll.
Quando faço essas simples afirmações, devo dizer que não
partiram puramente do oco da minha cabeça, mas do cruzamento entre a realidade
que encaro com o pensamento da segunda onda do feminismo, Simone de Beauvoir à
frente. Nas primeiras manifestações mais sólidas, ocorridas pelo final do
século XIX, o movimento feminista reivindicava basicamente alguns direitos
fundamentais, como voto, representação parlamentar, educação, trabalho...
Coisas que parecem surreais hoje em dia. Aos poucos, com o atendimento sofrido
de algumas demandas, o foco foi mudando um pouquinho, de modo a não se discutir
mais direitos fundamentais, e sim qual era o papel das mulheres na mecânica
social. É exatamente neste contexto que Beauvoir fala.
Sua obra O Segundo
Sexo investiga as diferenças biológicas, psicológicas e materiais entre
homens e mulheres, para concluir que apenas motivações sociais podiam explicar
as diferenças de papeis na vida de ambos os sexos. Sua síntese é a seguinte: o
ser humano não se iguala a um animal qualquer, e sua posição no cosmos
transcende seu mero papel biológico. O ser humano abstrai, sonha, se autoconfigura,
vislumbra para si um futuro, vai para além de suas funções como organismo. Entretanto,
quando se leva em consideração quais são os humanos a quem se permite
habitualmente essa transcendência, vê-se que há uma clara linha dividindo os
dois sexos. A própria manifestação do feminismo já nos faz perceber que é do
masculino que parte a normatização – não faz sentido se manifestar quem detém o
padrão. Se quem define o universo é o homem, então a mulher sempre é colocada
em relação a esse parâmetro. A mulher é o que Beauvoir chama de “o Outro”. E daí ela configura toda uma
relação de subordinação que formata o que uma mulher é. Para muito além do que
sua própria natureza lhe forma, ser uma mulher é muito mais uma conformidade a
normas impositivas. Nada do que é o destino feminino parte de si mesmas, mas
daquilo que foi prefigurado para elas: os cuidados da casa, a subserviência, a
criação dos filhos. Nada depende de suas vocações ou de suas vontades. Daí sua
célebre frase, que diz que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher.
Só que nossa cara Simone era da escola existencialista,
como seu companheiro Sartre, e isso significa que o primado de seu pensamento incluía
um papel muito forte para o quesito liberdade. Diante da colocação ao papel de
objeto que é dado à mulher, é preciso reconhecer o círculo vicioso em que a
prende nessa situação. Ela é colocada como uma entidade sem autonomia, e se
reconhece assim, pela educação massiva que recebeu desde sua puberdade, quando
se diferenciava mais claramente de um menino. Daí para frente, a mulher tende a
perder sua face pública, que é exercida pelo marido, o “cabeça do casal”. Poderíamos
pensar tanto o universo masculino quanto o feminino como construções sociais, o
que aparentemente faria o nivelamento da coisa, mas isso é uma ilusão, por um
motivo muito simples: quem coloca os tijolinhos dessa construção são os homens.
O horizonte de perspectivas é mais ou menos semelhante – quando se opta pelo
casamento, o homem tem o papel de provedor e a mulher de administradora. Porém,
para que cumpram seu papel, um obtém o sustento para a família através do mundo
inteiro; a outra, reduz seu universo ao lar. Desta forma, não há que se falar
em funções iguais. O homem tem tarefas que não são fáceis, é certo, mas que lhe
amarram muito menos que a mulher. Aqui, a discussão é menos de “dureza” e mais
de horizontes.
Para se igualar aos demais humanos, a mulher não pode abrir
mão de sua liberdade. E como fazer isso? Através do reconhecimento de sua
existência, caracterizada principalmente pela sua capacidade de fazer opções,
como qualquer ser humano faz. É especialmente através do trabalho que se
consegue essa autonomia na vida que se reflete diretamente em suas escolhas.
Como a própria Beauvoir diz, “desde que ela deixa de seu uma parasita, o
sistema baseado em sua dependência desmorona”. E, especialmente, não nenhuma
contradição entre ser autônoma e ser mulher.
Por fim, é impossível não notar como existe resistência
ainda nos dias de hoje às demandas femininas. Há exageros? Há, mas eles não são
suficientes para explicar tanta encrenca com a causa. A alienação busca ser
mantida principalmente através de processos de ridicularização das demandas,
com a afirmação de que feminismo é coisa de mulheres mal resolvidas, tanto
sexualmente quanto esteticamente, e com isso apelam para uma pretensa vaidade,
que é atribuída bovinamente às mulheres, como se homens não fossem igualmente
vaidosos. Esse é o apelo à vaidade,
ou argumentum ad vanitatem, uma
falácia informal de dispersão e relevância que busca desviar de um determinado
assunto com base na vaidade da pessoa. Vocês sabem, né? O exemplo vem de uma
frase minha mesmo, citada logo acima. “Como uma menina tão jovem e bonita fala
tantos palavrões?”, para apelar para aquele sentimento de amor-próprio que a
situa fora dos chamados “bons modos”.
É isso. Bons ventos a todos nestes tempos de covid-19 e
tentem se manter quietinhos em seus cantos. Duvido que pessoas tão eivadas de
bom senso não sejam capazes de compreender isso.
Recomendações:
Simone de Beauvoir é referência para qualquer trabalho em
que se queira abordar o feminismo. Como é um movimento ainda aceito aos
tropeções, muita gente falará bobagem ao se pronunciar sobre ela. Confie no que
ela escreveu, não no que escreveram sobre ela. Este é seu livro máster, um
belíssimo calhamaço:
BEAUVOIR, Simone de. O
Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
Com relação à banda Fanny, segue sua curta e completa
discografia:
Fanny (1970)
Charity Ball (1971)
Fanny Hill (1972)
Mother’s Pride (1973)
Rock and
Roll Survivors (1974), com Patti Quatro
Os três primeiros são os melhores. Segue uma listinha de boas
músicas para ouvir no YouTube: os hard blues You’re the One, Special Care e I Just
Realized , os boogies Changing Horses e Charity Ball, a balada Old Hat, os
hardões Blind Alley, Hey Bulldog e Young and Dumb, os bons trabalhos vocais de
Badge e Bitter Wine e os slides de Ain’t That Peculiar, mostrando as
habilidades obtidas no ukulelê. Vale a experiência.
Um site em inglês que traz as mais preciosas informações
sobre a banda tem o seguinte endereço eletrônico:
* na verdade, é raro até hoje.
** Motown é o nome de uma gravadora de Detroit, a principal
cidade automobilística dos Estados Unidos durante muitos anos. Este nome é a
condensação de motor town, cidade dos
motores, e tal gravadora se especializou em música de origem negra, como o
soul, o spirituals e o rhythm’n’blues. Da mistura entre estes estilos, criou-se
uma sonoridade própria, de arranjos muito refinados.
*** Para quem ler este texto no futuro, vivíamos o sombrio e
jocoso tempo da ministra Damares Alves, que se autointitulava “terrivelmente
cristã”, e que se dizia contrária à ideologia de gênero.
Nenhum comentário:
Postar um comentário