Tratei da questão do conhecimento nos últimos três textos
desta série (Teoria do Conhecimento, Gnosiologia e Epistemologia),
e neles deixei bem claro que a racionalidade que o absorve não o faz a esmo,
como se fosse um punhado de feijão numa caixa de sapatos. Ao contrário, os
dados que recebemos do mundo exterior são admitidos, classificados e combinados
com o conteúdo preexistente nas misteriosas câmaras ocultas de nossa massa cinzenta,
de forma a fazer sentidos novos, ressignificar antigos e rejeitar
incongruentes. É por isso que estranhamos truques de mágica, que fogem à
organização clássica a que nossa mente está acostumada. Não esperamos que a
moça que é serrada ao meio saia ilesa de sua aventura, embora o final seja
feliz. O descompasso entre conhecimento e realidade às vezes é tão grande que
não o aceitamos pacificamente, em um processo de dissonância cognitiva.
Isso tudo porque temos uma ferramenta psíquica que é praticamente sinônimo de
razão, e que será o tema doravante abordado: a Lógica.
A palavra “lógica” vem do termo grego logos, que possui uma multiplicidade de significados. Quer dizer estudo, como nas diferentes disciplinas
médicas (endocrinologia – estudo das glândulas); pode significar discurso, como em termos linguísticos
(diálogo – por meio do discurso) ou, o que mais nos interessa aqui, indica razão. Vocês verão, no jargão
filosófico, o uso profuso deste termo em seu original grego, em alguns momentos
até como sinônimo de divindade, o saber supremo e purificado das paixões
humanas.
Sempre o ser humano aplicou a lógica como um procedimento
natural do pensamento. A não ser que se tenha problemas cognitivos sérios ou
não haja outra saída, não se tentará enfrentar um brutamontes com as mãos
peladas. Não faz sentido apanhar à toa. Esse é um pensamento meramente
informal, intuitivo, que já reside em nossas conexões sinápticas atavicamente. Mas,
como disciplina formal, como pensamento ordenado, como conjunto de regras de
raciocínio, nasce com Aristóteles, que achava que a dialética platônica não era
sempre eficiente como ferramenta. Isso porque Platão exigia que se colocassem
dois polos em contradição de uma mesma questão para deles extrair pontos de
consenso e chegar a uma verdade comum. Seu principal propósito com isso era
detectar fluxos de aparência, sendo que o caminho dialético transitava entre o
Ser e o não-Ser, detectando suas transformações, mas mantendo os rastros de
suas essências, de modo a atingir o cume do mundo das ideias. Aristóteles
entendia que a contradição não era condição necessária. Um bom exemplo é o da
água: o vapor que se condensa e resfria até se tornar gelo não é contrário a si
mesmo – só as temperaturas são contrárias. O elemento essencialmente continua o
mesmo, em qualquer estado que se encontre, não se transforma em não-Ser. Por
isso, embora reconheça a mutabilidade dos fenômenos, a Filosofia aristotélica
objetiva uma estrutura comum ao raciocínio, e é a isso que damos o nome de
Lógica.
Sempre é bom começar com um exemplo, muito embora já tenha
tratado do tema neste texto. Temos uma apreensão qualquer em nossas
redondezas. Digamos que olho por sobre o cinzento horizonte de prédios e vejo
um urubu, por lá voejando. Quando eu faço isso, busco informações em minha
memória, como o animal de que se trata, o fundo no qual transita, a
luminosidade, a direção da paisagem. Concomitantemente, tudo é processado de
forma a construir uma situação interpretável. Isso é um juízo, mas percebam que está ainda isolado em nossos neurônios.
Para se tornar manifesto, é preciso que o juízo seja codificado pela linguagem,
e desta forma ele se transformará em proposição,
um desenvolvimento simbólico que pode ganhar um valor de verdade (verdadeiro ou
falso). No caso, a tradução do juízo feito pode ser assim: “Observei um urubu
voando sobre os prédios”. Isso pode ou não ser verdade – pode ser outra ave,
uma nuvem no seu formato, um OVNI, a besta-fera do Apocalipse; posso ainda ter
sonhado ou simplesmente estar mentindo. O que importa na proposição é dizer se
ela é verdadeira ou falsa. A linguagem tem outros recursos, como as perguntas,
as interjeições, as funções fáticas, ou o modo imperativo, que abrange ordens,
pedidos e sugestões. Nestes casos, não há como atribuir valor de verdade à
expressão, e não se tratam de proposições, que, como nos faz pensar a sua
etimologia, é uma proposta sobre um juízo que envolve um sujeito e um
predicado.
Um juízo pode ser visto isoladamente, mas a concatenação
entre vários deles é aquilo que chamamos de raciocínio. Começamos aqui a especular sobre desvios e
alternativas, como é o caso que ocorre quando perguntamos o porquê do nosso
caro lixeiro natural estar adejando pelas redondezas. Pensamos: “quando um
urubu plana em círculos, há carniça na região. Como nosso amigo está voando
reto, não deve ser o caso”. Vejam como, a partir de agora, há uma conexão entre
vários juízos traduzidos em proposições, que permite chegar a uma conclusão
ulterior, o que Aristóteles chamou de silogismo.
Este é o princípio geral da dedução, uma análise que se utiliza de premissas
válidas (ainda que verdadeiras ou falsas) para chegar a uma conclusão igualmente
válida. Precisamos tomar cuidado com os conceitos de validade e de verdade. Um
raciocínio pode ser válido, porém falso. É isso o que garante a mecânica do
silogismo: em um raciocínio válido, premissas verdadeiras garantem conclusão
verdadeira.
Além disso, a construção adequada do silogismo garante o
atendimento dos três princípios lógicos fundamentais: o princípio da identidade assegura que o objeto seja representado em
si mesmo, e que não se confunda com nenhum outro; o princípio da não-contradição reza que uma sentença não pode ser
verdadeira e falsa na mesma relação, somente uma delas; e o princípio do terceiro excluído tem o
escopo de garantir que uma declaração seja verdadeira ou falsa, sem
meia-verdade, nem mentirinha branca.
O silogismo, entretanto, apresenta dois problemas sérios. O
primeiro é sua pouca utilidade no âmbito científico, que discutirei mais detalhadamente
no tópico desta série destinado à Filosofia da Ciência; e o segundo são as
armadilhas da linguagem. De fato, esta é um negócio dúbio, e a existência das
falácias é prova disso (vejam aqui a lista do Pequeno Guia das Grandes
Falácias). Uma coisa pode ser designada por muitas palavras diferentes, como é
o caso do diabo, que pode ser nominado como cramunhão, satanás, demônio,
capiroto, pero botelho, danado, tinhoso, peludo, lúcifer, encourado, cão,
coisa-ruim e tantos outros. Por outro lado, uma mesma palavra pode ter vários
significados (polissemia), como é o caso de alto, que pode significar alguém de
muita estatura, local elevado, pessoa levemente ébria, ordem de parada militar,
objeto erguido, condição de cargo importante, mercadoria de preço salgado, som
muito intenso, mar distante da costa e outros. Além do mais, apesar da riqueza
das línguas latinas, elas têm limites em expressar corretamente suas funções
sintáticas dentro de uma frase. Quando eu falo “estudo”, isso pode significar
tanto o ato de aprimoramento da cognição (um substantivo) ou a afirmação da
ação de estudar da primeira pessoa do singular no presente do indicativo, ou
seja, um verbo. Por isso, há muitas contradições que são inerentes à linguagem.
No entanto, ela é imprescindível para representar as inferências dos
raciocínios. Como seria possível reduzir os possíveis danos causados à
coerência das proposições e dar correção ao raciocínio? É para isso que
filósofos como Leibniz, Frege, Boole e Russell, apenas para dar alguns nomes, se
dedicaram à tentativa de aproximar a Lógica da Matemática, através não só da
descoberta das articulações entre as expressões, mas de sua codificação. É o
que chamamos de Lógica Simbólica, uma evolução da Lógica Formal aristotélica.
Não vou me aprofundar muito, porque já pincelei o tema aqui
e porque senão a coisa vai muito longe. A ideia básica é transformar os itens
de uma proposição em símbolos, de modo que eles substituam as sentenças,
exatamente como funciona uma função matemática. Se a fórmula resultante for bem
formada, poderemos aplicar essa estrutura a diversas condições de raciocínio,
sempre sabendo adequar cada conjunto de informações a uma combinação adequada
com seus respectivos conectores. Estes últimos são aqueles que dão uma noção de
nexo entre sentenças, e como a validade de uma tem que se articular com a
validade da outra para produzir um resultado geral. Tá meio confuso, vamos
trocar em miúdos.
O primeiro passo é atomizar cada uma das sentenças de uma
proposição. Continuando com o exemplo de nossa soturna ave, podemos imaginar a
seguinte declaração: “Um urubu está voando em círculos”. Como é uma sentença
declarativa, pode receber um valor de verdade. Habitualmente, ela será
substituída na lógica simbólica por uma letra do alfabeto, em geral começando
por p.
p = um urubu está voando em círculos
Daí para frente, começamos a medir as consequências da
verdade ou da falsidade da declaração. Para tanto, utilizamos uma tabela-verdade, extremamente frequente
em cursos de iniciação na nobre arte do desenvolvimento de sistemas
computacionais, como o que fiz em minha já longínqua juventude. Para
preenchê-la, devemos abrir tantas colunas quantas forem as sentenças
existentes, somadas às conexões a serem resolvidas. Neste caso, não há
conexões, porque a frase é unitária. Sua tabela-verdade, portanto, limita-se a
medir sua verdade individual.
O que temos acima? A indicação de que a sentença p pode ser verdadeira ou falsa, e nada
mais do que isso. Isso dá atendimento aos três princípios lógicos
aristotélicos: o princípio da identidade é satisfeito pela nominação que
fazemos da expressão p, o princípio
da não-contradição é atendido pelo fato de que a expressão não poderá ser
verdadeira e falsa ao mesmo tempo e na mesma relação e o princípio do terceiro
excluído é cumprido pela razão de que a expressão somente poderá ser verdadeira
ou falsa, sem uma terceira hipótese.
Daí, a tabela-verdade acima atende aos
requisitos da boa lógica e permite calcular corretamente seus resultados. Só
que ela é simples demais, por representar só uma proposição singular. Para ter
graça precisamos ir complicando-a passo a passo. O primeiro deles é lembrar que
uma declaração não é obrigatoriamente afirmativa. A assertiva “um urubu NÃO
está voando em círculos” é tão proposicional quanto a primeira forma. Sendo
assim, é possível trabalhar com negações também, e há um operador que permite
isso, invertendo o valor lógico de uma sentença. É chamado de negação, tem o nome operacional de NÃO
e é simbolizado por ¬. Note-se
que a tabela-verdade já ganhou uma coluna, ainda que não tenha crescido o
número de operandos (ainda temos somente p),
mas já temos uma operação. A tabela verdade ficaria da seguinte forma:
¬p
Consideremos agora a seguinte frase: “um urubu está voando
em círculos e está se aproximando do chão”. Aqui, temos uma pequena armadilha.
Aparentemente, a proposição é unitária, mas o fato é que há dois pontos que
podem receber valor de verdade. Isso fica fácil de notar se desdobrarmos a
frase:
Um urubu está voando em círculos
e
Um urubu está se aproximando do chão
Sendo assim, não nos bastará utilizar apenas um
identificador p, mas dois. O segundo
operando receberá o nome de q, e
teremos a seguinte situação:
Um urubu está voando em círculos = p
Um urubu está se aproximando do chão=q
Também podemos perceber que, mesmo estando ambas as frases
imiscuídas entre si, há um pequeno detalhe a ligá-las, uma palavrinha
minúscula, de uma letra só, o E. Reescrevendo a proposição, ela ficará deste
jeito:
Um urubu está voando em círculos E um urubu está se
aproximando do chão
Em lógica, o uso deste conectivo significa uma conjunção, tem o nome operacional de E
e é simbolizado por ˄. Nesse
tipo de proposição, é preciso analisar se ambas as sentenças são verdadeiras
para que o resultado final também o seja. Empiricamente, é preciso que ambas as
condições sejam satisfeitas para que o que está sendo dito em uma conjunção
seja verdadeiro. Se o urubu do exemplo não estiver cumprindo o voo em círculos
ou se não estiver perto do pouso, haverá falsidade. Aqui, precisaremos aumentar
uma coluna na tabela-verdade; nas duas primeiras colunas, teremos a valoração
de cada uma das hipóteses possíveis, e na última demonstraremos o resultado de
cada uma das linhas:
p ˄ q
Agora vamos mudar apenas de conectivo e observar como o
cálculo será todo modificado. O valor de p
e de q será idêntico ao exemplo
anterior, com a diferença de que utilizaremos o conector OU. O resultado será:
Um urubu está voando em círculos OU um urubu está se
aproximando do chão
Neste caso, basta que apenas uma das sentenças seja
verdadeira para que toda a proposição seja verdadeira. Mas também há a hipótese
de que ambas sejam verdadeiras, como no conector E. Também aqui temos o valor
de verdade, porque é perfeitamente possível que nosso penoso herói esteja
voando em círculos e ao mesmo tempo baixando altura. Somente haverá falsidade
quando nenhuma das expressões for verdadeira. Este conectivo chama-se disjunção, tem o nome operacional de OU
e é simbolizado por ˅. A
tabela-verdade da disjunção é a seguinte:
p ˅ q
Há uma outra modalidade de disjunção em que há uma discreta
diferença. Sabemos que existem situações em que somente uma das alternativas
poderá ocorrer, ou seja, caso uma aconteça, a outra seguramente não acontecerá.
Ou é uma, ou é outra. Neste caso, só teremos valor de verdade quando as
premissas forem díspares entre si, como no caso abaixo:
OU um urubu está voando em círculos, OU um urubu está voando
reto.
No ou... ou, somente é possível que o incansável urubu
esteja presentemente voando de uma forma, por isso esse conectivo é exclusivo,
não permitindo dualidades. Este conectivo chama-se disjunção exclusiva, tem o nome operacional de XOR e é simbolizado
por ˅. A tabela-verdade da disjunção exclusiva
é a seguinte:
p ˅ q
Agora vamos
tratar das proposições condicionais e, para tanto, precisamos pegar um pouco da
noção de necessidade e suficiência. Uma condição é necessária quando, sem ela, um determinado fato nem tem como
ocorrer, e é suficiente quando basta
que ela ocorra para que consideremos um fato como efetivo. É importante notar
que toda condição necessária é, por si só, suficiente. A recíproca não é
verdadeira. Vamos ao urubu:
Se um urubu está
voando em círculos, então há carniça na redondeza
Um urubu está
voando em círculos = p
Há carniça na
redondeza = q
Neste caso,
podemos interpretar a frase da seguinte forma: um dos motivos para um urubu
voar em círculos é a existência de carniça, mas isso não é obrigatório. Ele
pode estar fazendo esse tipo de voo por conta das correntes de ar ou porque
aguarda momento adequado para pousar. Voar em círculos, portanto é uma condição
suficiente. Porém, todas as vezes em que ele avista carniça, inicia seu voo circular,
para pousar suavemente. Sendo assim, é uma condição necessária. Esse tipo de
condição é chamado de implicação,
tem o nome operacional de SE e é simbolizado por →. A tabela-verdade da
implicação é a seguinte:
p → q
Finalmente, há a hipótese de que ambas as condições guardem
entre si uma relação de necessidade. É o caso em que, para que uma aconteça,
obrigatoriamente a outra também deverá acontecer, numa implicação recíproca. Vamos
convocar pela última vez nosso já cansado urubu.
Se um urubu voando em círculos pousa, é porque tem fome
Um urubu voando em círculos pousa = p
Um urubu tem fome = q
Para matar sua fome, obrigatoriamente ele precisará pousar, porque
a carniça não é voadora. Da mesma forma, o urubu voa em círculos somente quando
avista carniça. Assim, ambas as ações são obrigatórias: o pouso e a fome. O
urubu pousará se e somente se estiver com fome. Essa condicional é chamada de equivalência, tem o nome operacional de
SSE e é simbolizado por ↔. A
tabela-verdade da equivalência é a seguinte:
Mais uma coisinha: as proposições lógicas podem ter infindos
termos, como é o caso daquela expressa na imagem da corujinha da abertura do
texto, e a utilização de parênteses serve para mudar a prioridade na resolução
de trechos, exatamente como em uma expressão matemática. Aquele exemplo é
chamado de silogismo disjuntivo, e, como cada pedacinho precisa compor a tabela
verdade, teremos um quadro muito mais extenso:
Há ainda outros tipos de operações, mas vou reservá-las para
quando o tema trouxer interesse. Já basta para saber que a redução das
proposições a símbolos “limpa” muita baboseira da linguagem e torna o
raciocínio lógico mais evidente. Uma expressão como p ˅ ¬p sempre será verdadeira, o que se chama de tautologia, como na frase “o urubu está pousado ou não pousado”. Se
invertermos o conectivo, teremos p ˄ ¬p, o que será sempre falso, e é uma contradição, porque o urubu não pode
estar pousado e não pousado ao mesmo tempo. Asserções como essas não tem
qualquer valor lógico.
O tema é
aparentemente árido, como a Matemática também aparenta ser a um primeiro olhar,
porque livrar a linguagem de todo o seu ouropel também tira toda a sua graça,
mas podemos olhar pelo lado intrínseco da coisa, e perceber como ele também é
belo, como há regras em locais que nem percebemos, como a palavra nossa de cada
dia. É importante compreender como funcionam as regras de raciocínio para
depurar um pouco melhor como nossas cabeças funcionam.
Recomendação de leitura:
O livro abaixo não é exatamente novo, mas é poderoso. O
autor desmembra os sistemas lógicos com bastante rigor e didatismo, já que o
mesmo nasceu para ser um livro-classe, e eu já o usava ainda em meus tempos de
colégio, por recomendação do professor de Lógica de Programação.
COPI, Irving. Introdução
à Lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978.
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