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Última parada. Como tudo acaba, também nosso rolê comemorativo e estes já intermináveis textos vão se acostando ao ponto final (tá, ainda tem um texto de epílogo). Saímos da cidade de Monte Alegre do Sul cedo o suficiente para passar o dia inteiro em mais algum lugar que melhor nos aprouvesse. Por proximidade e curiosidade, fomos almoçar e passar a tarde (quentíssima) na cidade de Holambra, uma jovem que surgiu após a constituição de 1988.
O nome da cidade já denuncia uma inconsueta colonização holandesa, ao menos na região sudeste. Mas há também o fato de que esta colonização é razoavelmente recente, fazendo com que ainda estejam vivos alguns de seus fundadores. O pórtico da cidade mostra a data de sua fundação (como polo de atividades, não como municipalidade):
Tem muito o que comer em Holambra, algo meio exótico e nada muito dietético. É bem verdade que há algumas coisas mais naturais e românticas, como as geleias de rosas, mas com uma quantidade de açúcar que faz o dono da União rir à toa. Optamos por tomar uns sorvetes, a beira do lago Vitória Régia, em uma confeitaria chamada Zoet en Zout. Muitas receitas típicas e sabor agradável, com a vista que temos abaixo:
Última parada. Como tudo acaba, também nosso rolê comemorativo e estes já intermináveis textos vão se acostando ao ponto final (tá, ainda tem um texto de epílogo). Saímos da cidade de Monte Alegre do Sul cedo o suficiente para passar o dia inteiro em mais algum lugar que melhor nos aprouvesse. Por proximidade e curiosidade, fomos almoçar e passar a tarde (quentíssima) na cidade de Holambra, uma jovem que surgiu após a constituição de 1988.
O nome da cidade já denuncia uma inconsueta colonização holandesa, ao menos na região sudeste. Mas há também o fato de que esta colonização é razoavelmente recente, fazendo com que ainda estejam vivos alguns de seus fundadores. O pórtico da cidade mostra a data de sua fundação (como polo de atividades, não como municipalidade):
A cidade faz apologia a tudo o que é holandês, mas dá
visível ênfase a dois ícones em especial. O primeiro é baseado na principal
atividade do município – a plantação de flores – e utiliza a flor mais típica
da Holanda, a tulipa. Há tulipas estilizadas por toda parte. No comércio...
... nas placas das ruas...
... e nos jardins.
Mas é o segundo que é levado ao paroxismo. São os moinhos de
vento, símbolo histórico dos batavos, que lutam diuturnamente contra a invasão
do mar (não à toa seu país é chamado de “Países Baixos”) e que moem seu grão com esses
engenhos gigantescos. Há moinhos absolutamente por toda a parte, inclusive no
artesanato, como pode ser visto na foto de abertura deste texto. Mas ele também
está presente na área comercial...
... nos quintais...
... nas calçadas...
... nas praças...
... nos conjuntos de edifícios...
... no museu...
... e o majestoso moinho principal, daqueles de causar
alucinações à Dom Quixote, lamentações a Sancho Pança e pesadelos ao pobre
cavalo Rocinante.
Tem muito o que comer em Holambra, algo meio exótico e nada muito dietético. É bem verdade que há algumas coisas mais naturais e românticas, como as geleias de rosas, mas com uma quantidade de açúcar que faz o dono da União rir à toa. Optamos por tomar uns sorvetes, a beira do lago Vitória Régia, em uma confeitaria chamada Zoet en Zout. Muitas receitas típicas e sabor agradável, com a vista que temos abaixo:
Como não poderia deixar de ser, toda a arquitetura da cidade
se baseia na Holanda tradicional, com elementos bastante característicos. Achei
até um pouco carregado nas cores, mas é tudo bem bonito:
O mesmo pode ser encontrado no comércio local. Percebam que
havia uma série de melhoramentos sendo implantados nessa região:
E também aqui encontramos outro símbolo nacional da Holanda:
os tamancões. Tem de todos os tipos, principalmente decorativos. Mas há alguns
para usar mesmo, o que é uma forma de suplício. Dói só de colocar.
Os holambrenses são muito ciosos e orgulhosos da própria
história. Um monumento chamado “Memorial do Imigrante” já dá uma mostra do
quanto os habitantes reverenciam seu passado e suas origens.
Mas é no museu da imigração que Holambra ganha o jogo. É um
dos mais completos do interior paulista, contendo inúmeros elementos de
interesse, que permite a nós, turistas curiosos, compreender toda a trajetória
desta insólita e linda cidade.
Há todo um acervo de máquinas e equipamentos que serviram
para dar início às lavouras de flores e frutas...
... há uma casa de caboclo que reflete toda a dificuldade
dos primeiros colonos...
... com um galpão onde se pode ver os utensílios do
dia-a-dia, utilizados especialmente em suas tarefas diárias...
... e há uma casa de pioneiros, pouca coisa mais luxuosa que
as dos caboclos.
Eu tinha uma imagem mental muito diferente da real com
relação a Holambra. Imaginava, romanticamente, vastos campos de flores,
coloridos, perfumados, crivados de abelhas rodeando o objeto produtivo, o que
daria ainda outra atividade à cidade, a produção de mel. Burro, eu. Uma das
cidades com melhores índices sociais e econômicos do Brasil não teria um
processo de trabalho arcaico em suas lavouras. Na verdade, tudo é plantado em
estufas devidamente climatizadas, as quais só poderíamos acessar com
autorização e em determinados momentos. Nada daquele jeitão típico de sitio,
com um carreador ladeado por couves de um lado, milho do outro, pés de fruta na
entrada e um chiqueirinho lá embaixo, o mais afastado possível do casebre de
madeira, forno de lenha e poço no alpendre. O mundo dos business e commodities
não tem espaço para reminiscências afetivas.
O surgimento de Holambra é sui generis. Seria mais uma
cidade do próspero interior paulista não fossem alguns pequenos detalhes que
fizeram toda a diferença em sua formação. De começo, tudo era uma enorme
fazenda que abarcava trechos de quatro municípios: Santo Antonio de Posse,
Cosmópolis, Jaguariúna e Artur Nogueira. Com as novas regras de autonomia da
constituição de 88, tornou-se município emancipado em 92, na mesma leva em que
Bertioga desmembrou-se de Santos e a gloriosa Canitar se desenlaçou da Chavantes
do sogrão. Constituída por imigrantes holandeses que fugiam da miséria do
imediato pós-guerra, a ideia inicial era constituir uma cooperativa de
inspiração socialista para criar vacas e produzir leite, tão famosos em sua
terra de origem. Ambas as coisas deram errado, e, no final das contas,
estabeleceu-se uma cooperativa por quotas e a plantação de flores, que
inicialmente poderia parecer uma ideia tola. Só que não.Como a colonização de Holambra é relativamente recente, há
ainda muitos imigrantes holandeses vivos, que contam histórias no vídeo que
indico abaixo. E, de fato, a população local tem algo diferente do que
costumamos ver. Não vou cair no jargão fácil de chamar Holambra de “pedacinho
da Europa no Brasil”, mas falarei da constatação de que a maioria dos
habitantes é branca retinta, e com um sentido comunitário muito aguçado. Como
pudemos ver nas fotos, há um substrato identitário raro por estas plagas. Não
no sentido de dizer que há um espírito de “nós e eles”, mas algo semelhante ao
que acontece na Mooca com relação à cidade de São Paulo. Ou seja, parece
existir um orgulho próprio no holambrense, seja pela beleza da cidade, seja
pelos seus índices sociais, seja pela sua origem razoavelmente incomum. É uma
sociedade que não deixou de ser comunidade. E aí chegamos em Tönnies.
Quando falamos em Sociologia, invariavelmente pensamos no
trio de ferro Durkheim-Marx-Weber, e, com boa vontade, lembramos das primeiras
traves mestras do pensamento social, como Saint-Simon e Comte, mas Ferdinand
Tönnies, alemão e subestimado, é um dos intelectuais mais seminais na
elaboração de teorias de estrutura social. Ele, por exemplo, estuda os
relacionamentos humanos para compreender a vontade
social, a maneira como o pensamento da coletividade conduz o modo de vida
do agrupamento do comunitário para o societário. Vamos trocar em miúdos,
voltando muito no tempo.Os grupos de primatas sempre foram gregários, pelo óbvio
motivo de ser esta característica uma vantagem. Facilidade na caça, na defesa,
na vigilância, etc. Para que essa vida coletiva pudesse ser bem sucedida, era
primordial que fossem estabelecidas interações entre seus membros, que se davam
de forma permanente e que eram guiadas pelas necessidades mais urgentes, como a
vontade de comer, de dormir ao abrigo, de se reproduzir. Evidentemente, estas
vontades são dos indivíduos, mas, vivendo em grupo, a interação entre as
vontades individuais acaba por formar uma vontade coletiva. Essa vontade é mais
ou menos elástica, mas continua sendo limitada pelos aspectos fisiológicos dos
membros que a compõe. Se o indivíduo tem fome, o grupo também tem, por exemplo
– não que o grupo tenha fome no mesmo
momento do indivíduo, mas o grupo como um todo tem a mesma necessidade, que
Tönnies chama de vontade natural.
Saindo agora do seu aspecto mais orgânico, e portanto
destacando-se dos demais primatas, os seres humanos têm capacidade de abstração
e de sair do ciclo de atendimento de necessidades mais imediatas. É capaz de
projetar o futuro e de planejar melhoramentos para o grupo. É dessa forma que o
homem deixou de ser um coletor para ser um agricultor, que abandonou a caça
para desenvolver a pecuária. Como o grupo não deixa de existir porque deixa de
caçar, é preciso que se organize de modo a deliberar entre seus membros, de buscar
alternativas racionais para as suas aflições, de tomar decisões que, de alguma
forma, subvertam o caráter imediato da vontade natural. Exemplo tosco: o grupo
tem necessidade de se “aliviar”, e, para fazê-lo, basta agachar em qualquer
canto. Isso é o bastante para suprir a vontade natural. Só que, sabendo que
este ato provoca mau cheiro, atrai moscas, suja poços e traz doenças, o grupo
estabelece um local certo para os membros fazerem suas obras – um local
distante das águas, da habitação, com alguma ferramenta para enterrar o
resultado e não chamar insetos. Percebam que há uma racionalidade na adoção das
medidas (evitar contato com algo que prejudica o grupo), um caráter propositivo
(na medida em que estabelecer um local certo para fazer algo nasce da ideia de
alguém, que a expõe ao grupo) e uma deliberação (para escolha do local, punição
aos faltosos, etc). O grupo, portanto, não se pauta unicamente no atendimento
de vontades naturais, mas também de vontades
arbitrárias.Evidentemente, o exemplo do cocô é extremo propositalmente.
As interações humanas são tremendamente mais complexas e variadas. Amor, sexo,
constituição de prole são aspectos relacionados, todos oriundos de vontades
naturais. Já o casamento, o conceito de família consanguínea e a intimidade do
casal são aspectos arbitrários. E o nível de arbitrariedade se eleva na medida
em que mais e mais decisões precisam ser tomadas: herança, pensões, certidões,
seguro social, direito de propriedade. Como esses, muitos outros aspectos
transitam do natural para o arbitrário, sempre carregando consigo a marca da
racionalidade, formando o organismo social que conhecemos hoje.
(Abrindo rápidos parênteses para conceituar
“arbitrariedade”. Essa palavra carrega consigo uma certa carga negativa, porque
dá a impressão de se tratar de coisa imposta, e ninguém gosta de ser obrigado a
nada. Mas há dois pontos a serem levados em conta: mesmo que não queiramos, há
um limite nos nossos direitos se quisermos viver em sociedade, que é o direito
de terceiros. Nesse caso, a lei e os acordos determinam as condutas e dão as
decisões. E já aí podemos perceber que o arbitrário nem sempre tem o
significado de “mandão”, mas de assecuratório de direitos, no sentido de
predeterminar e dar a conhecer as regras do jogo).Bom... Já deu para perceber que, quanto mais sofisticado se
torna um grupo, maior a quantidade de dispositivos que compõe o conjunto da
vontade arbitrária, e muito mais complexas se tornam as relações. A letra fria
da lei, da norma e do contrato tornam-na mais formal e cheia de nuances a serem
observadas, o que forçosamente faz com que as mesmas se tornem mais e mais
impessoais. Vamos dichavar.
Em um grupo pequeno, as relações são construídas levando em
conta as pessoas e suas idiossincrasias. Todos se conhecem pelo nome e sabem o
que cada um é capaz de fazer. Dessa forma, sabemos que o Fulano cozinha bem, o
Sicrano é organizado e higiênico e o Beltrano toca violão. Isso dá muito
significado ao papel social de cada um. Em mais um pequeno exemplo, se fizermos
uma festa, o Fulano cozinhará, o Sicrano arrumará e o Beltrano tocará, porque conhecemos a capacidade e o comprometimento de cada um. A
quantidade de regras escritas é mínima, justamente por já haver um consenso
sobre papéis e funções. Se soubermos que Beltrano está rouco no dia da festa, o
que acontecerá? Ou adiamos a festa, ou ficaremos sem música. Esse tipo de
organismo social, cheio de relações pessoais, onde o laço sanguíneo, a
vizinhança e a amizade são determinantes para fazer girar as engrenagens é o
que Tönnies chama de comunidade (Gemeinschaft em alemão).Nos grupos mais extensos, a coisa muda bastante de figura.
Para realizar a mesma festa, já não contaremos com pessoas específicas. Vamos
fechar negócio com uma empresa, a quem submeteremos um contrato que garantirá a
prestação do serviço. Já não temos O Fulano para cozinhar, O Sicrano para
arrumar e O Beltrano para tocar. Teremos, isso sim, UM fulano para cozinhar, UM
sicrano para arrumar e UM beltrano para tocar, não importando quem seja. Notem
que ninguém depende da boa saúde gutural do músico para haver a festa; se ele
estiver doente, a empresa providenciará outro, ou, na pior das hipóteses,
devolverá o dinheiro e pagará a multa acordada. E notem também mais duas
coisas: como as engrenagens não dependem de pessoas para girar e como os nomes
já não importam, mas os números. Essa é a sociedade
(Gesellschaft).
Qual é a “cola” que gruda os indivíduos em cada uma dessas
modalidades? Nos agrupamentos onde prepondera a relação pessoal, onde os
interesses estão voltados para a satisfação dos anseios e necessidades do
grupo, onde a vida é interior e íntima, ou seja, na comunidade, é a vontade
natural que agrega os membros. Já no âmbito maior, onde as relações são mais
impessoais, onde há predominância da lei escrita, onde o objetivo é uma
satisfação pessoal e onde as pessoas são distintas não por si mesmas, mas por
sua atuação social, a sociedade enfim, o aglutinante é a vontade arbitrária, ou
a vontade racional, como queiram.Olhem como são laços significativamente diferentes. O
primeiro é bem mais turbulento, dado que é no convívio direto onde virtudes e
vícios explodem com maior força; no entanto, é neste mesmo espaço que o laço é
mais apertado. Já na sociedade o laço é mais seguro, amparado pelo consenso
representado no contrato social, mas é muito mais frio e distante – na comunidade podemos
tolerar uma situação desvantajosa se o grupo for beneficiado, seja nossa
família, nossa vizinhança ou nossos amigos. Isso é praticamente impossível em
sociedade, onde só a força coercitiva da lei fará com que a perda ocorra. O
objeto que une os homens é o mesmo que os afasta. De fato, a frase síntese de
toda a teoria de Tönnies diz que “se em comunidade os homens se mantêm unidos
apesar de todas as separações, na sociedade permanecem separados apesar de
todas as uniões”.
Para finalizar, Tönnies afirmava que essa definição de
comunidade e sociedade não era estanque, formando dois grupos distintos dentro
de um mesmo espaço ou dois tipos diferentes de organização social. Todo
grupamento humano tende a se tornar uma sociedade passando pelo estágio de
comunidade, sendo que uma sempre guarda um pouco da outra. Uma comunidade, por
mais natural que se mantenha, sempre possui códigos últimos que são os mais
respeitados. Os tabus, com o incesto como exemplo, são aplicados à comunidade
toda, sem se importar com nomes, e essa é uma característica societária. Por
outro lado, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, as pessoas ainda se
visitam, jogam cartas, bebem e se amam, importando entre si como seres humanos,
e isso é tipicamente comunitário. É essa mescla o que mais encontrei de belo em
Holambra: uma sociedade bem organizada que mantém sua cara de comunidade
calorosa.
Recomendações:
Livro difícil de achar. Tenho duas sugestões possíveis. Ler
o ótimo livro de seleções de Orlando Pinto de Miranda...TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade
e sociedade: textos selecionados. In: MIRANDA, Orlando P. de. (Org.). Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo:
EDUSP, 1995.
... ou caçar a versão em italiano:TÖNNIES, Ferdinand. Comunità
e società. Roma: Laterza, 2011.
Também tem um documentário, que foi produzido por lá mesmo,
e que adquiri no museu histórico. Acho que é meio difícil de encontrar fora de
lá. De todo modo, colocarei a referência dele assim que encontrar o DVD. Acho que emprestei para alguém, mas não vou parar a publicação deste texto por causa disso.
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