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segunda-feira, 3 de junho de 2019

O comportamento de manada explica porque temos tanta dificuldade em pensar por nós mesmos (Pequeno Guia das Grandes Falácias – 44º tomo: o Bandwagon, ou Argumentum ad judicium [Apelo à maioria])

"A tendência para o conformismo na nossa sociedade é tão forte que jovens razoavelmente inteligentes e bem intencionados estão dispostos a chamar o branco de preto." - Solomon Asch

Olá!

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Você está em um prado, em uma daquelas cenas idílicas, típicas de representações do paraíso pré-adâmico. Se há som, é o etéreo farfalhar do vento que acaricia a relva e as folhas das poucas árvores espalhadas por aqui e ali, com o eventual piar de um pássaro. Um convite perfeito para se deitar no chão e aguardar a formação do conceito perfeito de paz.

Mas é impossível não dar continuidade à referência cinematográfica, agora vertida para drama. De olhos fechados, a percepção auditiva é sensibilizada por um ruído difuso, longínquo, que se assemelha a um trovão contínuo. Entreabrindo um dos olhos, nada se nota de diferente no céu, que continua com seu azul yves-kleiniano. Mas o som se aprofunda e se aproxima, de modo a lhe fazer soerguer o tronco, agora de mão em concha na orelha. O ruído se transforma em ribombar, e já é possível detectar de que direção vem vindo: exatamente às suas costas. Ao se voltar, você vê o antigo fundo verde da colina se transformar em uma massa informe, porém móvel, e com movimento em sua direção. Uma manada, inteira, imensa, feroz, incontida. Tudo se aproximando com a velocidade máxima desenvolvida por seus líderes. O resto da história cada um que a construa, a seu modo – uma árvore salvadora, uma corrida patética, um atropelamento. O fato é: seja qual for o desfecho, tudo se iniciará com um único ato – correr.

Agora vamos nos deslocar para a porta de um estádio. Um estádio grande, que receberá a final de um campeonato importante. Você aguarda pacientemente sua vez de entrar, já bastante amargurado pelo preço exorbitante que acharam de colocar para o futebol. Rodeia-lhe uma turba barulhenta, cheia de bandeiras e slogans enaltecendo as virtudes do clube de sua preferência, ou depreciando o adversário da noite. Não mais do que de repente, no miolo da multidão, o som antes coeso, ainda que agressivo, é maculado por uma gritaria desordenada. À mesma moda que o rebanho da imagem anterior, uma verdadeira massa (opte pela combinação desejada: alvinegra, rubronegra, alviverde, alvirrubra, alvianil, rubroverde, diferentes mesclas tricolores) avança com fúria incontrolável. Você tem dois caminhos a seguir: aguardar e ser pisoteado ou correr na direção das catracas, cujas mesmas deverão ser forçadas ou saltadas, ainda que a polícia tente detê-lo. Pare para pensar se o fenômeno todo não é disparado por uma única pessoa, e que os circunstantes não teriam condição de deter o maremoto se raciocinassem por cinco segundos. É o comportamento de manada, um dos pontos culminantes da irracionalidade humana.



Vamos começar colocando tudo na questão da sobrevivência das espécies. Como bem sabemos, há milhares de estratégias estabelecidas na natureza para que uma determinada espécie possa continuar existindo. Algumas delas incluem a vida solitária, e outras lançam mão de grandes cooperações, e há outras ainda que incluem simbioses bastante sofisticadas, mas a maior parte dos mamíferos que não estão no topo das cadeias alimentares são seres gregários, ou seja, vivem em grupos. Essa estratégia visa compartilhar algum benefício para a comunidade que seria impossível obter individualmente, como a obtenção de alimento, de abrigo e de proteção contra ameaças. Por isso, um bando específico age como se fosse ele mesmo um organismo, à medida que o gregarismo não diz respeito apenas a uma questão de proximidade física, mas de um agir contíguo. Enquanto alguns comem, outros vigiam; os mais parrudos se colocam do lado de fora do círculo alimentício, protegendo no interior os mais frágeis, como os filhotes. Todo o grupo trabalha na base da interação e de uma espécie de fé cega. Se aqueles que estão no posto de atalaia ficam alarmados, é fogo morro acima. E a defesa do grupo é ditada pela melhor conveniência do instante, que é a fuga quando há campo aberto, ou o encastelamento quando é impossível fugir. Às vezes, até mesmo uma entrega em sacrifício é possível, para benefício geral do grupo. É assim que as coisas funcionam e que as espécies vão se perpetrando.

O ser humano é mamífero, e, não fosse por sua vida em sociedade, estaria lá pelos meios da cadeia alimentar. Eis que, portanto, há vantagens evolutivas em sermos, também nós, seres gregários. E estão no nosso substrato psíquico os mesmos mecanismos de sobrevivência de bisões e antílopes, ou seja, temos a mesma tendência a absorver e utilizar estratégias instintivas, por mais que tenhamos o tão decantado raciocínio ao nosso favor. Em uma situação de urgência, há a propensão em simplesmente seguir o que todo o rebanho está fazendo, mesmo que a atitude seja sem sentido. O negócio primordial é salvar a pele, essa é a lógica aplicada. Por isso, a reação de um só membro é suficiente para fazer cair a avalanche. O fato é que o stress pela atenção dispensada à própria defesa faz com que fritemos o peixe enquanto vigiamos o gato atavicamente o tempo todo. Eis porque o comportamento de manada é sempre presente. Se houvesse a possibilidade de se articular mentalmente com mais calma, certamente decisões inadequadas poderiam ser melhor avaliadas (e evitadas).

Acontece que nem sempre isso é verdadeiro. Ainda que tenhamos uma boa explicação para as atitudes intempestivas das multidões, não é incomum uma propensão a se seguir o bonde mesmo em situações onde não há uma urgência que justifique o impulso pouco ponderado.

Evidentemente, o comportamento de manada é melhor explicado com ações físicas, semelhantes àquelas que descrevi logo no começo deste texto. Aliás, já referenciei anteriormente este fenômeno em um post bastante antigo, onde tratei do linchamento de um motorista de ônibus, mas o fato é que as redes sociais trouxeram à baila uma nova modalidade para apresentar este comportamento: os ataques virtuais. Essa é uma história que tem sido tão comum que dispensa grandes demonstrações: alguém fala qualquer coisa em um desses feicebuques da vida que desagrade outro alguém, que reage agressivamente. O ato contínuo é seus seguidores serem automaticamente acionados para invadir a área de comentários do agora inimigo, floodando, negativando, descurtindo e tantos outros novos termos que substituem os antigos xingos; melhor ainda, fazendo-lhes incremento. Tudo isso sem medir a pertinência da afirmação original, apenas seguindo a voz que gritou no meio da multidão.

Em síntese, o efeito manada age no plano psicológico e, embora não seja necessariamente agressivo, porque temos habitualidade de copiar outras pessoas (moda, música, novas tendências profissionais), caracteriza-se pela sua instintividade. Como bem sabem aqueles que me acompanhar neste blog, lancei na semana passada um texto que contesta a ideia de  nazismo de esquerda. É pouco provável que aconteça qualquer tsunami, por conta de minha baixíssima audiência, mas é possível que alguém vá lá me ofender, sem grandes motivos; se este contribuinte tiver um número razoável de compatriotas e indicar meu mirrado espaço, pode se desenrolar o fenômeno. Um contraponto racional seria aceitável e até mesmo desejável, mas é nesse ponto em que voltamos a ser humanos, e não gado. Não é o que costuma acontecer. Já disse que o plano de fundo do efeito manada é exatamente sua rapidez, e não sua envergadura intelectual.

Neste post que acabei de mencionar, tentei demonstrar motivações psicológicas para os defensores de ideias como o nazismo de esquerda, através de um viés chamado de wishful thinking, mas o efeito manada também ajuda a explicar este tipo de comportamento, sendo-lhe complementar. Seu nome técnico é conformidade social.

A pergunta central é: até que ponto nossas verdades resistem à opinião do meio social onde vivemos? Vamos desenvolver. Como bem se sabe, uma onda de protestos nascida do descontentamento com um aumento de tarifas descambou em uma avalanche política em Terra Brasilis, e acabou virando hábito manifestações populares que nem sempre sabemos porque participamos. Acho que um dos melhores exemplos (e não são poucos) vem de um videozinho que se tornou muito conhecido, de uma menina de alegados 17 anos que, perguntada por um repórter sobre o porquê de sua posição política, foi correndo perguntar à mãe qual resposta deveria dar. Ou seja, ela não estava lá por vontade ou juízo próprio, mas porque seguia o ditame daquele grupo. Dá vontade de chorar, por isso não vou dar o link do vídeo aqui (até porque acho que todo viu já o viu). Aqui no caso não importa a posição política, mas o modo como dançamos atrás do trio elétrico, suprimindo convicções e desejos em nome de uma posição meio que tribal.

Por falar em trio elétrico (atrás do qual só não vai quem já morreu), outra maneira de classificar o comportamento de manada é bandwagon, sendo que o primeiro dá uma noção mais de instinto e reação, e o segundo mais de influência e convencimento, mas que são complementares entre si. E por que esse nome curioso? Ele nasce das carruagens que anunciavam a chegada dos circos às cidades no século XIX, com grandes desfiles e músicas. Se isso lhe parece estranho, lembre-se de que nem rádio existia à época, e causar estrépito era uma boa fórmula de chamar a atenção. As pessoas seguiam a carruagem porque em cima dela existia uma banda que tocava músicas animadas, com ênfase nos sopros de metal e na percussão, que podiam ser ouvidas de muito longe, atraindo bastante gente. Percebendo a adesão das populações a este modelo de publicidade, os políticos espertalhões piratearam a ideia, de modo a tornar a bandwagon uma mídia de campanha. Diz-se que um dos casos mais notáveis partiu do célebre comediante Dan Rice, que, ao conclamar a população a votar no candidato à presidência dos EUA Zachary Taylor, cunhou o termo jump on the bandwagon, que é utilizado ainda hoje em países anglófonos.

Notem como vivemos constantemente nas bandwagons. Nos fins da década de 80, com a economia em eternos pandarecos, a bandwagon Collor veio com o discurso da modernidade, e corremos atrás dela. Depois, veio Fernando Henrique com a intelectualidade pedindo passagem, seguido por Lula e a retórica do povo no poder. Recentemente, fomos atrás da carruagem que mais parece um tanque de guerra, o dos duros, que prometem o mesmo de todos os outros: um modelo novo de política. Batem nos seus barulhentos tambores e ecoam à beça, e esperamos um novo fracasso, para novamente vir a cabeceira de um circo que nos seduza. Muita gente votou em todos estes projetos de bom grado, mas a maioria das vezes sem se dar conta de que não estavam perscrutando motivos razoáveis, apenas uma empolgação ou uma contrariedade.

Pois bem. Embora a percepção do fenômeno de manada ou de bandwagon seja empírico, era preciso que fosse abordado de maneira científica, o que ganhou notoriedade com o psicólogo polonês Solomon Asch em meados do século XX. Ele elaborou experiências cujo escopo era delinear o quanto somos resistentes ao impulso de conformidade social, ou seja, até que nível nossa percepção individual da realidade que nos cerca é capaz de se manter firme quando diversa do grupo ao qual pertencemos.

Basicamente, as experiências eram muito simples e giravam em torno da exibição e comparação de figuras. Era exibida uma linha a um grupo de participantes, que deveria, um de cada vez, compará-la a um conjunto de três linhas e estabelecer qual destas era igual à linha original. Algo mais ou menos assim:



A ideia era fazer uma prova fácil, onde estivesse muito óbvia a resposta. O pulo do gato do experimento de conformidade estava no fato de que a resposta era explícita, e o grupo não era montado aleatoriamente. Todos os componentes sabiam do teste, com exceção de um, que era estrategicamente colocado ao final da fila de respostas. Sendo orientados a dar uma resposta errônea, seria possível medir o quanto o participante ignorante seria influenciado pela opinião da maioria. Esse procedimento tinha várias rodadas e foi repetido com muitos grupos, de modo a dar menor margem de erro estatístico à experiência.

O resultado foi bastante expressivo. Praticamente três quartos dos participantes, ao menos uma vez, acompanharam o grupo na resposta errada, e alguns deles foram atrás do bandwagon praticamente todas as vezes. A parte final do teste consistia em revelar ao participante o mecanismo por trás dele e entrevistar o pobre-diabo para apurar os motivos que lhe levaram a errar a resposta, fugindo do óbvio. Na maior parte das vezes, a alegação era a pressão sofrida por ver todos os demais componentes apontarem para uma determinada direção, e contrapô-lo poderia significar uma série de coisas: parecer idiota, ser renitente, estar indisposto em colaborar ou demonstrar uma vontade de se excluir do grupo.

Desta forma, Asch demonstrou que, com exceção de uma minoria firme em convicções, os seres humanos tendem a suprimir sua própria noção de verdade em prol do parecer do meio social onde se vive, para se tornar conforme a este. Isso ajuda a explicar o poder que a maioria tem sobre os indivíduos e porque as pessoas fazem coisas que normalmente não fariam no âmbito privado. Pode parecer que isso seja essencialmente ruim, mas algum grau de consenso é necessário em uma sociedade. Portanto, a mesma dinâmica que nos leva a agir como rebanho é a cola que nos gruda uns aos outros. Complicado isso.

Só para concluir. O bandwagon é também uma falácia, que atende pelo pomposo nome de Argumentum ad Judicium, ou, mais simplesmente, apelo à maioria. O judicium, no caso, diz respeito ao juízo comum, aquele cuja maior parte de um grupo é concorde. É a boa e velha falácia de dispersão e relevância que argumenta ser a prática da maioria um critério de validade. Um bom exemplo desse uso vem do teólogo Meric Casaubon, ativo no século XVII, que dizia que “as bruxas devem existir porque, afinal de contas, todo mundo acredita nelas”. Sem comentários.

Bem, bem... O argumento de que o pensamento da maioria é referência segura é uma autêntica navalha assentada na mão de criança. Hitler foi eleito democraticamente, Jesus foi para a cruz por “plebiscito”, milhares de pessoas foram às ruas em 64 para pedir intervenção militar. Nem sempre as massas são racionais. Por isso mesmo, é bom se guardar um pouco nas próprias convicções e não rumar sempre com a manada.

E ad judicium não falacioso, existe? Existe. A justificativa da maioria sempre faz sentido quando é necessário aferir uma vontade popular. Dizer que determinada medida governamental foi adotada porque a maioria da população a quis é argumento plenamente válido, porque (em tese) os projetos de governo devem seguir o rumo que a sociedade lhes dá.

É preciso um pouco de cuidado para não confundir o apelo à maioria com o apelo à popularidade. Neste último caso, a quantidade está relacionada a números significativos, mas que não representam maiorias em um grupo, necessariamente.

Recomendação de leitura:

O livro abaixo contém esta e outras experiências realizadas por Asch, e dá uma noção mais clara de todo seu arcabouço teórico influenciado pela Psicologia da Gestalt.

ASCH, Solomon. Psicologia Social. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977.

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