Quando eu era menino novo, morava junto dos meus primos em
uma casa velha da Vila Ema. Isso era nas décadas de 70 e 80. Para situar um
pouco meus leitores no tempo, naquela época a hoje Avenida Luiz Ignácio de
Anhaia Melo (conhecida pelo intenso comércio de veículos usados) era um longo
rosário de chácaras, serpenteado em seu meio pelo então descoberto e já mal
cheiroso Córrego da Moóca. Meu primo mais velho e compadre, infelizmente in memorian, tinha alguns discos de hard rock, que costumava colocar em
volume considerável, e que contrastava com o então em voga John Travolta e seus
meneios e visagens disco.
Não tínhamos uma rádio lendária como a Eldopop em São Paulo
(somente na segunda metade da década de 80 surgiram a rádio 97 de Santo André e
a ilegal Ladrão do Mar, com programação voltada exclusivamente para o rock – a
89 veio um pouco depois), os lançamentos de discos tinham uma diferença de
meses ou anos entre o exterior e aqui (isso quando eram lançados) e baixar
música... Bom, isso não existia nem em sonho, nem nos mais otimistas
prognósticos. Shows de artistas internacionais era outra coisa impossível,
porque os pobres tupiniquins não faziam parte do roteiro das turnês. Malemá me
lembro das passagens do Queen, do Van Halen e do Kiss. O Brasil só começou a
entrar na rota dos grandes eventos a partir do Rock in Rio, de 1985. Por conta
disso, o grande intercâmbio se dava pelo trânsito das fitas cassete e rodízio de
LP’s feito entre os amigos. Desta forma, tomávamos conhecimentos dos
lançamentos, das novidades e das notícias de uma forma que se aproximava da
tradição oral, tão cara aos nossos antepassados. Lojas de disco que traziam
novidades, como a Woodstock ou algumas pérolas da Galeria do Rock viviam
lotadas até a tampa.
As coisas eram um pouco diferentes do que são hoje em dia.
Costumávamos acompanhar o mais de perto possível a carreira de nossos ídolos,
mas sem se importar com detalhes tão pessoais, como as cores preferidas, as
boutiques mais frequentadas e outras efemérides. O que importava mais eram as
tendências que cada álbum seguiria, o acolhimento das excursões, as datas dos
próximos lançamentos. Tanto fazia se guitarrista tal era homossexual, se
baixista X era religioso ou se baterista Y traía a mulher. O que mais importava
era o produto entregue. Mas era possível detectar algumas características
comuns e algumas sutilezas que diferenciava determinada banda de todas as
outras.
Havia um tripé que sustentava toda a cena hard rock de então: Led Zeppelin, Deep
Purple e Black Sabbath. Do primeiro, tínhamos as raízes blues e o misticismo
contrapostos a uma seção rítmica poderosa. Do segundo, um ar mais de pesquisa
(era o única das três que tinha um tecladista de ofício, o excelente Jon Lord)
e velocidade. Do terceiro, a atmosfera macabra e o peso, digno de estourar
crânios. Ao todo, em suas formações clássicas, eram treze músicos, doze deles
exímios. O único que não era um virtuoso executor era o Ozzy Osbourne. Mas,
longe de qualquer dúvida, era o mais essencial de todos, porque sintetizava
todo o pensamento daquela juventude que aflorou nos fins da década de 60. E
esse era permeado pela revolta e pela violência.
O que tínhamos
naquela época? Um mundo na premência da guerra. Lembremo-nos que aqueles eram
os anos do pós-guerra mundial e da guerra fria. Estados Unidos e União
Soviética espalhavam seu imperialismo pelo mundo e colocavam a humanidade sob
constante ameaça de um combate nuclear. Eram tempos da guerra do Vietnã em
pleno curso, onde milhares de soldados foram enviados a uma terra totalmente
desconhecida, onde um povo absolutamente distinto procurava dar um rumo para a
sua vida. Eram os anos do apartheid,
e a minoria branca não só exercia o poder discricionariamente, mas também
transformava a África do Sul em um imenso gueto.
Uma boa parte da juventude, na verdade a esmagadora maioria,
era contrária à guerra. A luta entre os sistemas gerava um sentimento de medo e
vontade de fuga, e nasce com isso uma série de movimentos de contestação, dos
quais os hippies provavelmente foram
os mais conhecidos.
Acontece que os hippies
eram movidos por um pacifismo que chocava pelo comportamento coletivista, pelo
sexo livre e pelo consumo de drogas, mas ainda não havia chegado ao âmago do stablishment. Flower Power significava um desejo de paz e liberdade, mas não era
uma denúncia aberta; era uma fuga, um não-enfrentamento. Faltava algo mais.
Quando o Black Sabbath resolveu falar de inferno e de
demônios, acabou atingindo a base da construção moral da ocidentalidade, e
atirou na cara dos senhores da guerra que a sua atitude belicista era algo que
gerava contra si mesma as armas erigidas por seus maiores medos. Os demônios,
nesse libelo acusatório, nada mais são do que metáforas e consequências deste modo
de agir, mas que incomodam demais. Vejam o que diz uma parte da letra de Wicked World:
“The world today is such a wicked thing
Fighting going on between the human race People give good wishes to all their friends
While people just across the sea are counting the dead”
Traduzindo…
“O mundo
hoje é como algo perverso
A luta
continuará entre a raça humanaAs pessoas desejam boa sorte para todos os seus amigos
Enquanto as pessoas do outro lado do mar estão contando os mortos”
A atitude da sociedade ocidental é paradoxal, e o Sabbath
deixa isso claro. Enquanto apregoa uma religião judaico-cristã que se baseia na
tríade fé, esperança e amor, também lança bombas, napalm e agente laranja na
cabeça dos coreanos e vietnamitas. E tomam um cacete exemplar. Essa mesma filosofia
religiosa garante punição ao mal, e mesmo que a manutenção do sistema sangrento
seja justificada como uma defesa da própria vida, lá no seu íntimo sabe-se que haverá
uma penalidade a ser remida. Esse fardo era pesado de arrastar, e o Sabbath
soube compreender e explorar isso.
Mas o fato é que a sociedade ocidental, ao menos no que se
refere a uma visão global, funcionava bem. Tanto é verdade que ela existe até
hoje, talvez com uma ferocidade mais dissimulada (mas não extinta – que se
lembre rapidamente da invasão do Iraque). Isso quer dizer que tanto o pacifismo
do flower power quanto a ferocidade
do Sabbath estavam errados? Eram, de fato, desajustados sociais que não
compreenderam o funcionamento da máquina política? Hmmmmm... Vamos ver. E, para
ver, vamos convocar Erich Fromm, que manjava bem dessas coisas.
Erich Fromm era um psicanalista alemão que divergia em
alguns pontos do grande mentor desta ciência, Sigmund Freud, e que trazia uma
inédita visão marxista sobre a psicanálise. Ele acreditava que a grande
contribuição de Freud foi a descoberta do inconsciente, mas que tal descoberta
se deu de maneira limitada. Isto é algo típico do desenvolvimento de novas
ciências, mas o ideário freudiano foi tão encantador que seus seguidores
tiveram dificuldade em confrontá-lo. Já tematizei a questão da consciência
freudiana por aqui, mas vamos fazer uma rápida retomada. A mente humana
opera em três níveis de consciência, chamados de instâncias: o id irracional, o ego consciente e o superego
censurador. O primeiro e o último se opõem radicalmente. Enquanto o id é a sede dos instintos e das reações
imediatas, o superego é constituído
pelas amarras morais que refreiam as ações instintivas. Para Freud e seus
seguidores, esta disposição mental, quando em desequilíbrio, denota o
transtorno do indivíduo.
De forma mais ou menos intensa, Freud e seus seguidores
acreditavam que a sociedade tinha mecanismos de acomodação que faziam com que
suas virtudes fossem exaltadas e seus defeitos amainados. O que provava essa
tese era o fato de que, de uma forma ou de outra, a sociedade funcionava de
maneira adequada: havia uma ordem estabelecida, existiam regras nas relações e
seus componentes sabiam razoavelmente bem os scripts a serem seguidos para viver sob sua égide. E aí surgiam
aqueles indivíduos que não se enquadravam adequadamente a esses esquemas, e
temos com isso os desajustados – os criminosos, os mendigos, os neuróticos –
sendo que esses últimos interessavam grandemente à psicanálise, incluindo aí o
estudo sobre os seus desajustes ao chamado “mundo normal”. O ego destas pessoas
não conseguia equilibrar os limites impostos ao superego pelos mecanismos
sociais. Ou seja, tentava-se responder à seguinte pergunta: Por que há
indivíduos que fogem de um determinado padrão social?
Fromm foi radicalmente contrário a essa visão. Para ele, a
existência de indivíduos desajustados não denota simplesmente um erro pessoal,
mas uma doença da sociedade: ela não deve prover e se preocupar unicamente com
as necessidades físicas do cidadão, mas também suas necessidades psíquicas. Os
homens não tem sua consciência formada de modo meramente biológico, comprimida
pelo instinto de preservação e pelo imperativo dos instintos sexuais. Por
consequência, Fromm entende que a psicanálise, como praticada até então, era
mecanicista e determinista, além de não se prestar a esclarecer nada sobre a
psicologia dos grupos, das etnias, das comunidades.
Para dar conta desta última característica, Fromm acreditava
na existência de um influenciador de atitudes, que era o inconsciente social. É uma forma aproximadamente semelhante ao
inconsciente coletivo preconizado por Jung (do qual falei neste post),
ou seja, existe um tipo de estrutura mental que atinge as pessoas
coletivamente, extrapolando os limites dos indivíduos. A diferença básica entre
os dois tipos de inconscientes é que no coletivo temos estruturas universais e
permanentes, denominadas arquétipos, enquanto no social o que temos é a
repressão de partes da consciência pela própria sociedade, causadora de
alienação. E uma diferença consequente é que os arquétipos são muito mais
difíceis de florescer na consciência, porque são atávicos e inerentes à
espécie, enquanto a alienação é mais fácil de ser trazida à consciência e combatida,
como todo bom marxista acredita.
Mas como o inconsciente social se forma? Os homens se
relacionam entre si e com o mundo com diferentes níveis de interesse. Fazem-no
para obter conforto, proteção, afeto, segurança e outros. Neste ciclo, alguns
indivíduos revelam-se mais aptos ao exercício do poder e passam a formar um
comportamento em que as atitudes prejudiciais a eles passem a ser reprimidas.
Essa repressão se expande e se torna tão habitual que passa a ser interiorizada
e recalcada, de modo que as pessoas adotam hábitos que nem sabem mais por que o
fazem. Qualquer semelhança com a teoria da alienação de Marx não é mera
coincidência. Fromm a estendeu ao mecanismo psíquico, nada mais que isso.
Só que esse inconsciente não está em um nível tão profundo quanto
o inconsciente individual ou o coletivo. Isso porque há transformação de
interesses e um impulso a se formar novos inconscientes sociais, o que faz com
que os indivíduos consigam reagir. É aí em que enquadramos a revolta
tipicamente juvenil, que, via de regra, se volta contra os pais, porque são
estes a porta de comunicação com a sociedade como um todo. Os mecanismos que
preenchem o superego não são constituídos meramente por influência dos pais.
Estes são apenas os vetores de uma construção social. São os agentes
autorizados pela sociedade a impor as rédeas comportamentais.
Desta forma, toda atitude de confronto com os pais não está
conscientemente voltada contra eles. A reação é contra a sociedade, e é
possível investigar e mensurar o quanto a própria sociedade é adoecida. Um
jovem tem os pais como parâmetro, mas estes são também um produto social.
Quando a menina quer colocar um piercing
ou o rapaz quer fazer uma tatuagem (bom, isso já nem é mais uma contestação –
já é uma moda) para contrariar os pais, querem na verdade contrariar a
sociedade inteira. Quando o Sabbath ou outra banda qualquer grita nomes de
demônios e profere sacrilégios, na verdade contestam os estados de coisas vigentes
e buscam uma quebra da aceitação cega dos ditames de uma sociedade que, na sua
concepção, é injusta. E quanto mais neuróticos existem em uma sociedade, mais
ela é doente, porque deixa de atender uma determinada camada populacional em
seus anseios e expectativas a ponto de causar um desequilíbrio emocional a um
número significativo de componentes. Não é a toa que a reação da crítica na
época foi a de considerar sua obra como música feita por e para macacos.
Por fim, devo dizer que, no começo de outubro, fui ao show
do Black Sabbath realizado no Campo de Marte. Olha que gracinha o ingresso:
No geral, alguns problemas sérios: o local não tá legal prá
receber shows dessa monta. Milhares de morrinhos impediam que as pessoas se
espalhassem uniformemente, o que dificultou a vida de pessoas de estatura
mediana, como eu. A abertura foi feita pelo ótimo Megadeth, digno de uma turnê
como atração principal – lembrando que não é vergonha nenhuma para qualquer
banda, mesmo medalhões como o Metallica e o Anthrax, abrir uma apresentação do
Sabbath. O som, nesta parte do show, estava vergonhoso. Parecia uma mistura de
Olodum com aqueles festivais de taikô tão comuns nos eventos japoneses, tal era
a altura do som dos bumbos. O baixista poderia sair confortavelmente para tomar
uma boa quota de cervejas que ninguém iria perceber. Mas na hora do “vamuvê”
estava tudo em seu devido lugar (os caras da mesa devem ter sido trocados,
graças a Deus). Não é a toa que os caras chegaram onde chegaram.
É bem verdade que faltaram vários clássicos no repertório. Músicas
como a precitada Wicked World, Supernaut, The Warning, The Wizard, After
Forever, Sabbra Cadabra, alguma coisa do Sabotage, como Sympton of the Universe e Hole in the
Sky, além de muitas outras, poderiam ter sido encaixadas, mas creio que já
seria muito para a garganta bastante dilapidada do malvadinho Ozzy. Mas não
deixou de ser uma catarse aquela reunião de vovôs despirocados com a rapaziada
sedenta pela busca dos ídolos que lhes faltam hoje em dia (Fui no show com meu filho e minha nora). Vão ser bons assim
lá no inferno! God bless you!
Recomendações:
A primeira e mais essencial: Não morram sem ver um show do
Sabbath. Quer dizer, isso se os caras não morrerem primeiro e vierem novamente
para o Brasil.
Quanto a Erich Fromm, sua obra é vasta. Mas como tocamos no
tema do inconsciente social, deixo como dica uma obra póstuma, composta de uma
série de textos coligidos em torno do tema.
FROMM, Erich. A
descoberta do inconsciente social. São Paulo: Manole, 2011.
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