"O amor se torna maior e mais nobre na calamidade”
Gabo, O Amor nos Tempos do Cólera
Olá!
Se alguma vez eu falei que vivi tempos bicudos, rapaziada...
Apaga tudo. Que perrengue lascado! As notícias se atropelam de tal forma que
nem sei mais direito a sequência. Tudo o que consigo resumir, e isso vale para
agora-agora-agora, é que no meu emprego as grávidas e os velhos foram mandados
para casa na sexta-feira treze. Simbólico e significativo. Na segunda seguinte,
redução de jornada para seis horas; na terça, metade da turma em trabalho
remoto, e na quarta todo mundo trabalhando de casa, ficando meia dúzia de
infelizes revezando nos plantões, até a proibição total de acesso ao prédio na
sexta, dia 20. Eu, ecdemomaníaco diagnosticado, me ajeito quase claustrofóbico
com um detestável notebook na mesinha da sala. Salva a companhia da patroa e da
filha mais nova, a moringa de água fresca e o café passado na hora.
Já tinha encarado algumas epidemias antes. Quando eu era bem
pequeno e ainda estava no prezinho, passei a mais séria que eu tinha visto até hoje.
Houve um surto de meningite que ceifou muitas vidas, especialmente de crianças.
Entre estas, estava aquela que viria a ser minha cunhada, irmã da consorte, se
poupada houvesse sido. Dizia-se que era uma doença que, quando não matava,
deixava algum tipo de sequela, aleijando e/ou retardando. Enquanto o governo
militar procurava minimizar a epidemia (qualificando os casos como um mero
surto – leiam mais aqui) e
adiava a vacinação, nossos pais se viravam como podiam. Antes de ir para a rua,
penduravam um patuá contendo cânfora por dentro da gola de nossas camisas.
Imaginava-se que os vapores evolados tinham a propriedade de afastar os vírus,
o que eu penso hoje se tratar de uma mezinha tão válida quanto um benzimento.
Mas nada foi meramente parecido com o que estamos vivenciando agora.
Reavivando esse tipo de memória, vou completando a segunda
semana de resguardo. Mas esse é o ponto culminante (por ora) da trajetória e da
tragédia do coronavírus em meu diminuto universo – ficar enclausurado em casa,
com medo de um ser microscópico, que nem é um bicho, nem uma planta, nem uma
pedra. Um vírus, a forma mais elementar de vida que existe no combalido
planetinha azul. Uma cápsula de proteína que envolve uma cadeia de ácidos
nucleicos, e que invade uma célula saudável para se reproduzir. É isso um
vírus, uma estranha entidade no limiar entre os seres vivos e os brutos, e que
toca o terror em tanta gente. Antes disso tudo, porém, algumas medidas já
vinham sendo tomadas: lavar as mãos, tossir no lenço, não se aglomerar e evitar
contato.
Isso tudo é muito estranho. Aqui no Brasil, somos muito
acostumados a essa coisa do contato físico, com beijos, uma mão no rosto
carinhosa, um abraço seguido por tapinhas na barriga, ou, no mínimo dos mínimos,
um aperto de mão. O inimigo da vez nos proíbe de tudo isso, até mesmo e
principalmente nas avós, vítimas prediletas do “bichinho” que parece mais a
cabeça do Fudêncio* do que a coroa que seu formato diz representar. E isso me
parece o ponto que mais toca nossos afetos. A perspectiva da morte não é algo
quotidiano, e ninguém vai todo dia pegar fila no mercado ou na farmácia atrás
de “arcogel”. Mas cumprimentar... Beijo-abraço-aperto-de-mão... O namastê
hindu, por mais afetuoso e elegante que seja, é um substituto quase que
melancólico para um povo quem tem como virtude a capacidade de tratar um novato
como se fosse um velho amigo. O que será de nosso amor quando a espuma desse
vagalhão desmanchar?
Vejamos. A designação amor é, na verdade, um
guarda-chuva que abarca uma quantidade meio grande de sentimentos que são
unidos pelo ponto em comum da sensação de afeto positivo, ou seja, um querer
bem. Percebam de cara, portanto, que é muito difícil estabelecer uma definição
de dicionário para o amor. E, de fato, é um tanto complexo estabelecer qual é a
cola que une pessoas tão distantes entre si. O ideal, nessas coisas de
Filosofia, é apelar para os gregos, que sabiam das coisas e já deram parâmetros
para todo o pensamento ocidental.
Já de cara podemos notar que não existe só uma forma de
amar, muito embora as diferentes modalidades do amor possam receber nomes
distintos, dependendo especialmente do objeto para o qual nosso sentimento se
volta. Se formos detalhistas em excesso, veremos que os gregos tratam da
questão sob inúmeros vieses, o que vai deixar este texto meio longo e chato.
Vamos reduzir a conversa a três deles, os mais clássicos e que abrangem todos
os outros. Vamos falar de eros, de philia e de ágape.
Falar em eros nos remete automaticamente ao deus grego do
amor, filho de Afrodite e Ares, ou Vênus e Marte na versão romana. Afrodite é a
divindade da sexualidade, dos corpos perfeitos e da perpetuação da vida,
enquanto Ares é o deus da guerra, da violência e da virilidade. A combinação da
personalidade de ambos fez de Eros (Cupido para os romanos) a personificação da
volúpia e do desejo incessante. Essas suas características fizeram-no emprestar
o nome a um tipo de amor de toque, romântico, aquela coisa de amantes mesmo, e
que pressupõe envolvimento físico. Todos nós que já namoramos um dia sabemos
muito bem o que isso significa: é gostoso à beça, mas não nos dá sossego,
especialmente na ausência. Por trás do amor erótico, há muito das moções do
desejo, e por conta disso, todas as demandas deste vem junto: a impulsividade,
a instintividade, sendo, por vezes, quase patológico. É, é isso mesmo. Pathos
serve tanto para designar o sofrimento quanto a paixão. O apaixonado adoece de
seu amor: pensa a todo tempo, quer a todo tempo. No entanto, o amor erótico não
é pura e simplesmente sexo. Aquele beijinho de bom-dia é a ponta mais inocente
do eros nosso de cada dia, e que serve de conexão para a próxima face do amor.
O centro do amor erótico está essencialmente no interesse próprio. Quando
amamos eroticamente, estamos preocupados, primordialmente, com o nosso próprio
bem, o cumprimento de nosso desejo. Por este motivo, o foco do eros é egoísta,
voltado para o próprio amante e a posse do objeto do desejo. Nada disso é
essencialmente ruim, e faz parte integrante da dinâmica dos relacionamentos.
Vamos falar agora da philia. Aqui, nós vamos desacoplar o
elemento erótico e inserir um mutualismo obrigatório. No eros, é possível que
apenas uma das partes, o sujeito, seja ativo na busca pelo desejo. Já na
philia, teremos um compartilhamento no querer bem, e por isso mesmo é o tipo do
amor de amigo, em que o companheirismo toma o lugar da proximidade física. A
amizade não se reveste de desejo, ao menos da mesma forma que em eros. É aqui
onde encontramos a lealdade e fraternidade entre os grupos, como no sentimento
pátrio ou nas famílias. Percebam, meus caros, que enquanto o eros tem uma linha
vertical, com a clara definição entre um sujeito desejante e um objeto desejado
(embora possa ser recíproco), na philia temos uma relação horizontalizada, e é
nisso que nos reconhecemos gregários: há uma relação de complementaridade que
não é de rigor no eros. Afinal de contas, digamos que em um casal não há
necessariamente dois amantes, mas entre dois amigos há sempre uma relação de
reciprocidade, senão não seriam amigos**.
Agora, existe uma terceira abordagem do amor que é chamada
de ágape. Neste caso, já não é necessária a corporeidade do eros e nem o
interesse comum da philia. O ágape é o amor desinteressado, aquele que não
aguarda retorno nem compartilhamento. Temos aqui um completo desprendimento com
relação ao proveito – nem o individualismo erótico, nem a mútua simbiose amical.
Muitos religiosos dizem que é exatamente este o amor que deus tem para com suas
criaturas***. Isso quer dizer que ele é inaplicável ao pensamento dos ateus?
Não. É aquele sentimento que envolve a comiseração ao vermos um desassistido, a
ternura em observar crianças brincando na rua, a empatia que nos une aos
distantes, o amor colocado em ação. Em outras palavras, a caridade. A
verticalidade volta, mas com o sinal trocado. Aqui, o foco do amor está todo no
objeto. O sujeito funciona como uma espécie de doador do sentimento, sem
esperar nada em troca. Altruísmo puro.
Paixão, amizade e caridade... um atuando no plano físico,
outro no social e o último no espiritual. Nossas formas de amor não são
unívocas em cada relação, mas misturadas. É evidente que o primeiro pensamento
que temos nos amores eróticos são as relações sexuais, mas esta se dá naquele
momento efêmero, que não exclui a amizade entre ambos (ou no trio, quarteto,
sei lá). Idem quando dirigimos uma ação que atinge a coletividade. Nela não
está apenas pessoas que nunca vi, e que o faço desinteressadamente, mas também
lá eu tenho meus amigos e meus amores eróticos, o que demonstra que o sentido
de fraternidade é mais abrangente do que somente uma das modalidades pode
atingir.
E tudo isso com o coronavírus? Bem...
Nesta área da informática em que milito, há uma
predominância masculina que vem sendo equilibrada muito aos poucos. Naquela
rota que eu faço entre o elevador que me deixa no andar em que trabalho, com
mais de setenta pessoas, passo ao lado de duas ou três analistas, a quem
cumprimento com um beijinho no rosto. Com relação aos demais, temos quase que
um código interno de se cumprimentar com um toque e um soco nas mãos, meio que
no estilo do basquete ianque. Além disso, eventualmente um abraço e, mais
eventualmente ainda, um beijo no rosto (porque esse tempo está passando).
Gozações mútuas entre corinthianos e palmeirenses, uma chacota para a novíssima
tatuagem do webdesigner (como cabem tantas em um único ser?) e alguns comentários
sobre roupas estranhas e cabelos esquisitos. Só depois disso, encho a caneca
com água e vou destravar minha máquina. Nestes dias próximos ao recolhimento
total, uma pesada aura de desconfiança recíproca baixou como um muro entre
todos. O máximo de afeto era o protocolar bom-dia e um aceno de mão, decretando
que o carinho recíproco era risco de vida.
Quando toda a poeira baixar, o que é que vai sobrar? Em
tese, o rio da vida voltará para seu curso, mas é cedo para dizer isso ainda.
Hoje podemos até achar engraçadinho trabalhar de casa, mas, na medida em que o
tempo passar e as costas começarem a doer, a reposição das peças ficar por
nossa conta, a falta de um happy hour incomodar as gargantas secas, ou pior
ainda, o bicho desgraçado nos pegar, a nós ou aos nossos, e deles fizer
estragos, o tamanho do trauma vai ficando imponderável. Como reagiremos a tudo
isso, a todas as perdas, a todo tédio, a toda dor? Pode ser que criemos uma
nova reverência, distante e segura, que nos afaste do colega que soltar um
espirro mal dado. E, com isso, o vírus nos levará uma boa parte não só de nossa
saúde, mas de nossa identidade. Nossa philia poderá se manter como era, só que
mais distante, menos táctil, mais creditícia, menos calorosa, mais segura,
menos próxima, mais chocha, menos amorosa.
Por outro lado, se nos arriscamos a perder em eros, podemos
ganhar em ágape. É claro que, ao concordar com a reclusão, estamos pensando
inicialmente em nós mesmos, e, em seguida, nos nossos velhinhos e doentes
particulares. Mas é óbvio que a adesão como cidadãos inclui uma solidariedade
com o próximo como poucas vezes tivemos oportunidade no Brasil. Em um momento
onde esperamos sinceramente que um líder nos guie, vemos que há um estúpido onde
não deveria estar. Ao lado dele, um corpo de empresários que insistem em se
preocupar com a economia, que menosprezam os perigos da doença, e não se
importam com a saúde de todos, a não ser de seus lucrativos negócios. Estão em
desespero com os bolsos cheios e, acostumados a comprar almas e convicções, relativizam
a vida humana como se fosse possível mensurá-la em dólares, dizendo que as
perdas são inevitáveis, e que se gire a roda da grana então. Eles têm um amor
erótico pelo próprio dinheiro, devem ter sonhos pornográficos com seus cofres, e
o imbecil-mor faz coro com eles. Dessa forma, só temos nós mesmos para nos
defender, além dos governadores e prefeitos que assumem seu real papel,
substituindo o idiota que não governa para o povo****.
(Aliás, que belo tapa na cara das ideias do liberalismo
extremo, estado mínimo, e demais que-tais, hein? Mas, quanto a isso, vamos
aguardar um pouco mais para voltar a escrever).
É dessa nossa miséria particular, combinada com a desgraça
mundial, que uma conduta independente de uma ideologia pré-fabricada vai
emergindo, retomando o bom senso e a confiança na Ciência, e que nascerá um
novo conjunto de relações sociais. A cada vez que nos propomos a nos isolar,
damos mostras de que nosso mergulho na monotonia é uma oferenda para todos
aqueles que estão mais expostos ao risco, ou que tenham uma situação de saúde
mais complicada. Ficar em casa, lavar as mãos, espirrar no cotovelo, tudo isso
são atitudes que desenvolvem justamente nosso amor mais difícil e raro, o amor
ágape. Talvez saiamos dessa catástrofe toda com um pouco menos de contato, mas
muito mais solidários. Tomara que seja ao menos assim. Bons ventos a todos.
Recomendações de leitura:
Um dos primeiros tratados sobre o amor veio de nosso mestre
Platão, com a curiosa figura do andrógino, as duas partes que se completam
mutuamente. O Banquete é uma das
obras fundantes da Filosofia ocidental. Vale a pena conhecer.
PLATÃO. O Banquete.
São Paulo: Martin Claret, 2015.
O livro de quem chupei descaradamente o titulo do texto é uma
das grandes obras de um de meus escritores favoritos. O cólera não é uma
virose, mas uma infecção pelo vibrião colérico, uma bactéria. Seus sintomas são
muito piores do que o da coronavirose: a pessoa literalmente se esvai em merda,
agravada por vômitos e cãibras. É uma doença que vai na contramão de nosso caso
atual. Enquanto o coronavírus grassa pelas classes mais altas, que tem dinheiro
para longas viagens, o cólera se dá nas aldeias mais miseráveis deste mundão,
lugares com deficiência em saneamento básico e acúmulo de eflúvios patogênicos.
O conteúdo crítico da obra de Marquez vai muito além, portanto, do que a
história de um amor à primeira vista que demorou 50 anos para se concretizar.
Só lendo para entender.
MARQUEZ, Gabriel G. O
Amor nos Tempos do Cólera. Rio de Janeiro: Record, 1985.
* Fudêncio e seus amigos foi o grande desenho animado
de Terra Brasilis. Para quem não conheceu a série, era uma turma de amigos de
uma escola liderada por um menino punk que só fala mimimi, mimimi, mimimi, mas
que era perfeitamente compreendido por seus colegas. Ácido e crítico até a raiz
da medula, tinha tudo o que você puder pensar de errado. Mas era excelente.
** Este termo, como designa uma atratividade, foi distorcido
por completo para nominar toda sorte de compulsão anômala, como acontece em
pedofilia, parafilia, zoofilia e etc. Entretanto, outros usos estão mais
próximos da verdadeira etimologia, como filantropia, filosofia e tantos outros.
*** Estranho esse modo de amar desinteressadamente quando o
primeiro mandamento ordena “amar a Deus sobre todas as coisas”.
**** Não que eles sejam muito melhores, que agem no
oportunismo, mas, independentemente da intenção eleitoreira ou não, estão se
movimentando. Isso é um fato inegável e o mínimo que se pode esperar de um
dirigente.
Retirei a imagem do coração quebrado do site br.freepik.com
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