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sábado, 3 de outubro de 2015

A pareidolia e os engodos que o cérebro nos impõe

“Um dia me disseram
 que as nuvens não eram de algodão”
Gessinger

Olá!
Quantas vezes seus olhos já te enganaram? Seus ouvidos te confundiram? Teus sentidos te pregaram peças?

 
Tem coisa de um mês, fui ao teatro do Banco do Brasil para assistir com a esposa a peça “Do Lado Direito do Hemisfério”, encenado pela Companhia Afeta. A obra se baseia nos relatos do psiquiatra Oliver Sacks, recentemente falecido, que estudou a fundo as mudanças psíquicas em pacientes com histórico de lesões cerebrais. Em certos momentos, os personagens se perdiam em um estado que variava entre a realidade e a alucinação. Eles não criavam objetos onde não havia, mas modificavam mentalmente aqueles que existiam. Sendo este um dos eixos da peça, uma das ilustrações do folder era a seguinte:


 O que seria isso? Uma borboleta? Um cálice de uma flor? Um demônio alado? Um pássaro em pleno voo? Uma mulher de pernas abertas? A interpretação é livre, porque, objetivamente, é apenas uma mancha simétrica de tinta produzida em papel a partir da sua dobra em duas partes. É a estratégia usada no teste de Rorschach, ou teste projetivo, que busca detectar o dinamismo psicológico de um paciente a partir da interpretação de padrões figurativos. Foi criado pelo psicanalista suíço Hermann Rorschach, seguindo o mesmo princípio das teorias associativas de Sigmund Freud.
A coisa funciona mais ou menos assim: ao se defrontar com uma ambiguidade, que é exatamente o que temos quando nos deparamos com a dúbia estrutura de uma mancha, utilizamos elementos de nossa própria personalidade para interpretá-la. Como o teste inclui a interpretação de diversos quadros contendo manchas, é possível ao psicanalista traçar um perfil psicológico parcial, já que são considerados todos os aspectos da resposta. Por exemplo: o paciente pode se prender a cores – uma mancha rosa pode ser interpretada como uma flor, ainda que em nenhum outro aspecto se assemelhe a uma; o paciente pode dar sua interpretação sobre a mancha como um todo, ou pode focar em um determinado pedaço da mesma; pode fazer uma interpretação corriqueira, semelhante a de muitas outras pessoas, ou pode ter uma visão rara, até mesmo inédita; e, evidentemente, da própria identificação em si também se extraem elementos, inclusive verificando-se laços ligando a interpretação das diversas manchas.
Tudo bem. Mas por que não nos deparamos com um teste desses e dizemos simplesmente que as manchas não parecem com nada, parecem simplesmente com manchas, manchas que de fato são? Por que temos a tendência de encontrar algo difuso e vagamente perceptível em coisas que se apresentam claras a nós? Mais ainda: por que somos impulsionados a encontrar marcas nas paredes e achar que são objetos, corpos, rostos, como no exemplo da primeira foto, ou a encontrar a ação transcendental agindo ao nosso redor, traduzindo esses fenômenos em milagres?
A culpa está na pareidolia, nome feio oriundo do grego que significa, literalmente, imagem lateral (para = ao lado; éidolon = imagem, figura). Imagem lateral, neste caso, significa uma segunda interpretação para a imagem que nos é dada perceber através dos sentidos, e que foge do seu contexto real. A pareidolia é um efeito típico de nosso cérebro, que procura encontrar padrões de reconhecimento no mundo que nos rodeia. É um fenômeno absurdamente comum, tão constante que poucas vezes nos damos conta de que está ocorrendo. Vejam como funciona o processo:


Se eu perguntar o que é isso, 99% da humanidade dirá que é o desenho de um “hominho”, uma pessoa. Sinceramente, se eu vir um ser com esse aspecto andando na rua, sairei correndo, achando que estamos sendo invadidos por alienígenas (menos se eu estiver na 25. Na 25 eu não acharia estranho).
Efetivamente, temos cinco traços retos e um círculo, nada mais do que isso. Mas a sutileza é que o arranjo em que esses traços estão dispostos se assemelham a um corpo humano, com o círculo representando a cabeça, e as retas, os membros e o tronco. Há um padrão humano aplicado a um desenho, e a pareidolia mostra a sua ação.
Também podemos observar a pareidolia agindo ao se observar objetos. Olhem só a frente desse carro:


Invocadinho, né? Faróis que brilham como os olhos de um lince, grade frontal que parece uma boca sorridente, capô afunilado como um nariz. Até os retrovisores lembram umas orelhinhas... Bem, lembra um rosto, não parece? Mas não é.
Mas voltemos ao nosso homenzinho pedagógico. O que acontecerá se eu adicionar uma, e apenas uma curva aberta ao lado do círculo? Vamos ver:


Veja que, mesmo através de uma ínfima mudança, nosso cérebro sofre um minúsculo colapso, entrando em estado de desconforto. Falta alguma coisa, nossas estruturas de imagens mentais não tem esse item na coleção. Vamos resolver o problema:

 
Pronto! O hominho virou menininha e estamos mentalmente aliviados. Mas continuamos a ter apenas traços (sobre a colisão entre o que julgamos saber e o que temos à nossa frente, leiam aqui meu texto sobre dissonância cognitiva).

E por que será que tudo isso acontece? Mais uma vez, é uma característica evolutiva do ser humano. É muito útil para a espécie que haja um rápido reconhecimento de ameaças ou de membros que compõem a comunidade em que vivemos, animais gregários que somos. Imagine o quanto era útil, nos tempos pretéritos, colocar a cabeça fora da palhoça e bater o olho pela savana, reconhecendo imediatamente algo errado, como um leão enfiado no meio do mato. Já é possível, nesse caso, assumir uma posição defensiva, muito antes que o perigo distante se configure em ameaça real. Portanto, qualquer coisa que juntasse características de uma fera já ligava nosso sinal de alerta. Se por ventura o alarme fosse falso, nada demais, vida que segue. Do contrário, não segue...
Por outro lado, o reconhecimento de padrões que lembrem rostos ou corpos também era importante, dessa vez pelo motivo oposto. Ao avistar uma face longínqua, ainda que com a visão turva, reconhecia-se outro elemento da mesma espécie, e, como já tive a oportunidade de mencionar em outros textos, é a vida comunitária que tornou o ser humano mais adaptado ao meio, através da colaboração mútua nas diferentes atividades.
Por estes motivos, nossa mente procura desesperadamente estabelecer padrões de reconhecimento que lhe permitam tomar decisões rápidas. Primeiro, fazemos a cognição; depois, se possível, confirmamos ou descartamos esse sinal. A pareidolia é um dos fatores que pode influenciar no conceito de ilusão de ótica.
Falei até agora de efeitos visuais, até mesmo porque a visão é o nosso sentido mais acurado, mas os demais também podem produzir engodos semelhantes, em especial a audição. Já pararam para pensar por que o ruído de chuva nos traz tanta calma? É porque, durante as precipitações, as feras que nos veem como saborosos tira-gostos costumam se recolher às suas tocas ou seus abrigos, e o risco é reduzido drasticamente. No entanto, se a chuva for muito intensa, a ponto de ser acompanhada por relâmpagos e trovoadas, passamos a sentir medo. Isso se dá porque, desta forma, a chuva passa a ser ela mesma uma ameaça, composta de inundações e raios que atingem nossas cabeças. O mesmo mecanismo de reconhecimento e alerta se dá também. E, com isso, há ruídos que se assemelham a vozes ou a rugidos. Também a audição busca padrões e tenta acomodá-los ao nosso aporte cognitivo. Duas experiências simples e divertidas: se você tiver uma vitrola (seu avô tem, com certeza), coloque um disco e gire-o ao contrário, com a agulha colocada nas trilhas. Entre sons estranhos e desconexos, fatalmente você encontrará algumas palavras reconhecíveis. Há mil e uma teorias da conspiração assegurando que mensagens satânicas são incutidas em nossa mente com esse processo (incluindo Beatles e Xuxa). O que pode ser enfiado na minha cabeça sem que eu compreenda? Affffff...
O outro caso de pareidolia auditiva são conjuntos de palavras ditas em uma língua que são compreendidos em outra. Basta que o pacote tenha um mínimo de sentido para que seja possível forçar a barra. Um exemplo interessante está na música “Always on the Run” do bom Lenny Kravitz. Várias vezes é repetido o verso “and my mama said...”, que pode parecer “amava você”. Lá pelo meio de uma das estrofes, a coisa se intensifica. Pela audição de...
“And my mama said:
Leave those bad boys alone”

… pode-se, com um pouquinho de boa vontade, ouvir-se:

“Amava você
Lindos pés com uns unhão”

É meio ridículo, mas como guarda uma certa lógica, não é de se estranhar que a confusão seja feita.
A pareidolia às vezes é confundida com ilusões de ótica, mas não são coisas iguais. A pareidolia está sempre ligada à cognição das formas. É o que acontece com o clássico caso das nuvens, que, por sua infinita maleabilidade, assumem as formas mais diversas. Se não tiver forma de nada, ainda assim parecem ser imensos chumaços de algodão. E chamamos metaforicamente uma porção de algodão-doce de nuvem justamente por se assemelhar aos dois – às nuvens e ao algodão, sem ser nem um, nem outro. Trata-se de açúcar derretido arremessado contra uma parede metálica em um movimento giratório, algo muito menos romântico.
Já a ilusão de ótica não se prende com exclusividade à forma. Ela usa a geometria, os contrasts de claro e escuro, a disposição dos objetos no ambiente e outros macetes para enganar os olhos, como é o caso do clássico exemplo abaixo:



Não, não há linhas tortas. Pode medir com uma régua.
Para compreender esse processo, precisamos fazer referência à teoria da Gestalt, mas é melhor não misturar os assuntos. Ficarei por aqui e volto depois com esse tema.
Recomendações:
Mencionei Lenny Kravitz, portanto, vou recomendar seu bom disco de 1991, que contém a música mencionada.
KRAVITZ, Lenny. Mama Said. Londres: Virgin, 1991. 52:38 min.

Com referência à peça, é excelente e vale muito a pena ser vista. Pena que não está mais em cartaz no CCBB. Procurem saber se a Cia. Afeta pretende encená-la em mais algum lugar e procurem não perdê-la.
MOTTA, Nando. Do lado direito do hemisfério. 2015.

E, para finalizar, menciono a obra de Oliver Sacks na qual a peça acima foi buscar referências para ser montada.
SACKS, Oliver. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Agradeço à Ná por emprestar seu retrato e a Jazz por tirar o retrato da parede e mostrar o contorno empoeirado que havia por trás do mesmo.

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