“Um dia me disseram
que
as nuvens não eram de algodão”
Gessinger
Olá!
Quantas vezes seus olhos já te enganaram? Seus ouvidos te
confundiram? Teus sentidos te pregaram peças?
Tem coisa de um mês, fui ao teatro do Banco do Brasil para
assistir com a esposa a peça “Do Lado Direito do Hemisfério”, encenado pela
Companhia Afeta. A obra se baseia nos relatos do psiquiatra Oliver Sacks,
recentemente falecido, que estudou a fundo as mudanças psíquicas em pacientes
com histórico de lesões cerebrais. Em certos momentos, os personagens se
perdiam em um estado que variava entre a realidade e a alucinação. Eles não
criavam objetos onde não havia, mas modificavam mentalmente aqueles que
existiam. Sendo este um dos eixos da peça, uma das ilustrações do folder era a
seguinte:
O que seria isso? Uma borboleta? Um cálice de uma flor? Um
demônio alado? Um pássaro em pleno voo? Uma mulher de pernas abertas? A
interpretação é livre, porque, objetivamente, é apenas uma mancha simétrica de
tinta produzida em papel a partir da sua dobra em duas partes. É a estratégia
usada no teste de Rorschach, ou teste projetivo, que busca detectar o dinamismo
psicológico de um paciente a partir da interpretação de padrões figurativos.
Foi criado pelo psicanalista suíço Hermann Rorschach, seguindo o mesmo
princípio das teorias associativas de Sigmund Freud.
A coisa funciona mais ou menos assim: ao se defrontar com
uma ambiguidade, que é exatamente o que temos quando nos deparamos com a dúbia
estrutura de uma mancha, utilizamos elementos de nossa própria personalidade
para interpretá-la. Como o teste inclui a interpretação de diversos quadros
contendo manchas, é possível ao psicanalista traçar um perfil psicológico
parcial, já que são considerados todos os aspectos da resposta. Por exemplo: o
paciente pode se prender a cores – uma mancha rosa pode ser interpretada como
uma flor, ainda que em nenhum outro aspecto se assemelhe a uma; o paciente pode
dar sua interpretação sobre a mancha como um todo, ou pode focar em um
determinado pedaço da mesma; pode fazer uma interpretação corriqueira,
semelhante a de muitas outras pessoas, ou pode ter uma visão rara, até mesmo
inédita; e, evidentemente, da própria identificação em si também se extraem
elementos, inclusive verificando-se laços ligando a interpretação das diversas
manchas.
Tudo bem. Mas por que não nos deparamos com um teste desses
e dizemos simplesmente que as manchas não parecem com nada, parecem
simplesmente com manchas, manchas que de fato são? Por que temos a tendência de
encontrar algo difuso e vagamente perceptível em coisas que se apresentam
claras a nós? Mais ainda: por que somos impulsionados a encontrar marcas nas
paredes e achar que são objetos, corpos, rostos, como no exemplo da primeira
foto, ou a encontrar a ação transcendental agindo ao nosso redor, traduzindo
esses fenômenos em milagres?
A culpa está na pareidolia,
nome feio oriundo do grego que significa, literalmente, imagem lateral (para = ao lado; éidolon = imagem, figura). Imagem lateral, neste caso, significa
uma segunda interpretação para a imagem que nos é dada perceber através dos
sentidos, e que foge do seu contexto real. A pareidolia é um efeito típico de
nosso cérebro, que procura encontrar padrões de reconhecimento no mundo que nos
rodeia. É um fenômeno absurdamente comum, tão constante que poucas vezes nos
damos conta de que está ocorrendo. Vejam como funciona o processo:
Se eu perguntar o que é isso, 99% da humanidade dirá que é o
desenho de um “hominho”, uma pessoa. Sinceramente, se eu vir um ser com esse
aspecto andando na rua, sairei correndo, achando que estamos sendo invadidos
por alienígenas (menos se eu estiver na 25. Na 25 eu não acharia estranho).
Efetivamente, temos cinco traços retos e um círculo, nada
mais do que isso. Mas a sutileza é que o arranjo em que esses traços estão
dispostos se assemelham a um corpo humano, com o círculo representando a
cabeça, e as retas, os membros e o tronco. Há um padrão humano aplicado a um
desenho, e a pareidolia mostra a sua ação.
Também podemos observar a pareidolia agindo ao se observar
objetos. Olhem só a frente desse carro:
Invocadinho, né? Faróis que brilham como os olhos de um
lince, grade frontal que parece uma boca sorridente, capô afunilado como um
nariz. Até os retrovisores lembram umas orelhinhas... Bem, lembra um rosto, não
parece? Mas não é.
Mas voltemos ao nosso homenzinho pedagógico. O que
acontecerá se eu adicionar uma, e apenas uma curva aberta ao lado do círculo?
Vamos ver:
Veja que, mesmo através de uma ínfima mudança, nosso cérebro
sofre um minúsculo colapso, entrando em estado de desconforto. Falta alguma
coisa, nossas estruturas de imagens mentais não tem esse item na coleção. Vamos
resolver o problema:
E por que será que tudo isso acontece? Mais uma vez, é uma
característica evolutiva do ser humano. É muito útil para a espécie que haja um
rápido reconhecimento de ameaças ou de membros que compõem a comunidade em que
vivemos, animais gregários que somos. Imagine o quanto era útil, nos tempos
pretéritos, colocar a cabeça fora da palhoça e bater o olho pela savana,
reconhecendo imediatamente algo errado, como um leão enfiado no meio do mato.
Já é possível, nesse caso, assumir uma posição defensiva, muito antes que o
perigo distante se configure em ameaça real. Portanto, qualquer coisa que
juntasse características de uma fera já ligava nosso sinal de alerta. Se por
ventura o alarme fosse falso, nada demais, vida que segue. Do contrário, não
segue...
Por outro lado, o reconhecimento de padrões que lembrem
rostos ou corpos também era importante, dessa vez pelo motivo oposto. Ao
avistar uma face longínqua, ainda que com a visão turva, reconhecia-se outro
elemento da mesma espécie, e, como já tive a oportunidade de mencionar em
outros textos, é a vida comunitária que tornou o ser humano mais adaptado ao
meio, através da colaboração mútua nas diferentes atividades.
Por estes motivos, nossa mente procura desesperadamente estabelecer
padrões de reconhecimento que lhe permitam tomar decisões rápidas. Primeiro,
fazemos a cognição; depois, se possível, confirmamos ou descartamos esse sinal.
A pareidolia é um dos fatores que pode influenciar no conceito de ilusão de
ótica.
Falei até agora de efeitos visuais, até mesmo porque a visão
é o nosso sentido mais acurado, mas os demais também podem produzir engodos
semelhantes, em especial a audição. Já pararam para pensar por que o ruído de
chuva nos traz tanta calma? É porque, durante as precipitações, as feras que
nos veem como saborosos tira-gostos costumam se recolher às suas tocas ou seus
abrigos, e o risco é reduzido drasticamente. No entanto, se a chuva for muito
intensa, a ponto de ser acompanhada por relâmpagos e trovoadas, passamos a
sentir medo. Isso se dá porque, desta forma, a chuva passa a ser ela mesma uma
ameaça, composta de inundações e raios que atingem nossas cabeças. O mesmo
mecanismo de reconhecimento e alerta se dá também. E, com isso, há ruídos que
se assemelham a vozes ou a rugidos. Também a audição busca padrões e tenta
acomodá-los ao nosso aporte cognitivo. Duas experiências simples e divertidas:
se você tiver uma vitrola (seu avô tem, com certeza), coloque um disco e gire-o
ao contrário, com a agulha colocada nas trilhas. Entre sons estranhos e
desconexos, fatalmente você encontrará algumas palavras reconhecíveis. Há mil e
uma teorias da conspiração assegurando que mensagens satânicas são incutidas em
nossa mente com esse processo (incluindo Beatles e Xuxa). O que pode ser
enfiado na minha cabeça sem que eu compreenda? Affffff...
O outro caso de pareidolia auditiva são conjuntos de
palavras ditas em uma língua que são compreendidos em outra. Basta que o pacote
tenha um mínimo de sentido para que seja possível forçar a barra. Um exemplo
interessante está na música “Always on the Run” do bom Lenny Kravitz. Várias
vezes é repetido o verso “and my mama said...”, que pode parecer “amava você”.
Lá pelo meio de uma das estrofes, a coisa se intensifica. Pela audição de...
“And my
mama said:
Leave those
bad boys alone”… pode-se, com um pouquinho de boa vontade, ouvir-se:
“Amava você
Lindos pés com uns unhão”
É meio ridículo, mas como guarda uma certa lógica, não é de
se estranhar que a confusão seja feita.
A pareidolia às vezes é confundida com ilusões de ótica, mas
não são coisas iguais. A pareidolia está sempre ligada à cognição das formas. É
o que acontece com o clássico caso das nuvens, que, por sua infinita
maleabilidade, assumem as formas mais diversas. Se não tiver forma de nada,
ainda assim parecem ser imensos chumaços de algodão. E chamamos metaforicamente
uma porção de algodão-doce de nuvem justamente por se assemelhar aos dois – às nuvens
e ao algodão, sem ser nem um, nem outro. Trata-se de açúcar derretido
arremessado contra uma parede metálica em um movimento giratório, algo muito
menos romântico.
Já a ilusão de ótica não se prende com exclusividade à
forma. Ela usa a geometria, os contrasts de claro e escuro, a disposição dos
objetos no ambiente e outros macetes para enganar os olhos, como é o caso do
clássico exemplo abaixo:
Não, não há linhas tortas. Pode medir com uma régua.
Para compreender esse processo, precisamos fazer referência
à teoria da Gestalt, mas é melhor não misturar os assuntos. Ficarei por aqui e
volto depois com esse tema.
Recomendações:
Mencionei Lenny Kravitz, portanto, vou recomendar seu bom
disco de 1991, que contém a música mencionada.
KRAVITZ, Lenny. Mama
Said. Londres: Virgin, 1991. 52:38 min.
Com referência à peça, é excelente e vale muito a pena ser vista.
Pena que não está mais em cartaz no CCBB. Procurem saber se a Cia. Afeta
pretende encená-la em mais algum lugar e procurem não perdê-la.
MOTTA, Nando. Do lado
direito do hemisfério. 2015.
E, para finalizar, menciono a obra de Oliver Sacks na qual a
peça acima foi buscar referências para ser montada.
SACKS, Oliver. O homem
que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.Agradeço à Ná por emprestar seu retrato e a Jazz por tirar o retrato da parede e mostrar o contorno empoeirado que havia por trás do mesmo.
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