Olá!
Embora eu nunca tenha pedido aos meus pais, nem tomado
iniciativa própria após casado, o fato é são poucos dias na minha vida em que
eu não tenha convivido com algum bicho de estimação, bem poucos mesmo.
Explica-se: morei por muitos e muitos anos com parentes, e os animais dos
parentes faziam parte do meu convívio, ora pois. Além disso, muitos dos bichos
que apareciam no quintal eram prontamente adotados, como foi o caso dos três
pássaros-pretos que apareceram sucessivamente, todos amarrotados: Godofredo,
Felizberto e Nicanor. Eram da minha mãe, e cantavam que era uma beleza.
Tínhamos cachorros, gatos, peixes e outros pássaros, alguns que me trariam
problemas legais hoje em dia. Também havia o caso dos cachorros coletivos,
criados por todos na rua, sem uma casa específica. Ora comia-se aqui, ora
dormia-se acolá, ora reproduzia-se no meio da vila mesmo. O mais célebre deles
foi um tal de Mosquito, que morava na rua da minha avó. Durou um tempão: acho
que até mesmo minha esposa chegou a conhecê-lo, contrariando o dito popular que
associa o desamparo ao “cão sem dono”.
Esses cachorros públicos eram alvo constante de uma
instituição hoje conhecida como Centro de Controle de Zoonoses, mas que levava
a malfazeja alcunha de “carrocinha”. Para quem é bem jovem, tratava-se de um
veículo onde eram recolhidos os cães vagabundos largados nas ruas, para evitar
a proliferação de doenças, em especial a temida hidrofobia, mais conhecida como
raiva. A atitude era compreensível em tempos nos quais a doença não tinha cura,
e a coisa funcionava mais ou menos assim: os laçadores (pessoas mais odiadas
que árbitros de futebol) percorriam os bairros procurando cachorros soltos, sob
demanda ou por ronda ostensiva. Uma vez capturado o pobre mendigo, era
encaminhado ao canil da prefeitura, onde esperava pela sua sorte por três dias.
Caso alguém se dispusesse a buscá-lo, fazia-se a liberação. Do contrário, o
bicho era sacrificado na câmara de despressurização ou gás, e seu cadáver era
incinerado. A historinha de que eram encaminhados à fábrica de sabão é uma
daquelas lendas urbanas, a la loira
do banheiro.
Hoje em dia a prática é proibida, o que é uma evidente
solução e um óbvio problema: que destinação pode se dar aos cães e gatos que
não criaram do nada o pudor de não se reproduzir?
A solução óbvia é substituir a cova pelo facão, ou seja, não
matar o infeliz, mas castrá-lo. Com isso, dá-se sobrevida aos desejáveis e
elimina-se a possibilidade de que os feios, sujos, cagados, nojentos,
indesejáveis deixem o legado de sua miséria para uma prole igualmente feia,
suja, cagada, nojenta e indesejável. Só que eles ainda viverão, e, se ninguém
os quer, não por que sejam feios, porque feiura é uma questão de moda; não por que
sejam sujos, porque um banho resolve; não por que sejam cagados, porque a sorte
muda; não por que sejam nojentos, porque feridas se curam; mas por que são
indesejados, porque não se enquadram em um determinado padrão, quem será por
estes pagãos? É aí que surge, nos últimos anos, o papel dos protetores.
Mas vamos voltar um pouco mais ao meu caso particular. Hoje
em dia, tenho um viveiro com quinze passarinhos, entre canários, diamantes,
manons, mandarins e duas codornas. Mais de uma pessoa me perguntou se não
considero cruel manter preso um ser apenas para meu prazer estético. É uma
questão interessante, mas parto do princípio que há diferentes comportamentos
animais. Um pardal ou um bem-te-vi se matam dentro de uma gaiola. Prezam mais
sua liberdade que a segurança e a comida certa preferidas pelo canário; não me
dá nenhuma impressão de que sofram, e talvez tenhamos uma visão muito
idealizada da natureza para julgar a liberdade melhor que o cativeiro, no caso
específico. É claro que isso não vale para a cabeça humana, cheia de
abstrações, mas para o bicho, podemos tentar compreender o que lhe vale mais
pelo jeito com o qual reage. Além disso, o viveiro é bastante espaçoso, há
comida em abundância e variedade, ausência de predadores, cuidados veterinários
quando necessário, e há machos e fêmeas, garantindo o lazer.
Há também um aquário, desocupado no momento. Alguma praga
carregou todos os meus kinguios para a caixa-prego, todos de uma vez, e estamos
aguardando alguém ficar suficientemente disposto para higienizar adequadamente
o ambiente.
E há o Homem-cueca.
Já o mencionei brevemente aqui e aqui. É um
cachorro vira-lata como outro qualquer, preto retinto e filho do medo da noite,
como Macunaíma. Em comparação ao seu antecessor, não é especialmente brilhante
– costuma latir para a própria sombra, para dar uma ideia. Mas já conseguiu
aprender uma série de truques, sempre em troca de petiscarias. O cachorro
anterior da casa, Coronel, era bem mais inteligente, para os padrões humanos.
Conseguia sacar quando algo ia mal, e escondia-se silente em seu canto. Sabia
se conter com um simples levantar de dedos, e parecia reconhecer expressões
faciais, tanto que nem era preciso aplicar-lhe carraspanas. Só que era sério
demais, parecia um filósofo kierkegaardiano, preso em suas aporias existenciais
(um exagero, ele só não era dado a brincar). Já o Cuecão é puro hedonismo,
fugindo um pouco do controle quando vê comida, e sendo absolutamente impossível
levá-lo à rua sem os músculos em dia.
Há uma diferença decisiva entre nosso personagem e os demais
cachorros com os quais convivi. Enquanto todos os outros eram mendigos que
recolhemos das ruas, o Homem-cueca era habitante de um abrigo, algo como um
órfão. Portanto, já era castrado, vacinado e vermifugado, e também já tinha um
nome oficial: Quick – rápido, em
inglês. Achamos o nome meio sem graça, e ficamos dias debatendo qual seria o mais
adequado, até não chegarmos a consenso nenhum, e deixarmos Quick mesmo, como
sua identidade oficial. O insólito apelido vem das brincadeiras oriundas deste
nome: quick, quack, caíque, cueca. E daí para lembrar do personagem do chuchu beleza foi um passo. Ambos periféricos, ambos negros, ambos pobres, o herói
dos cem reais mais o dinheiro do busão doou mais esse ponto de contato ao nosso
coabitante – uma identificação comunitária.
O Homem-cueca, portanto, é filho do trabalho dos protetores,
um papel social relativamente recente, que veio na esteira de uma nova relação
entre humanidade e animais, mais próxima do que em outros tempos. Para proteger
o Homem-cueca, foi necessário que a sociedade mudasse. Em outras épocas, não
teria vivido seus dois anos em um abrigo. Já estaria espalhado pelas cinzas
desse mundão.
Mas é óbvio que isso não aconteceu de supetão. Imaginem o
quanto mudou a maneira com a qual os seres humanos se relacionam e interagem
nesses mais de 200 mil anos de aventura no planetinha. Os nossos sistemas
sociais e políticos vivem em uma constante evolução, sempre dirigidos pelo
conhecimento sedimentado, pelos ventos de cada tempo e pelas circunstâncias
ambientais. Até pelo menos os anos 70, por exemplo, a relação do homem com a
natureza era de mera exploração. Os recursos pareciam infinitos e o pouco
cuidado que tínhamos produziu problemas que acabaram por semear novas formas de
relacionamento, muito mais preocupadas com a manutenção da própria existência.
As pessoas passaram a se preocupar mais com o meio-ambiente e com fatores antes
pouco considerados, pelo seu baixo valor intrínseco na lógica preexistente, exemplificados
pelos animais como sujeitos de direitos. Esse acréscimo e essas alterações na
maneira como as pessoas se relacionam entre si e o meio com que vivem formam o
conceito de capital social,
explorado pelo cientista político Robert Putnam.
Vamos aqui fazer a diferenciação e a aproximação entre dois
significados para o termo em epígrafe. Ele vem da Contabilidade, e representa o
montante investido pelos sócios em um determinado negócio. O capital é mutável:
pode ser incrementado pelos lucros e por novos aportes, ou diminuído por perdas
e retiradas, mas possui uma pretensão de crescimento, por certo, porque todo
empreendimento visa sucesso. O capital social, no sentido de Putnam, tem o
mesmo mecanismo, mas com outro objeto – o que aumenta ou diminui não é algo
tangível, como o vil metal, mas as “substâncias” que criam e mantém o elo
social, como a confiança interpessoal, a cultura, o aperfeiçoamento das
identidades coletivas e outras coisas. A chave para a compreensão do capital
social é a noção de reciprocidade: por exemplo, quando as pessoas de um grupo
participam efetivamente da composição dos valores e das normas, aumenta sua
confiança no poder de que tais regramentos representem o que há de melhor
possível para conduzir aquele grupo, o que fortalece o nó que o ata. Já é fácil
aqui perceber que falamos de democracia.
Mas nem sempre o caminho do capital social é aglutinador.
Espelhando o que acontece nas finanças, há momentos de perdas, que são os
esgarçamentos do tecido social. Muitos são os fatores que podem levar ao
distanciamento interpessoal, como a concentração de renda, a estigmatização de
uma classe, o empobrecimento generalizado, et
cetera. No entanto, um estranho fenômeno levou Putnam a constatar o caminho
de exacerbação do capitalismo: o individualismo. Putnam percebeu que uma
tradição ianque permanecia intacta em sua prática: o jogo de boliche. No
entanto, o local das partidas migrou dos clubes para os shopping centers (mais conhecidos nos EUA por malls). De fato, há uma diferença vital entre ambos os lugares. Nos
clubes, as disputas de boliche se dão por equipes. Basta que se lembre do
desenho animado dos Flintstones – as partidas não eram de Fred ou de Barney;
eram de seu time, os Búfalos d’Água, se não me engano. Já nos shoppings, a
disputa é individual. Já não temos a formação de times como ocorria nos clubes
de boliche. Não é necessária uma espécie de “adesivo social” para que se
pratique um esporte tão característico da cultura estadunidense.
Pensem bem se não é a mesma coisa que vemos no Brasil. Há
duas décadas, as pessoas se inscreviam em clubes para as mais diversas práticas
desportivas, como piscinas e aparelhos de ginástica. Ao lado disso, havia a
possibilidade de práticas coletivas, como basquete e remo, exempli gratia. Hoje os clubes vivem na penúria e as academias
povoam os bairros, onde os pretendentes a atletas malham sozinhos em suas
esteiras, com um I-Pod conectado ao ouvido para disfarçar o tédio e dar
lenitivo à solidão. As escolhas são feitas tão sob medida que o universo de opções
fica radicalmente reduzido.
De uma constatação tão singela, Putnam conseguiu disparar
uma série de observações sobre a sociedade norte-americana, e percebeu que os
índices de participações em ações coletivas despencaram, como conselhos de
bairros, reuniões de pais e professores, institutos voluntários e sindicatos,
sendo a mais significativa de todas a participação eleitoral. O absenteísmo,
por exemplo, foi a marca da eleição que levou Donald Trump à presidência. O
voto nos EUA é facultativo, e essa é uma indicação segura de que o
norte-americano, como um todo, não tem mais o mesmo interesse que tinha anos
atrás na vida comum. Na medida em que os indivíduos se reconhecem cada vez mais
como tais, menos a sociedade se dá os braços.
Ok. Vivemos hoje mais presos a celulares e feicebuques do
que aos membros físicos de nossas comunidades, mas ainda vivemos, não é verdade?
E aquela nossa velha necessidade atávica de companhia, de nos aquecermos em
conjunto, de dividirmos um belo lombo de bisão (tudo bem, tudo bem, um
churrasquinho já basta)? Como a suprimos hoje, ainda mais levando em conta a
diminuição do tamanho das famílias e sua tentacularização? Uma das rotas
utilizadas para supri-la é a adoção de animais, e um capital social acaba sendo
substituído por outro, mais adequado à nova circunstância.
Vejam vocês. Os cães, desde seu ancestral longínquo, o tomarctus, são tão sociais quanto o homem.
A princípio arredios, algumas espécies devem ter percebido que havia vantagem
biológica em se aproximar das aldeias humanas, onde conseguiam restos de
alimentos e um certo aumento do nível de proteção. A interação entre as
espécies tornou-se significativa já nesses tempos. E foi se transformando na
medida em que a vida se transformava como um todo.
Nas minhas épocas de criança, como já deixei entrever, os
cães eram criados soltos nos quintais, geralmente com livre acesso à rua.
Quando se queria prender um cachorro, coleira nele; o acesso ao interior das
casas era vetado. Quem morava em apartamento nem sonhava com cachorro. Hoje em
dia, tudo isso parece impensável. O dócil e fiel cão veio substituir a
companhia física dos filhos que não nascem mais e dos amigos que só trocam seus
afetos via WhatsApp e congêneres. Com vantagem: reclamam pouco, alegram-se com
facilidade, não demandam agrados muito elaborados, são fiéis à sua pequena
tribo e, principalmente, são sinceros. Com desvantagens: duram pouco, sujam
muito, expressam-se limitada e dubiamente e, principalmente, aqui também são
sinceros. No balanço, adaptam-se melhor que qualquer outro bicho ao modus vivendi individualista do ocidente
contemporâneo, porque oferecem companhia sem reclamar da novela em relação ao
jogo.
Não pintemos o pavão com cores que ele não tem, no entanto.
Se o humano tem dificuldades de encarar seu companheiro de espécie como seu
igual, que fará com o cachorro que não se enquadra a um ideal de beleza? É o
caso do Homem-cueca, que demorou dois anos para que alguém o quisesse.
Para proteger o Homem-cueca, e a outros como ele, os
protetores dedicam seu tempo e suas sempre parcas verbas. Eles fogem da lógica
do individualismo e investem na da solidariedade, criando outra modalidade de
capital social, em reversão à perda da coletividade. Seus cães lotam seus
quintais e lhes tomam quase todo o tempo. Eles, os cães, não são bonitos
socialmente. Se fossem, certamente estariam acolhidos, não importa se em uma
mansão ou com moradores de rua; o que importa é estarem vivendo honradamente. Mas
há bichos que são abandonados, doentes. São os cagados e cuspidos que citei no
começo, aqueles que ninguém quer. No paroxismo do cúmulo da comparação, o
Homem-cueca veio da favela. Ele é tão legal quanto seria se tivesse certificado
e pedigree. Ele veio da favela como vem milhões de pessoas, e algumas delas,
verdadeiramente de boa vontade, ainda acham recursos para cuidar de bichos tão
desvalidos quanto eles próprios. Nos pet shops da vida, sempre há alguns
cuidadores que apelam para a caridade alheia, fazendo todo o farol possível
para conseguir algum reforço nos estoques.
Por isso, eu respeito e admiro os protetores. Fazem coisas
que eu não faria e ajudam a manter ainda um pouco aderentes os contatos
comunitários.
Para proteger o Homem-cueca precisaríamos, por fim,
protegermo-nos, nós mesmos, de nossa sanha, de nosso egoísmo, lembrando do que
nos afasta e capitalizando socialmente aquilo que nos aproxima e faz dar
verdadeiro sentido à palavra “humanamente”.
Recomendação de leitura:
Cientista político e sociólogo controverso, Robert Putnam
ainda está plenamente ativo. Segue o livro que dá base às observações deste
texto:
PUTNAM, Robert. Jogando
boliche sozinho. Colapso e ressurgimento da coletividade americana.
Curitiba: Atuação, 2015.
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