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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 15º tomo - O raciocínio circular (circulus in demonstrando)

Olá!


(Este texto foi revisto porque eu fiz uma confusão dos diabos entre circulus in demonstrando e petitio principii, que busco remir agora. Peço desculpas a todos pelo inconveniente e prometo melhorar).

Tostines vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais? Quem tem mais de 40 lembra-se dessa, com certeza.

Esse é um exemplo clássico de raciocínio circular, conhecida em latim por Circulus in demonstrando, uma falácia informal em que a conclusão é obtida a partir de premissas que já a reputam como verdadeira, ou seja, a conclusão prova as premissas e as premissas provam a conclusão. Parece como a mística figura do Ouroboros, a serpente que engole o próprio rabo.


Ouroboros, a serpente se morde o próprio rabo

É óbvio que o texto do primeiro parágrafo não passa de uma bem pensada brincadeira com as palavras, uma peça publicitária que visa induzir a elucubração do pretendido consumidor das bolachas (no Rio: bishcoito), mas é uma falácia que engana (como de resto costuma acontecer com sofismas) por parecer fácil de detectar. Vejam um exemplo:

“Não acredito em falas de políticos porque eles são mentirosos.
E por que eles são mentirosos?
Porque são políticos”.

Mas alguns deles são muito mais sutis. Se dissermos que uma ação é ilegal porque a lei a proíbe, além de estarmos dissertando sobre o óbvio, estaremos induzindo um raciocínio circular, porque podemos desmembrar esse raciocínio da seguinte forma:


“Ações ilegais são proibidas por lei.
O que torna uma ação ilegal?
A lei.
O que a lei proíbe?
Ações ilegais”.

Mas isso ainda é brincadeira de criança. Talvez um dos melhores exemplos de circularidade no mundo das Ciências seja a intrigante questão da escuridão do céu noturno. Como bem sabemos, durante o dia, quando um dos hemisférios da Terra está voltado para o Sol, há intensa luminosidade, mesmo que haja bastante nuvens a cobri-lo. De noite, pelo contrário, vemos uma imensa miríade de estrelas – principalmente se estivermos longe da poluição luminosa das grandes cidades. Mas, fora destes pontos, reina a escuridão.

A princípio, tudo isso parece tremendamente lógico, porque parte de informações que colhemos todos os nossos dias, desde o momento em que nossa pernóstica espécie ficou ereta e começou a juntar lé com cré. Só que a partir do momento em que a humanidade começou a tornar seu conhecimento cosmológico mais e mais complexo, algumas perguntas que contradiziam a mera observação começaram a surgir. Acompanhemos o argumento de Jean de Cheseaux, matemático suíço: “Se o número de estrelas é infinito, o céu deveria estar coberto por um disco estelar que o preencheria completamente”. 

Esse raciocínio, como pode se observar, parte da premissa de que o universo é infinito tanto no tempo quanto no espaço, sendo que todo o horizonte cósmico seria fundeado por estrelas, membros de constelações de número igualmente infinito.

Tempos depois, o problema foi reproposto pelo astrônomo alemão Heinrich Olbers, no que ficou conhecido como “paradoxo de Olbers”. O que diz nosso amigo?

“Se o universo fosse estático e preenchido com uma distribuição uniforme de estrelas, cada ponto de visada no horizonte terminaria em uma estrela, e o céu seria uniformemente brilhante”. Algo assim.

O paradoxo já contém em si, implicitamente, uma proposta de solução. Talvez o universo não seja estático, e, mais ainda, não seja infinito. Esta ambiguidade viria a ser resolvida pela Teoria do Big Bang, conforme veremos.

Vocês já perceberam o que acontece quando uma ambulância está passando perto da gente? Na medida em que o veículo se aproxima, o som da sua sirene vai ficando cada vez mais agudo, até o momento em que passa por nós. Logo após, na medida em que se afasta, seu som vai ficando cada vez mais grave, até desaparecer. Não vou entrar em grandes detalhes, mas isso acontece porque, na proporção em que uma fonte sonora se movimenta, a frequência das ondas que emite varia. Com isso, a percepção que temos, estando parados em relação à ambulância, é de variação sonora. É o chamado Efeito Doppler.

Acontece que essa não é uma propriedade exclusiva do som, mas da propagação das ondas. Também a luz é constituída por elas, e o efeito Doppler também se aplica a ela. Como a velocidade da luz é muito maior que a do som, nossa percepção não é tão aguçada para perceber as alterações de frequência, mas, quando aplicada a distâncias astronômicas, já se torna possível fazer observações das variações.

Pois bem. Enquanto a variação da frequência sonora é percebida pelo deslocamento de sons agudos e graves, para a frequência luminosa temos uma variação através do espectro de cores. Um exemplo bastante comum é o arco-íris. Outro exemplo são os desmembramentos da luz branca ao passar por um prisma. Colhi um diagrama do site http://www.climar.pt, para ficar mais claro, representando o mesmo deslocamento produzido pelo arco-íris e pelo prisma.


Além das cores do espectro visível, há frequências que nossos olhos não conseguem enxergar. Antes do violeta, há o ultravioleta (com seus incômodos efeitos ao organismo), os raios X e os raios gama. Após o vermelho, temos o infravermelho e as ondas de rádio. Quando consideramos essas frequências não visíveis, chamamos este espectro de eletromagnético.

Com relação aos sons, notamos que conforme aumenta a distância, a frequência diminui, e os sons tornam-se mais graves, até fugir do alcance dos ouvidos. Passando para a radiação luminosa, a distância aumentada e a consequente diminuição da frequência deslocam o espectro para o lado vermelho. Conclusão: quanto mais longínquo um objeto, maior o deslocamento da frequência eletromagnética para o vermelho. É um fenômeno conhecido entre os físicos como redshift – deslocamento para o vermelho.

E o que tudo isso significa? Quando é analisada a luz proveniente das diferentes galáxias, é detectado um deslocamento para o vermelho em todas elas. Caminhando para o vermelho, é possível concluir que elas estão se afastando de nós, bem como se afastam entre si. E a conclusão maior: o universo está em contínua expansão.

Isso tudo levou os cientistas a teorizar sobre o universo original. Se as galáxias estão se afastando, isso significa que elas estiveram todas juntas, em um passado bastante remoto. Essa linha de pensamento levou o padre e físico Georges LaMaître a supor uma espécie de “átomo primordial”, onde toda a matéria do universo estava concentrada em um único ponto, em uma densidade inacreditável, até que houve início, por algum evento indeterminado, a expansão que hoje conhecemos. Em seguida, o físico ucraniano Georgiy Gamow aperfeiçoou a ideia, modificando o átomo primordial para uma “sopa” extremamente densa e quente, constituída por partículas em um incomensurável esmagamento. Houve um ponto em que a capacidade de aumentar a densidade deste suposto líquido entrou em colapso, gerando algo semelhante a uma explosão, que faria com que todo o composto se espalhasse pelo espaço. Era o Big Bang.

Voltando agora ao céu noturno, e já pensando em um universo em movimento, podemos concluir que, por mais rápida que seja a propagação da luz pelo espaço, há objetos siderais tão distantes de nós que a luminosidade emitida por eles ainda não teve tempo de chegar até nós. Mais ainda: como as galáxias estão se afastando, conforme pode ser deduzido pelo estudo do redshift, cada vez mais sua frequência diminui, a ponto de se evadir do espectro luminoso e cair em uma radiação infravermelha, já imperceptível pela visão. Desta forma, podemos notar que ambas as explicações resolvem o paradoxo de Olbers!!!

Poderia falar ainda mais, como a radiação cósmica de fundo, mas eu me prolongaria demais, e já estou me afastando qual uma estrela perdida pelo cosmos. A falácia do raciocínio circular já está em pleno desvio para o vermelho. Ela ocorre quando tentamos atribuir ao céu escuro noturno uma confirmação da ocorrência do Big Bang. Não podemos proferir uma frase como “O Big Bang é verdadeiro porque é comprovado pelo céu escuro, já que o céu escuro é justificado pela existência do Big Bang”, sob pena de incorrer na falácia combatida neste texto.

Esclareço. A teoria do Big Bang fornece uma explicação da existência do céu escuro, mas a existência do céu escuro não confirma a teoria do Big Bang. Muitas outras explicações seriam plausíveis, como algum tipo de desvio luminoso, ou perda de intensidade da radiação, ou a existência de alguma matéria que absorvesse a luz estelar, tudo isso sem que o Big Bang pudesse ser descartado. Portanto, uma afirmação de que o Big Bang explica a escuridão noturna e que isso confirma a existência do Big Bang é a típica configuração do circulus in demonstrando, a nossa referência circular.

Para fazer um adendo, é preciso lembrar que a Ciência não se move com paradigmas imutáveis. Em outras palavras, ela não é dogmática. A Teoria do Big Bang é hoje a maneira mais bem aceita pela comunidade científica para solucionar o problema da origem do universo, mas não é definitiva. Muitas coisas ainda precisam ser mais bem elucidadas, como a descrição dos quasars e dos buracos negros, mas na medida em que a Astronomia fizer novas descobertas, elas serão confrontadas com o Big Bang, seja para corroborá-lo, seja para refutá-lo. É assim que funciona a Ciência e é isso que a torna fascinante: nenhuma resposta é fácil, nem cômoda, nem definitiva.

E eu dei essa volta toda só para explicar o funcionamento de uma falácia! Filosofia também é muito legal.

Só para terminar: existe raciocínio circular não falacioso? Mais ou menos. Poderíamos dizer que sim, mas neste caso chamamo-los de tautologias, que, em geral, são tolas, apesar de verdadeiras. Dizer que uma característica cultural não é natural e que, portanto, as plantas não possuem cultura porque são naturais é autoevidente, mas não é uma mentira. Assim, é preciso tomar certo cuidado em diferenciar a tautologia da falácia do raciocínio circular.

Recomendação de filme:

Não se trata exatamente de um filme que traduz uma falácia, mas de uma obra que retrata uma situação de circularidade surpreendente, como, aliás, é a atuação do careteiro Jim Carrey, excelente neste caso. Devo dizer mais: de uns quinze anos para cá, este ator deu um rumo muito melhor para a carreira, lançando os bons Todo Poderoso e Show de Truman. Mas o filme abaixo é verdadeiramente bom. Recomendo bastante.

GONDRY, Michel. Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Filme. EUA: Universal Pictures, 2004. Colorido. 108 min.

Agradeço à Deb por emprestar suas mãozinhas e seu talento para ilustrar a foto deste texto.

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