Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas
Já falei muitas coisas sobre minha história neste humilde espaço, desde a minha mais tenra infância até os dias atuais, sem nenhum tipo de linearidade. Essa estrutura caótica se deve à adequação do tema da postagem ao episódio que uso, muitas vezes, para ilustrar determinado pensamento. Por isso mesmo, às vezes me repito, como farei agora. Eu já mencionei anteriormente que, em minha juventude, eu tinha o sonho de fazer carreira musical, neste e neste textos. Seguia não só o desejo de impressionar as menininhas, mas também uma tendência familiar, que gostava de se juntar à mesa para batucar velhos sambas-canções e boleros, o que faziam muito bem, especialmente meu padrinho, com um vozeirão de barítono burilado nos velhos clubes do Brás e da Mooca. Dos que nada cantavam, havia a extração do ritmo, utilizando caixinhas de fósforo e latinhas vazias à guisa de agogô. Os mais arrítmicos eram eu e meu pai. O velho nem tentava acompanhar, sabedor da inépcia de seu compasso, mas eu, criança inconveniente, queria participar da roda por toda lei, mas atrapalhava mais do que abelha no chá de gengibre. Davam a mim um ralador de queijo e uma colher de pau, para simular um reco-reco, e com isso eu me divertia iludido.
Anos mais tarde, é com esse painel que minha mãe aceitou, com um misto de desânimo e indulgência, o pedido de me disponibilizar o velho violão que ficava guardado no guarda-roupa de meu já falecido avô, pouco confiante na minha capacidade de transformar em música a minha conhecida impaciência. Sozinho, eu mostrava uma faceta que até eu mesmo desconhecia até então, a de me compenetrar no aprendizado e entender coisas por si só. E, dessa forma, comecei a tocar uma coisinha ou outra, com a pouca técnica que me caracteriza até hoje. Quebra um galho nos parques da vida, ao pé de uma árvore, cantando canções que todo mundo conhece na minha geração.
Mas eu não estava contente com as mesas da família. Eu queria me aperfeiçoar um pouco, e, ao menos, aprender a afinar meu próprio instrumento. Por isso não me considero completamente autodidata: fiz umas quatro aulas de teoria com um amigo, o Nivaldo. É desse pequeno, porém proveitoso aprendizado que comecei não só a afinar, mas também a dedilhar e usar palheta. O resto foi por minha conta e das revistinhas de cifras.
Outra coisa que eu aprendi com meu camarada representou uma virada em minha incipiente carreira: um contrabaixo possuía uma afinação correspondente às quatro últimas cordas do violão. Já trabalhando, fiz o primeiro crediário da minha vida: um baixo Retson e um amplificador Check Mate. O primeiro era pouco mais que uma tábua com cordas, e o segundo tinha o colorido sonoro de um radinho de pilhas, mas eu fiquei exultante com minhas aquisições, e após pouquíssimo tempo de adaptação, já fui me candidatar a fazer parte de alguma bandinha que quisesse arriscar a sorte.
Foram poucas as tentativas antes de concluir que eu não ia para lugar algum, e que o melhor a fazer era me dedicar à faculdade. Na primeira foi o Carnívoro, que, apesar do nome thrash metal, era um power trio em que tocávamos velhos hard rocks da década de 70, e onde aprendi também a tocar bateria. Acabou rápido, com a mudança dos irmãos guitarrista e baterista para uma cidade do interior, deixando-me a pé. Depois, fui para um conjunto que formamos após uma jam de tarde de domingo. Um pessoal mais completo, já com duas guitarras e um vocalista, mais voltados para o emergente pós-punk, cujo nome era Tropa de Choque. Participamos de alguns festivais e arrumamos dois barzinhos para tocar, todos nós com documentos devidamente falsificados. Desisti quando o rumo da galera estava mais dirigido para substâncias do que para música. Fui então tocar com um grupo já formado, o Sentença de Fogo, que tinha um problema curioso: tinham uma bateria, mas não tinham baterista. Explico. O baixista era, ele mesmo, o proprietário do instrumento de percussão. Como aqueles homens-banda ainda eram fenômenos de circo, já era preciso arrumar quem assumisse o papel de baterista. Eu fui um belo dia para assisti-los e acabei resolvendo dois problemas, assumindo o posto de baterista e também de vocalista, já com o compromisso de ceder os postos assim que conseguissem quem os fizessem – o que eu queria mesmo era continuar tocando meu baixo. É que há problemas em ser vocal e batera ao mesmo tempo. Primeiro, a pouca mobilidade. A não ser no intimismo de uma bossa nova, é esperado de um vocalista que haja muita interação com o público, o que não é muito possível para quem está sentado em um banquinho, atrás de uma parede de tambores. E há também a questão da dificuldade de se tocar e cantar ao mesmo tempo. Exceção feita a poucos gênios, dá para cantar e tocar confortavelmente apenas nos grooves. Na hora das viradas, vira um embolo só. As opções não são animadoras - ou se evitam performances arrojadas, tirando a graça da condução, ou se fazem vocalizações extremamente simples, tornando o resultado final eternamente ingênuo. Quem dera eu fosse Peter Hoorelbeke ou Lee Kerslake para conseguir fazê-lo com tanta maestria, mas eu sou eu. A coisa acabou uns seis meses depois, da forma que eu falei: com o recrutamento de um baterista*, minha missão acabou naquela casa.
Isso tudo levou poucos anos, mas me deu uma certa carguinha de experiência, de modo a permitir voos pouca coisa mais altos, as bandas Mosaico e Exílio. Da primeira, uma experiência no progressivo, com um quarteto de baixo, bateria, guitarra e flauta, poucos vocais e com muita incursão pelo jazz. Por incrível que pareça, a banda nasceu para musicar uma peça infantil!!! A trupe que a encenava era a personificação da piração na batatinha, todos amadores com um jeitão meio hippie, meio rastafari. Era um musical do tipo proteção à natureza, onde os personagens cantavam músicas realmente etéreas, e havia um punk malvadão que queria destruir tudo. Nada de novidades, a não ser a intenção de se usar músicas muito mais sofisticadas. Eles usavam músicas em background e faziam dublagens, e o projeto era ter uma banda ao vivo. No caso, nós.
A coisa não deu muito certo. Primeiro, porque a peça era ruim para caralho. Depois, porque criar as músicas no tempo que os atores queriam era coisa infactível. Por fim, a casa dos ensaios recendia a maconha, o que, na época, ainda era uma chave de cadeia daquelas. A casa era de um casal que tinha erva por todos os potes… eles fumavam sem parar, e todas as vezes que íamos lá, ficávamos se borrando todos, esperando a batida dos hômi na porta. Depois, ainda tocamos juntos por um tempo, mais para fins recreativos, até cada um ir para seu lado.
Minha experiência mais séria veio antes disso. Estando "desempregado" do Sentença, fui convidado para fazer parte de uma banda cover do Raul Seixas. A coisa não rolou, por conta da ruindade da galera, mas o batera era promissor e propus a ele um empreendimento novo, só com composições próprias. Eu, Maurício, Moacir e Edson éramos os gajos. Um conjunto clássico de duas guitarras, baixo, bateria e todo mundo no coral. Fazíamos algo próximo do hardão setentista, obtendo distorções mais sobrecarregando as válvulas do que usando pedaleiras (até por conta da limitação dos recursos). Nossas letras falavam essencialmente sobre angústia e desejo de liberdade, com uma boa dose de poesia e filosofia.
O processo criativo tinha um esqueleto fundamental. Basicamente, algum de nós trazia um tema melódico e ficávamos brincando por horas em cima do mesmo, até que dele saísse um arranjo melhor elaborado. Um tempo depois, já com a música consolidada, algum de nós criava uma letra e inseria as partes em dueto. E esse era o "processo produtivo" mais comum – primeiro a música, depois a letra, e por fim a cerejinha do bolo: o nome da tal canção.
Evidentemente, essa ordem poderia ser subvertida. Às vezes, uma boa poesia podia nascer, pedindo para ser musicada. Por vezes, era fácil de encaixar uma melodia que nascesse igualmente de forma autônoma, mas o mais usual era que houvesse problemas, tendo a necessidade de se fazer adaptações, cortando algumas sílabas aqui, umas palavras ali, frases inteiras acolá. Dificilmente era necessário fazer ajustes quando a música nascia primeiro.
Mas havia casos de inversão mais radical, onde a trabalheira (e a sensação de “forçação”) era mais acentuada. Isso ocorria quando a obra começava pelo fim, ou seja, pelo título. Em alguns casos, isso era compreensível. É o que aconteceu com a música tema da banda, que não poderia ser outro a não ser "Exílio", ora pois. Era um rockão com baixo marcapasso bem socado e muito bumbo, e uma pá de acordes dissonantes, que ia variando de andamento, passando para um cavalgado levado só no power chord e meu vocal rasgado: "exilado, solitário, essa é a minha sina…". Putz, pensando bem, era uma PUTA música. Não tinha nada de delicada e chamava muito na emoção, principalmente na hora do solo. Mas esse, como eu disse, era um caso de exceção. Músicas como “Garoa na Serra”, “Todos os Caminhos Levam à Alvorada” e “Muito Além do Porto” eram apenas bons nomes, que, se viraram músicas decentes, foi mais pela via do improvável. Isso porque as coisas têm um caminho mais ou menos certo a seguir, e tudo o que foge a essa rota tem cara de casa que começou a partir do teto.
Bom… isso não é problema de maiores consequências quando falamos de arte, mas eu gastei todo esse português porque eu queria demonstrar que há um sentido certo nas coisas, e que quando não o seguimos podemos ter problemas. Não fosse assim, não haveria razão para utilizarmos metodologias, o que nos leva de imediato a lembrar de pesquisa acadêmica, em especial a científica. Por este motivo, há alguma coisa de errado quando tentamos fazer a coisa ao contrário.
O desenvolvimento de uma proposição segue um rito. A partir da observação de um fenômeno qualquer, que nos desperte a curiosidade e que clame por explicação, buscamos coincidências, repetições e anterioridades que nos permitam formular uma hipótese. Porque aconteceu isso, aquilo e o outro, o desfecho foi tal. Depois disso, procuramos testar essa hipótese, obtendo dados e mais dados que a corroborem ou refutem. Quando pensamos no silogismo aristotélico, esse é o espaço em que formaremos as premissas, e delas extrairemos as conclusões. É assim que funciona. Eu só tenho conclusões se eu tenho dados que confirmem minhas premissas.
Só que essa técnica não é especialmente boa para quem tenha uma conclusão que é tida como verdade absoluta. Em um sentido normal, que parte das premissas para a conclusão, não há nada de errado se essa última não se confirmar. O que acontece, neste caso, é que mudamos a conclusão e pronto. Só que isso pode confrontar aquilo que está descrito em um livro sagrado, e aí temos gasolina no incêndio. As pessoas dificilmente abandonam o conforto de suas convicções, mesmo confrontadas com uma realidade muito divergente de suas crenças. É o que já falei neste texto, por exemplo.
Esse mecanismo funciona terrivelmente bem com religiões que têm suas verdades prontas e que não podem ser mudadas. Tem-se uma conclusão, e procura-se adequar as premissas de acordo com ela. O rito é modificado, é invertido. Na Ciência, obtemos dados para tirarmos conclusões; na Religião, temos conclusões, e procuramos dados que as corroborem. Veja-se Evolução, veja-se idade da Terra, veja-se surgimento da vida. Veja-se tantas e tantas outras.
Isso funciona com absolutamente qualquer religião? É claro que não. O Catolicismo, por exemplo, convive muito bem com teorias como o Big Bang e o Evolucionismo. Deus é o motor que lhes toca e pronto. Mas há gente que é muito mais literalista, e que precisa cumprir seus escritos ipsis litteris, sem tirar nem pôr. Para isso, dentre outras, praticam uma falha argumentativa denominada petitio principii, a petição de princípio. Isso funciona aplicando-se nas premissas os mesmos valores que se aplicam à conclusão, ou seja, a conclusão já é apresentada como verdadeira em uma das premissas do argumento. É um final (conclusão) que demanda um ponto de origem, uma explicação que lhe dê sentido, que pede um princípio. Um belo exemplo está nos nossos divertidos terraplanistas, que inferem, por exemplo, que as estações do ano não podem ser explicadas pela variação posicional do eixo da Terra. O Sol teria um tamanho muito menor do que supomos e transita ora por sobre o hemisfério norte (mais interno), ora pelo hemisfério sul (mais externo), explicando a variação de temperatura. Adota-se de forma não experimental premissas (sol pequeno, movimento concêntrico ao centro da Terra) que, adotadas como verdades, confirmam a conclusão.
Aliás, foi lançado um filme sobre a “teoria” da terra plana que é muito interessante do ponto de vista antropológico (recomendação mais abaixo). São pessoas que se contentam muito com a fama que obtém, mesmo que seja de excêntricos, e, se tem um mérito, é o de ser contestadores. Nenhum conhecimento pode ser considerado confortável, e os terraplanistas fazem de fato os cientistas se exercitarem nas explicações, mesmo que entremeadas a frouxos de riso. É interessantíssimo ver como nossos anti-heróis se debatem consigo mesmos a cada vez que um experimento deles fracassa. É giroscópio, é feixe de laser, é raio de luz, tudo dá errado e esse erro é atribuído a furos na condução da experiência, e não a provas de que a tese é simplesmente errada. Tenha diante de si um mundo redondo e todas essas experiências funcionam. E é tão simples se convencer da esfericidade da Terra... Basta usar a analogia: se todos os astros semelhantes ao planetinha são em forma de globo, por que somente ele não seria?
Mas a petição de princípio não é um fenômeno simples, que é utilizado de forma simplória em pensamentos estapafúrdios. Há debates intensos em alta Filosofia da ocorrência desse erro de raciocínio. Aliás, põe alta nisso. Vou dar um exemplo de como Schopenhauer contestou a Filosofia Moral de nada mais, nada menos que Immanuel Kant, a quem considerava um mestre.
É preciso recordar que Schopenhauer tinha mesmo um jeitão de outsider, não se importando em ser politicamente correto ou simpático com quem quer que fosse. Por isso mesmo, não se furtou em acusar de petitio principii ao argumento do imperativo categórico kantiano. Bem lembramos que este nos diz que toda nossa ação ética deve ser redutível a uma sentença que possa ser aplicada universalmente. Pois bem. Kant dizia que a ética deveria ser tão racional e desprendida de elementos metafísicos quanto qualquer outro juízo poderia ser. Por isso, quando defrontados com uma situação que nos desafia, temos que ter em mente uma lógica do dever: independentemente de qualquer conotação salvífica, o ser humano tem a capacidade de fazer juízo distintivo entre o bem e o mal. Sendo assim, apesar de sua liberdade, um homem DEVE impor a si mesmo a conduta mais racional, ou seja, aquela que penda para o bem. E o imperativo categórico torna-se uma formulação que permite levar essa disposição moral à prática. Por esse motivo, a moral como valor tem a forma de uma lei e uma necessidade absoluta.
Pois muito bem. Schopenhauer diz que há um engano neste argumento. Para ele, a lógica kantiana não prescinde de uma forma teológica, partindo da premissa de que um dever é uma imposição. A ética deontológica só faz sentido se pensarmos na existência de uma prescrição, que, no final das contas, não tem como partir de outro que não seja uma espécie de instância superior, um deus. Do contrário, não é possível se falar em liberdade de escolha. Por este motivo, a ideia de que a ética se submete a leis e que tem necessidade absoluta constitui uma assunção de verdade que se presta a dar guarida ao imperativo categórico. Em miúdos, Kant assume que as leis morais são universais e necessárias. Schopenhauer, um ateu convicto e militante, entende que a lei moral absoluta não tem como existir, haja vista ser o homem, um ser natural submetido pela natureza e pela vontade que lhe guia a razão de agir, só tem os indivíduos de sua espécie como representantes da escolha ética. Estando submetida a indivíduos, que tem cada um suas razões de agir, torna-se insubsistente uma aferição empírica dessas escolhas, já que cada um o faria a partir de sua própria ação, e, sendo assim, torna-se impossível estabelecer leis de conduta. Para Schopenhauer, a lei do dever não é verdadeira, e Kant somente a utiliza para fundamentar a tese do imperativo categórico.
Não vou deixar aqui uma opinião sobre qual desses cachorros grandes está certo ou errado. Meu objetivo era só dar um exemplo clássico de petição de princípio, e demonstrar como discussões sobre argumentos não são meras birrinhas entre comadres de vila. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Primeiro, o documentário da Netflix. Não tenho como deixar de rir ao ver os fracassos de suas experiências, mas a obra contém uma grande advertência: a Ciência distanciou-se de tal forma do grande público que permitiu o surgimento desse tipo de contestação. O cientista ficou antipático, dono de um linguajar hermético e que mais parece um líder de seita. A Ciência ficou menos crível que qualquer explicação mirabolante. E, sim, isso é culpa dos cientistas. Cabe rever a posição e educar cientificamente as pessoas.
CLARK. Daniel J. A Terra é plana (Behind the curve). Filme. Estados Unidos: Netflix, 2018. Cor. 96 min.
Schopenhauer faz suas críticas a Kant na forma de ensaios, que foram coligidos na obra abaixo.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
* (um parêntese a se abrir. Sempre foi difícil de se arrumar bateristas pelo simples fato de ser um instrumento caro, mesmo os mais ordinários. Hoje em dia, há mais um agravante pelo fato da migração do povo para os apartamentos, onde as regras de silêncio são rigorosas. Em outra mão, há tanta possibilidade de se construir samples em baterias digitais que um batera em carne e osso praticamente ficou dispensável. Nesse ponto de vista, sou um absoluto reacionário).
(Pessoas, antes de começar, quero informar que fiz uma
grande confusão com essa temática há um tempo atrás, quando publiquei este
texto. Não gosto de modificar minhas postagens, prefiro que fiquem registradas
minhas impressões de acordo com a passagem do tempo. Mas aqui não se trata de
parecer ou ótica, mas de erro mesmo, que vamos dirimindo à medida em que vivemos
e aprendemos. Já fiz os ajustes necessários lá e peço desculpas a quem se
desinformou com minhas incorreções. Procurarei ter mais cuidados doravante).
Já falei muitas coisas sobre minha história neste humilde espaço, desde a minha mais tenra infância até os dias atuais, sem nenhum tipo de linearidade. Essa estrutura caótica se deve à adequação do tema da postagem ao episódio que uso, muitas vezes, para ilustrar determinado pensamento. Por isso mesmo, às vezes me repito, como farei agora. Eu já mencionei anteriormente que, em minha juventude, eu tinha o sonho de fazer carreira musical, neste e neste textos. Seguia não só o desejo de impressionar as menininhas, mas também uma tendência familiar, que gostava de se juntar à mesa para batucar velhos sambas-canções e boleros, o que faziam muito bem, especialmente meu padrinho, com um vozeirão de barítono burilado nos velhos clubes do Brás e da Mooca. Dos que nada cantavam, havia a extração do ritmo, utilizando caixinhas de fósforo e latinhas vazias à guisa de agogô. Os mais arrítmicos eram eu e meu pai. O velho nem tentava acompanhar, sabedor da inépcia de seu compasso, mas eu, criança inconveniente, queria participar da roda por toda lei, mas atrapalhava mais do que abelha no chá de gengibre. Davam a mim um ralador de queijo e uma colher de pau, para simular um reco-reco, e com isso eu me divertia iludido.
Anos mais tarde, é com esse painel que minha mãe aceitou, com um misto de desânimo e indulgência, o pedido de me disponibilizar o velho violão que ficava guardado no guarda-roupa de meu já falecido avô, pouco confiante na minha capacidade de transformar em música a minha conhecida impaciência. Sozinho, eu mostrava uma faceta que até eu mesmo desconhecia até então, a de me compenetrar no aprendizado e entender coisas por si só. E, dessa forma, comecei a tocar uma coisinha ou outra, com a pouca técnica que me caracteriza até hoje. Quebra um galho nos parques da vida, ao pé de uma árvore, cantando canções que todo mundo conhece na minha geração.
Mas eu não estava contente com as mesas da família. Eu queria me aperfeiçoar um pouco, e, ao menos, aprender a afinar meu próprio instrumento. Por isso não me considero completamente autodidata: fiz umas quatro aulas de teoria com um amigo, o Nivaldo. É desse pequeno, porém proveitoso aprendizado que comecei não só a afinar, mas também a dedilhar e usar palheta. O resto foi por minha conta e das revistinhas de cifras.
Outra coisa que eu aprendi com meu camarada representou uma virada em minha incipiente carreira: um contrabaixo possuía uma afinação correspondente às quatro últimas cordas do violão. Já trabalhando, fiz o primeiro crediário da minha vida: um baixo Retson e um amplificador Check Mate. O primeiro era pouco mais que uma tábua com cordas, e o segundo tinha o colorido sonoro de um radinho de pilhas, mas eu fiquei exultante com minhas aquisições, e após pouquíssimo tempo de adaptação, já fui me candidatar a fazer parte de alguma bandinha que quisesse arriscar a sorte.
Foram poucas as tentativas antes de concluir que eu não ia para lugar algum, e que o melhor a fazer era me dedicar à faculdade. Na primeira foi o Carnívoro, que, apesar do nome thrash metal, era um power trio em que tocávamos velhos hard rocks da década de 70, e onde aprendi também a tocar bateria. Acabou rápido, com a mudança dos irmãos guitarrista e baterista para uma cidade do interior, deixando-me a pé. Depois, fui para um conjunto que formamos após uma jam de tarde de domingo. Um pessoal mais completo, já com duas guitarras e um vocalista, mais voltados para o emergente pós-punk, cujo nome era Tropa de Choque. Participamos de alguns festivais e arrumamos dois barzinhos para tocar, todos nós com documentos devidamente falsificados. Desisti quando o rumo da galera estava mais dirigido para substâncias do que para música. Fui então tocar com um grupo já formado, o Sentença de Fogo, que tinha um problema curioso: tinham uma bateria, mas não tinham baterista. Explico. O baixista era, ele mesmo, o proprietário do instrumento de percussão. Como aqueles homens-banda ainda eram fenômenos de circo, já era preciso arrumar quem assumisse o papel de baterista. Eu fui um belo dia para assisti-los e acabei resolvendo dois problemas, assumindo o posto de baterista e também de vocalista, já com o compromisso de ceder os postos assim que conseguissem quem os fizessem – o que eu queria mesmo era continuar tocando meu baixo. É que há problemas em ser vocal e batera ao mesmo tempo. Primeiro, a pouca mobilidade. A não ser no intimismo de uma bossa nova, é esperado de um vocalista que haja muita interação com o público, o que não é muito possível para quem está sentado em um banquinho, atrás de uma parede de tambores. E há também a questão da dificuldade de se tocar e cantar ao mesmo tempo. Exceção feita a poucos gênios, dá para cantar e tocar confortavelmente apenas nos grooves. Na hora das viradas, vira um embolo só. As opções não são animadoras - ou se evitam performances arrojadas, tirando a graça da condução, ou se fazem vocalizações extremamente simples, tornando o resultado final eternamente ingênuo. Quem dera eu fosse Peter Hoorelbeke ou Lee Kerslake para conseguir fazê-lo com tanta maestria, mas eu sou eu. A coisa acabou uns seis meses depois, da forma que eu falei: com o recrutamento de um baterista*, minha missão acabou naquela casa.
Isso tudo levou poucos anos, mas me deu uma certa carguinha de experiência, de modo a permitir voos pouca coisa mais altos, as bandas Mosaico e Exílio. Da primeira, uma experiência no progressivo, com um quarteto de baixo, bateria, guitarra e flauta, poucos vocais e com muita incursão pelo jazz. Por incrível que pareça, a banda nasceu para musicar uma peça infantil!!! A trupe que a encenava era a personificação da piração na batatinha, todos amadores com um jeitão meio hippie, meio rastafari. Era um musical do tipo proteção à natureza, onde os personagens cantavam músicas realmente etéreas, e havia um punk malvadão que queria destruir tudo. Nada de novidades, a não ser a intenção de se usar músicas muito mais sofisticadas. Eles usavam músicas em background e faziam dublagens, e o projeto era ter uma banda ao vivo. No caso, nós.
A coisa não deu muito certo. Primeiro, porque a peça era ruim para caralho. Depois, porque criar as músicas no tempo que os atores queriam era coisa infactível. Por fim, a casa dos ensaios recendia a maconha, o que, na época, ainda era uma chave de cadeia daquelas. A casa era de um casal que tinha erva por todos os potes… eles fumavam sem parar, e todas as vezes que íamos lá, ficávamos se borrando todos, esperando a batida dos hômi na porta. Depois, ainda tocamos juntos por um tempo, mais para fins recreativos, até cada um ir para seu lado.
Minha experiência mais séria veio antes disso. Estando "desempregado" do Sentença, fui convidado para fazer parte de uma banda cover do Raul Seixas. A coisa não rolou, por conta da ruindade da galera, mas o batera era promissor e propus a ele um empreendimento novo, só com composições próprias. Eu, Maurício, Moacir e Edson éramos os gajos. Um conjunto clássico de duas guitarras, baixo, bateria e todo mundo no coral. Fazíamos algo próximo do hardão setentista, obtendo distorções mais sobrecarregando as válvulas do que usando pedaleiras (até por conta da limitação dos recursos). Nossas letras falavam essencialmente sobre angústia e desejo de liberdade, com uma boa dose de poesia e filosofia.
O processo criativo tinha um esqueleto fundamental. Basicamente, algum de nós trazia um tema melódico e ficávamos brincando por horas em cima do mesmo, até que dele saísse um arranjo melhor elaborado. Um tempo depois, já com a música consolidada, algum de nós criava uma letra e inseria as partes em dueto. E esse era o "processo produtivo" mais comum – primeiro a música, depois a letra, e por fim a cerejinha do bolo: o nome da tal canção.
Evidentemente, essa ordem poderia ser subvertida. Às vezes, uma boa poesia podia nascer, pedindo para ser musicada. Por vezes, era fácil de encaixar uma melodia que nascesse igualmente de forma autônoma, mas o mais usual era que houvesse problemas, tendo a necessidade de se fazer adaptações, cortando algumas sílabas aqui, umas palavras ali, frases inteiras acolá. Dificilmente era necessário fazer ajustes quando a música nascia primeiro.
Mas havia casos de inversão mais radical, onde a trabalheira (e a sensação de “forçação”) era mais acentuada. Isso ocorria quando a obra começava pelo fim, ou seja, pelo título. Em alguns casos, isso era compreensível. É o que aconteceu com a música tema da banda, que não poderia ser outro a não ser "Exílio", ora pois. Era um rockão com baixo marcapasso bem socado e muito bumbo, e uma pá de acordes dissonantes, que ia variando de andamento, passando para um cavalgado levado só no power chord e meu vocal rasgado: "exilado, solitário, essa é a minha sina…". Putz, pensando bem, era uma PUTA música. Não tinha nada de delicada e chamava muito na emoção, principalmente na hora do solo. Mas esse, como eu disse, era um caso de exceção. Músicas como “Garoa na Serra”, “Todos os Caminhos Levam à Alvorada” e “Muito Além do Porto” eram apenas bons nomes, que, se viraram músicas decentes, foi mais pela via do improvável. Isso porque as coisas têm um caminho mais ou menos certo a seguir, e tudo o que foge a essa rota tem cara de casa que começou a partir do teto.
Bom… isso não é problema de maiores consequências quando falamos de arte, mas eu gastei todo esse português porque eu queria demonstrar que há um sentido certo nas coisas, e que quando não o seguimos podemos ter problemas. Não fosse assim, não haveria razão para utilizarmos metodologias, o que nos leva de imediato a lembrar de pesquisa acadêmica, em especial a científica. Por este motivo, há alguma coisa de errado quando tentamos fazer a coisa ao contrário.
O desenvolvimento de uma proposição segue um rito. A partir da observação de um fenômeno qualquer, que nos desperte a curiosidade e que clame por explicação, buscamos coincidências, repetições e anterioridades que nos permitam formular uma hipótese. Porque aconteceu isso, aquilo e o outro, o desfecho foi tal. Depois disso, procuramos testar essa hipótese, obtendo dados e mais dados que a corroborem ou refutem. Quando pensamos no silogismo aristotélico, esse é o espaço em que formaremos as premissas, e delas extrairemos as conclusões. É assim que funciona. Eu só tenho conclusões se eu tenho dados que confirmem minhas premissas.
Só que essa técnica não é especialmente boa para quem tenha uma conclusão que é tida como verdade absoluta. Em um sentido normal, que parte das premissas para a conclusão, não há nada de errado se essa última não se confirmar. O que acontece, neste caso, é que mudamos a conclusão e pronto. Só que isso pode confrontar aquilo que está descrito em um livro sagrado, e aí temos gasolina no incêndio. As pessoas dificilmente abandonam o conforto de suas convicções, mesmo confrontadas com uma realidade muito divergente de suas crenças. É o que já falei neste texto, por exemplo.
Esse mecanismo funciona terrivelmente bem com religiões que têm suas verdades prontas e que não podem ser mudadas. Tem-se uma conclusão, e procura-se adequar as premissas de acordo com ela. O rito é modificado, é invertido. Na Ciência, obtemos dados para tirarmos conclusões; na Religião, temos conclusões, e procuramos dados que as corroborem. Veja-se Evolução, veja-se idade da Terra, veja-se surgimento da vida. Veja-se tantas e tantas outras.
Isso funciona com absolutamente qualquer religião? É claro que não. O Catolicismo, por exemplo, convive muito bem com teorias como o Big Bang e o Evolucionismo. Deus é o motor que lhes toca e pronto. Mas há gente que é muito mais literalista, e que precisa cumprir seus escritos ipsis litteris, sem tirar nem pôr. Para isso, dentre outras, praticam uma falha argumentativa denominada petitio principii, a petição de princípio. Isso funciona aplicando-se nas premissas os mesmos valores que se aplicam à conclusão, ou seja, a conclusão já é apresentada como verdadeira em uma das premissas do argumento. É um final (conclusão) que demanda um ponto de origem, uma explicação que lhe dê sentido, que pede um princípio. Um belo exemplo está nos nossos divertidos terraplanistas, que inferem, por exemplo, que as estações do ano não podem ser explicadas pela variação posicional do eixo da Terra. O Sol teria um tamanho muito menor do que supomos e transita ora por sobre o hemisfério norte (mais interno), ora pelo hemisfério sul (mais externo), explicando a variação de temperatura. Adota-se de forma não experimental premissas (sol pequeno, movimento concêntrico ao centro da Terra) que, adotadas como verdades, confirmam a conclusão.
Aliás, foi lançado um filme sobre a “teoria” da terra plana que é muito interessante do ponto de vista antropológico (recomendação mais abaixo). São pessoas que se contentam muito com a fama que obtém, mesmo que seja de excêntricos, e, se tem um mérito, é o de ser contestadores. Nenhum conhecimento pode ser considerado confortável, e os terraplanistas fazem de fato os cientistas se exercitarem nas explicações, mesmo que entremeadas a frouxos de riso. É interessantíssimo ver como nossos anti-heróis se debatem consigo mesmos a cada vez que um experimento deles fracassa. É giroscópio, é feixe de laser, é raio de luz, tudo dá errado e esse erro é atribuído a furos na condução da experiência, e não a provas de que a tese é simplesmente errada. Tenha diante de si um mundo redondo e todas essas experiências funcionam. E é tão simples se convencer da esfericidade da Terra... Basta usar a analogia: se todos os astros semelhantes ao planetinha são em forma de globo, por que somente ele não seria?
Mas a petição de princípio não é um fenômeno simples, que é utilizado de forma simplória em pensamentos estapafúrdios. Há debates intensos em alta Filosofia da ocorrência desse erro de raciocínio. Aliás, põe alta nisso. Vou dar um exemplo de como Schopenhauer contestou a Filosofia Moral de nada mais, nada menos que Immanuel Kant, a quem considerava um mestre.
É preciso recordar que Schopenhauer tinha mesmo um jeitão de outsider, não se importando em ser politicamente correto ou simpático com quem quer que fosse. Por isso mesmo, não se furtou em acusar de petitio principii ao argumento do imperativo categórico kantiano. Bem lembramos que este nos diz que toda nossa ação ética deve ser redutível a uma sentença que possa ser aplicada universalmente. Pois bem. Kant dizia que a ética deveria ser tão racional e desprendida de elementos metafísicos quanto qualquer outro juízo poderia ser. Por isso, quando defrontados com uma situação que nos desafia, temos que ter em mente uma lógica do dever: independentemente de qualquer conotação salvífica, o ser humano tem a capacidade de fazer juízo distintivo entre o bem e o mal. Sendo assim, apesar de sua liberdade, um homem DEVE impor a si mesmo a conduta mais racional, ou seja, aquela que penda para o bem. E o imperativo categórico torna-se uma formulação que permite levar essa disposição moral à prática. Por esse motivo, a moral como valor tem a forma de uma lei e uma necessidade absoluta.
Pois muito bem. Schopenhauer diz que há um engano neste argumento. Para ele, a lógica kantiana não prescinde de uma forma teológica, partindo da premissa de que um dever é uma imposição. A ética deontológica só faz sentido se pensarmos na existência de uma prescrição, que, no final das contas, não tem como partir de outro que não seja uma espécie de instância superior, um deus. Do contrário, não é possível se falar em liberdade de escolha. Por este motivo, a ideia de que a ética se submete a leis e que tem necessidade absoluta constitui uma assunção de verdade que se presta a dar guarida ao imperativo categórico. Em miúdos, Kant assume que as leis morais são universais e necessárias. Schopenhauer, um ateu convicto e militante, entende que a lei moral absoluta não tem como existir, haja vista ser o homem, um ser natural submetido pela natureza e pela vontade que lhe guia a razão de agir, só tem os indivíduos de sua espécie como representantes da escolha ética. Estando submetida a indivíduos, que tem cada um suas razões de agir, torna-se insubsistente uma aferição empírica dessas escolhas, já que cada um o faria a partir de sua própria ação, e, sendo assim, torna-se impossível estabelecer leis de conduta. Para Schopenhauer, a lei do dever não é verdadeira, e Kant somente a utiliza para fundamentar a tese do imperativo categórico.
Não vou deixar aqui uma opinião sobre qual desses cachorros grandes está certo ou errado. Meu objetivo era só dar um exemplo clássico de petição de princípio, e demonstrar como discussões sobre argumentos não são meras birrinhas entre comadres de vila. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Primeiro, o documentário da Netflix. Não tenho como deixar de rir ao ver os fracassos de suas experiências, mas a obra contém uma grande advertência: a Ciência distanciou-se de tal forma do grande público que permitiu o surgimento desse tipo de contestação. O cientista ficou antipático, dono de um linguajar hermético e que mais parece um líder de seita. A Ciência ficou menos crível que qualquer explicação mirabolante. E, sim, isso é culpa dos cientistas. Cabe rever a posição e educar cientificamente as pessoas.
CLARK. Daniel J. A Terra é plana (Behind the curve). Filme. Estados Unidos: Netflix, 2018. Cor. 96 min.
Schopenhauer faz suas críticas a Kant na forma de ensaios, que foram coligidos na obra abaixo.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
* (um parêntese a se abrir. Sempre foi difícil de se arrumar bateristas pelo simples fato de ser um instrumento caro, mesmo os mais ordinários. Hoje em dia, há mais um agravante pelo fato da migração do povo para os apartamentos, onde as regras de silêncio são rigorosas. Em outra mão, há tanta possibilidade de se construir samples em baterias digitais que um batera em carne e osso praticamente ficou dispensável. Nesse ponto de vista, sou um absoluto reacionário).
Nenhum comentário:
Postar um comentário