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segunda-feira, 3 de julho de 2017

Navegar é preciso viver - 4ª ancoragem: Sapucaí-Mirim e alguns conceitos de Arquitetura (que não conheço bem)

Olá!


Como disse no meu texto anterior, pegamos uma virada de tempo imprópria no dia em que cismamos de ir à São Bento do Sapucaí. Óbvio que isso reduziu em muito as possibilidades de rolê que tínhamos em mente. O mesmo continuou a acontecer quando fomos à cidade de Sapucaí-Mirim, dentro das dependências do estado de Minas Gerais.


É curioso o que acontece para acessar essa localidade. Saindo de Santo Antonio do Pinhal, chega-se à divisa com MG, entrando neste estado por Sapucaí-mirim. Rumando por esse mesmíssimo caminho, sem fazer um único desvio, volta-se ao estado de São Paulo, agora em São Bento do Sapucaí. Ou seja, a cidade é um enclave entre duas cidades paulistas, sem pertencer ao estado. Coisas de nossa geografia.

Nosso intuito era procurar dois locais específicos, enfiados no mato. A Pedra do Jair, um maciço rochoso que propicia um belo mirante, e a Pedra do Pião, uma estranha formação de duas rochas, uma sobre a outra, sem nenhum tipo de sustentáculo, com uma cachoeira próxima. Mas a visão que tínhamos é a que mostro abaixo, o que faria da empreitada um desperdício.


Sem tanta coisa para fazer, fomos tratar de nos alimentar com as trutas clássicas na região, além de um bom chopp. Não sei se é produzido na região, o que faz subentender o nome impresso no caneco. É de razoável para bom, ou seja, quebrou bem o nosso galho.


Sapucaí, aliás, é o nome do rio que cruza a cidade. Em bom indígena, significa “água de sapucaia”. Não explica tanta coisa assim, né? Pois é. Mas a tal da sapucaia é uma árvore típica de região, que produz uma grande castanha. O nome significa algo como “fruto que abre os olhos”. Este rio corta a cidade em dois, vindo da serra próxima. Na altura da área urbana, há alguns despejos que me preocupam.


Por outro lado, as margens estavam repletas de flores que têm o tamanho e a cor de girassóis, mas o formato de margaridas, muito bonitas. Se alguém pude me informar o nome das ditas cujas, agradecerei profundamente.


A clássica praça do coreto é bem convidativa, mas estava ensopada a ponto de não sobrar nem para um sorvete.


Neste caso, o melhor a fazer é dar um pulo nas estradinhas para encontrar algumas curiosidades menos aventureiras. E não se perde tempo com isso: estamos em Minas, terra da comida em abundância e da bebida danada. Um caso clássico é uma espécie de broa assada dentro de uma folha de caeté. Para quem não conhece, parece uma bananeira que não dá banana, mas uma outra espécie de penca multicolorida, com o feio nome de Helicônia. Aliás, são parentes. O acepipe é uma delícia, e é chamado de pau-a-pique.


Nosso imaginário ligado à culinária mineira sempre nos faz pensar não somente no leite e nos porcos, mas também nos legumes e outros vegetais. A abóbora abaixo a gente costumava chamar de “menina”, ou, como dizem por estes lados, “de pescoço”.


A profusão de doces de frutas e de leite está espalhada nas prateleiras e nas mesas. Diabético não tem vez nessas plagas.


Um detalhe não remunerado na mão da patroa: doce de jaca. Não chega a ser uma raridade nas cidades grandes, mas não é fácil de achar. No petisqueiro para experimentar, este foi o meu pior pecado glicêmico.


Outra coisa comum são as conservas, inclusive (e principalmente) as pimentas. Não é, definitivamente, um lugar para os fracos...


... o que mais uma vez é comprovado no espaço destinado às cachaças, que também não podiam faltar. Como se sabe, o sul de Minas é uma região bastante rica em alambiques.


Faltou falar da igrejona, né? Deixei para o final porque ela provocará o tema central deste texto. A igreja de Sant’Ana, dedicada à senhora genitora de Santa Maria, a mãe de Jesus Cristo, é o centro visível ao longe da área urbana de Sapucaí-mirim, cujo adro é composto por uma praça, e o fundo por outra.


É uma igreja simples, de estilo arquitetônico austero, que possui um conjunto que me chamou bastante atenção: as três Marias que choram aos pés do Cristo morto na cruz.


Talvez à distância as peças não chamem mais a atenção do que tantas outras que vemos por aí, mas a riqueza de detalhes me causou um interesse, não pela sua complexidade, mas pela precisão. Observem, por exemplo, o realismo nos pés das santas (admito a péssima qualidade da foto).


E o crucifixo acima das três Marias é esse. Olhado por este ângulo, que faz confundir se está em posição vertical ou horizontal, causa uma impressão incômoda de correspondência com a realidade.


São coisas da arquitetura, a mais dúbia das artes. Digo isso porque, desde jovem, tive dificuldade em encaixar o conceito de arte à praticidade da arquitetura. Lembro uma vez que, em uma aula de Educação Artística, falávamos sobre o tema “belas-artes”, termo consagrado à arte como expressão da beleza, sem se preocupar com qualquer outro propósito. No meio da enumeração, lá estava a tal da arquitetura, que, ao que me parece, trata de espaços habitáveis. Por si só, isso já denota outro objetivo que não é meramente estético. Alguém levantou o questionamento, que a professora Lúcia reputou como dúvida sua também.

Aliás, essa história de catalogar o que é arte e o que não é vem imbuída daquela velha sanha arbitrária que nós, humanos, costumamos aplicar a tudo. Já escrevi sobre a questão da arte útil neste texto, e não vou ficar discutindo-a novamente. Aqui, no caso, a briga é mais profunda, porque é fácil confundir arquitetura com engenharia.

Uma antiga anedota diz que os arquitetos odeiam os engenheiros, reputando-os por “insensíveis”. Já os engenheiros detestam os arquitetos, considerando-os “afrescalhados”. E os pedreiros, aqueles que literalmente metem a mão na massa, não gostam dos dois, porque enquanto brigam, o concreto seca.

É que a principal distinção entre ambos está no seguinte: enquanto o arquiteto está preocupado em “o que fazer”, o engenheiro se ocupa em “como fazer”. Há uma precedência da arquitetura, por conseguinte. Se o engenheiro projetar uma obra sem seguir os ditames de um profissional da arquitetura, estará ele mesmo sendo o arquiteto, mesmo que não volte sua consciência para tanto. Temos então, que a arquitetura pensa o edifício em seu aspecto artístico, e a engenharia em seu aspecto estrutural.

Ora, bem... deixemos as discussões para lá e partamos para as definições. A arquitetura é a arte que tem por objetivo aplicar princípios estéticos ao espaço em que o ser humano vive. É claro que não há sentido em falar na arquitetura das cavernas, mas, mesmo lá, o homem já procurava organizar o espaço disponível, utilizando rochas, madeiras e outros materiais de forma a lhe serem mais úteis (e aqui já podemos incluir a decoração de ambientes como filha direta da arquitetura).

O que fez com que o habitáculo se transformasse em obra arquitetônica foi justamente a intenção estética. Um quadrinho, uma corzinha, um enfeitezinho sem relação direta qualquer com a praticidade da coisa, apenas pelo fato de ser belo modifica o sentido da construção, e talvez daí tenhamos a resposta à professora Lúcia e ao colega incerto e não sabido. É somente a partir da motivação do prazer que chegamos à obra de arte. O espaço em si não precisa ter proposta estética, mas é justamente esse o impulso que diferencia um ambiente projetado de um ambiente meramente natural. Podemos dizer que a natureza é bela e contemplativa, mas não é uma obra de arte. A inserção de talento humaniza o mundo em que vivemos, não pela surrada definição de vida ética, mas pela capacidade de se obter prazer.

O termo arquitetura nasce do grego architekton, que, por sua vez, é a fusão das palavras árchein, que significa origem (lembram do meu texto sobre a arché?) e tékton, criação ou construção. Dessa forma, a palavra arquitetura nasce com o significado de “ofício da construção original”.

Essa definição dá ao termo todo um campo para metáforas, como “arquitetar um plano”, “o supremo arquiteto do universo” e outras bossas, mas o fato é que o arquiteto trabalha com uma arte plástica tridimensional, como a escultura da qual é prima-irmã, mas que, como fator de diferenciação, está a possibilidade de uso humano. Em uma exemplificação quase trocista, há mais arquitetura em um barraco de favela do que nos templos gregos, se mantivermos uma definição fechada, pelo simples fato de serem considerados moradias dos deuses, sempre lembrando que nenhuma celebração era realizada em seu interior.

Não é o caso das igrejas abraâmicas. Estas têm em seu histórico a guarda de objetos sagrados, mas não de habitação divina, muito embora, no caso específico dos católicos, creia-se em uma presença real de Jesus na eucaristia, que fica armazenada em espaços chamados “tabernáculos”. Suas naves são espaços celebrativos, portanto são áreas de uso antropológico, e arquitetônicos por excelência.

Acontece que meu conhecimento arquitetônico se aproxima do rasteiro e tenho imensa dificuldade em reconhecer estilos. No caso da igreja de Sant’Ana, sei se tratar de um colonial tardio, pela época em que foi erigida, mas não consegui distinguir corretamente a qual escola pertence. Dada à simplicidade de suas linhas, não se trata de mais uma dentre tantas igrejas barrocas espalhadas por nossas cidades históricas. O Barroco prima pela quantidade de detalhes, onde o entorno é tão importante quanto o foco principal. O nicho de um santo, por exemplo, será tanto ou mais ornamentado que a própria imagem, dando um efeito cenográfico ao conjunto. Já o Rococó, a exacerbação do Barroco, chega a causar náusea de tantos penduricalhos. O excesso no detalhe praticamente extingue a compreensão do contexto que busca retratar. Está muito longe de ser o que vemos aqui.

Outra escola colonial largamente utilizada no Brasil, o Neoclassicismo, também parece não se aplicar aqui. Esta escola se caracteriza por uma simplificação dos desvarios barrocos, e que acaba por transparecer mais solidez. No caso, parece que voltamos a perceber que a igreja é um prédio, enquanto no Barroco há o entendimento de que é um suporte para outras manifestações artísticas. O Neoclássico traz de volta as colunas gregas, encimados por capitéis jônicos ou dóricos, com preocupação focada na ocupação frontal, o que dá sensação de privilégio na largura da obra. Não é o caso da igreja que tenho à minha frente.
Ecletismo e Art Noveau também são comuns em terra brasilis, mas são posteriores à construção da matriz de Sapucaí-mirim, e, a não ser que tenhamos um exercício de profetismo arquitetônico, não são possíveis de serem aplicadas.

A escola da qual mais encontrei semelhanças com esse templo é o Maneirismo. Considerado a princípio uma degeneração do estilo clássico, o Maneirismo dá mais importância ao estilo peculiar do projetista do que a um cânon preestabelecido. Importa aqui a maneira pessoal de se manifestar (maniera, em italiano), daí o nome. No entanto, ao contrário do que essa característica poderia fazer supor, o Maneirismo possui alguns elementos básicos, que, em geral, batem com a igreja de Sant’Ana.

O estilo é bem mais simplificado que os demais, privilegiando os aspectos exteriores, enquanto a decoração interna é bastante espartana. Os frontões são geométricos, com o uso de estruturas triangulares. O jogo de luzes das janelas faz com que a iluminação interior seja contrastante, o que é facilmente perceptível na boa entrada de luz do altar e na precariedade da passagem imediata do pórtico. Há uma tendência em dar mais ênfase no eixo longitudinal, justamente para tornar mais factível essa composição de iluminações.

Percebi algumas discrepâncias, porém. A torre alta e centralizada não me parece típica, e os reforços das arestas, apesar de presentes, não tem o aspecto de dupla coluna que é relativamente comum na escola maneirista. Repetindo: apesar de seguir uma linha-mestra, o Maneirismo dá mais liberdade ao autor, não possuindo um “manual de instruções” tão rígido quanto nos demais estilos.

Mas eu não tenho conhecimento suficiente para enquadrá-la. Como não há nenhuma informação no site da prefeitura ou da diocese, resolvi fazer esse exercício. Se algum leitor versado nessa arte puder destrinchar o frango da minha ignorância, farei questão de adendar este texto, penhorada e antecipadamente agradecido, ainda que não seja costume meu fazer alterações pós-publicação.

Recomendação de visitação:


Aqui na cidade de São Paulo, é realizada, ano sim, ano não, a Bienal de Arquitetura. E este é ano sim!!! Deverá ser realizada, segundo seus organizadores, de outubro a dezembro. Mas ainda há muitas coisas por fechar. Portanto, recomendo que vocês acompanhem as notícias e visitem os espaços disponibilizados. 

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