Olá!
Como disse no meu texto anterior, pegamos uma virada de
tempo imprópria no dia em que cismamos de ir à São Bento do Sapucaí. Óbvio que
isso reduziu em muito as possibilidades de rolê que tínhamos em mente. O mesmo
continuou a acontecer quando fomos à cidade de Sapucaí-Mirim, dentro das
dependências do estado de Minas Gerais.
É curioso o que acontece para acessar essa localidade.
Saindo de Santo Antonio do Pinhal, chega-se à divisa com MG, entrando neste
estado por Sapucaí-mirim. Rumando por esse mesmíssimo caminho, sem fazer um
único desvio, volta-se ao estado de São Paulo, agora em São Bento do Sapucaí.
Ou seja, a cidade é um enclave entre duas cidades paulistas, sem pertencer ao
estado. Coisas de nossa geografia.
Nosso intuito era procurar dois locais específicos, enfiados
no mato. A Pedra do Jair, um maciço rochoso que propicia um belo mirante, e a
Pedra do Pião, uma estranha formação de duas rochas, uma sobre a outra, sem
nenhum tipo de sustentáculo, com uma cachoeira próxima. Mas a visão que
tínhamos é a que mostro abaixo, o que faria da empreitada um desperdício.
Sem tanta coisa para fazer, fomos tratar de nos alimentar
com as trutas clássicas na região, além de um bom chopp. Não sei se é produzido
na região, o que faz subentender o nome impresso no caneco. É de razoável para
bom, ou seja, quebrou bem o nosso galho.
Sapucaí, aliás, é o nome do rio que cruza a cidade. Em bom
indígena, significa “água de sapucaia”. Não explica tanta coisa assim, né? Pois
é. Mas a tal da sapucaia é uma árvore típica de região, que produz uma grande
castanha. O nome significa algo como “fruto que abre os olhos”. Este rio corta
a cidade em dois, vindo da serra próxima. Na altura da área urbana, há alguns
despejos que me preocupam.
Por outro lado, as margens estavam repletas de flores que têm
o tamanho e a cor de girassóis, mas o formato de margaridas, muito bonitas. Se
alguém pude me informar o nome das ditas cujas, agradecerei profundamente.
A clássica praça do coreto é bem convidativa, mas estava
ensopada a ponto de não sobrar nem para um sorvete.
Neste caso, o melhor a fazer é dar um pulo nas estradinhas
para encontrar algumas curiosidades menos aventureiras. E não se perde tempo
com isso: estamos em Minas, terra da comida em abundância e da bebida danada.
Um caso clássico é uma espécie de broa assada dentro de uma folha de caeté.
Para quem não conhece, parece uma bananeira que não dá banana, mas uma outra
espécie de penca multicolorida, com o feio nome de Helicônia. Aliás, são
parentes. O acepipe é uma delícia, e é chamado de pau-a-pique.
Nosso imaginário ligado à culinária mineira sempre nos faz
pensar não somente no leite e nos porcos, mas também nos legumes e outros
vegetais. A abóbora abaixo a gente costumava chamar de “menina”, ou, como dizem
por estes lados, “de pescoço”.
A profusão de doces de frutas e de leite está espalhada nas
prateleiras e nas mesas. Diabético não tem vez nessas plagas.
Um detalhe não remunerado na mão da patroa: doce de jaca.
Não chega a ser uma raridade nas cidades grandes, mas não é fácil de achar. No
petisqueiro para experimentar, este foi o meu pior pecado glicêmico.
Outra coisa comum são as conservas, inclusive (e
principalmente) as pimentas. Não é, definitivamente, um lugar para os fracos...
... o que mais uma vez é comprovado no espaço destinado às
cachaças, que também não podiam faltar. Como se sabe, o sul de Minas é uma
região bastante rica em alambiques.
Faltou falar da igrejona, né? Deixei para o final porque ela
provocará o tema central deste texto. A igreja de Sant’Ana, dedicada à senhora
genitora de Santa Maria, a mãe de Jesus Cristo, é o centro visível ao longe da
área urbana de Sapucaí-mirim, cujo adro é composto por uma praça, e o fundo por
outra.
É uma igreja simples, de estilo arquitetônico austero, que
possui um conjunto que me chamou bastante atenção: as três Marias que choram
aos pés do Cristo morto na cruz.
Talvez à distância as peças não chamem mais a atenção do que
tantas outras que vemos por aí, mas a riqueza de detalhes me causou um
interesse, não pela sua complexidade, mas pela precisão. Observem, por exemplo,
o realismo nos pés das santas (admito a péssima qualidade da foto).
E o crucifixo acima das três Marias é esse. Olhado por este
ângulo, que faz confundir se está em posição vertical ou horizontal, causa uma
impressão incômoda de correspondência com a realidade.
São coisas da arquitetura, a mais dúbia das artes. Digo isso
porque, desde jovem, tive dificuldade em encaixar o conceito de arte à
praticidade da arquitetura. Lembro uma vez que, em uma aula de Educação
Artística, falávamos sobre o tema “belas-artes”, termo consagrado à arte como
expressão da beleza, sem se preocupar com qualquer outro propósito. No meio da
enumeração, lá estava a tal da arquitetura, que, ao que me parece, trata de
espaços habitáveis. Por si só, isso já denota outro objetivo que não é
meramente estético. Alguém levantou o questionamento, que a professora Lúcia
reputou como dúvida sua também.
Aliás, essa história
de catalogar o que é arte e o que não é vem imbuída daquela velha sanha
arbitrária que nós, humanos, costumamos aplicar a tudo. Já escrevi sobre a
questão da arte útil neste texto, e não vou ficar discutindo-a
novamente. Aqui, no caso, a briga é mais profunda, porque é fácil confundir
arquitetura com engenharia.
Uma antiga anedota diz que os arquitetos odeiam os
engenheiros, reputando-os por “insensíveis”. Já os engenheiros detestam os
arquitetos, considerando-os “afrescalhados”. E os pedreiros, aqueles que
literalmente metem a mão na massa, não gostam dos dois, porque enquanto brigam,
o concreto seca.
É que a principal distinção entre ambos está no seguinte:
enquanto o arquiteto está preocupado em “o que fazer”, o engenheiro se ocupa em
“como fazer”. Há uma precedência da arquitetura, por conseguinte. Se o
engenheiro projetar uma obra sem seguir os ditames de um profissional da
arquitetura, estará ele mesmo sendo o arquiteto, mesmo que não volte sua
consciência para tanto. Temos então, que a arquitetura pensa o edifício em seu
aspecto artístico, e a engenharia em seu aspecto estrutural.
Ora, bem... deixemos as discussões para lá e partamos para
as definições. A arquitetura é a arte que tem por objetivo aplicar princípios
estéticos ao espaço em que o ser humano vive. É claro que não há sentido em
falar na arquitetura das cavernas, mas, mesmo lá, o homem já procurava
organizar o espaço disponível, utilizando rochas, madeiras e outros materiais
de forma a lhe serem mais úteis (e aqui já podemos incluir a decoração de
ambientes como filha direta da arquitetura).
O que fez com que o habitáculo se transformasse em obra
arquitetônica foi justamente a intenção estética. Um quadrinho, uma corzinha,
um enfeitezinho sem relação direta qualquer com a praticidade da coisa, apenas
pelo fato de ser belo modifica o sentido da construção, e talvez daí tenhamos a
resposta à professora Lúcia e ao colega incerto e não sabido. É somente a
partir da motivação do prazer que chegamos à obra de arte. O espaço em si não
precisa ter proposta estética, mas é justamente esse o impulso que diferencia um
ambiente projetado de um ambiente meramente natural. Podemos dizer que a
natureza é bela e contemplativa, mas não é uma obra de arte. A inserção de
talento humaniza o mundo em que vivemos, não pela surrada definição de vida
ética, mas pela capacidade de se obter prazer.
O termo arquitetura nasce do grego architekton, que, por sua vez, é a fusão das palavras árchein, que significa origem (lembram
do meu texto sobre a arché?) e tékton,
criação ou construção. Dessa forma, a palavra arquitetura nasce com o
significado de “ofício da construção original”.
Essa definição dá ao termo todo um campo para metáforas,
como “arquitetar um plano”, “o supremo arquiteto do universo” e outras bossas,
mas o fato é que o arquiteto trabalha com uma arte plástica tridimensional,
como a escultura da qual é prima-irmã, mas que, como fator de diferenciação,
está a possibilidade de uso humano. Em uma exemplificação quase trocista, há
mais arquitetura em um barraco de favela do que nos templos gregos, se
mantivermos uma definição fechada, pelo simples fato de serem considerados
moradias dos deuses, sempre lembrando que nenhuma celebração era realizada em
seu interior.
Não é o caso das igrejas abraâmicas. Estas têm em seu
histórico a guarda de objetos sagrados, mas não de habitação divina, muito
embora, no caso específico dos católicos, creia-se em uma presença real de
Jesus na eucaristia, que fica armazenada em espaços chamados “tabernáculos”. Suas
naves são espaços celebrativos, portanto são áreas de uso antropológico, e
arquitetônicos por excelência.
Acontece que meu conhecimento arquitetônico se aproxima do
rasteiro e tenho imensa dificuldade em reconhecer estilos. No caso da igreja de
Sant’Ana, sei se tratar de um colonial tardio, pela época em que foi erigida,
mas não consegui distinguir corretamente a qual escola pertence. Dada à
simplicidade de suas linhas, não se trata de mais uma dentre tantas igrejas
barrocas espalhadas por nossas cidades históricas. O Barroco prima pela
quantidade de detalhes, onde o entorno é tão importante quanto o foco
principal. O nicho de um santo, por exemplo, será tanto ou mais ornamentado que
a própria imagem, dando um efeito cenográfico ao conjunto. Já o Rococó, a exacerbação
do Barroco, chega a causar náusea de tantos penduricalhos. O excesso no detalhe
praticamente extingue a compreensão do contexto que busca retratar. Está muito
longe de ser o que vemos aqui.
Outra escola colonial largamente utilizada no Brasil, o
Neoclassicismo, também parece não se aplicar aqui. Esta escola se caracteriza
por uma simplificação dos desvarios barrocos, e que acaba por transparecer mais
solidez. No caso, parece que voltamos a perceber que a igreja é um prédio,
enquanto no Barroco há o entendimento de que é um suporte para outras
manifestações artísticas. O Neoclássico traz de volta as colunas gregas,
encimados por capitéis jônicos ou dóricos, com preocupação focada na ocupação
frontal, o que dá sensação de privilégio na largura da obra. Não é o caso da
igreja que tenho à minha frente.
Ecletismo e Art Noveau
também são comuns em terra brasilis,
mas são posteriores à construção da matriz de Sapucaí-mirim, e, a não ser que
tenhamos um exercício de profetismo arquitetônico, não são possíveis de serem
aplicadas.
A escola da qual mais encontrei semelhanças com esse templo
é o Maneirismo. Considerado a princípio uma degeneração do estilo clássico, o
Maneirismo dá mais importância ao estilo peculiar do projetista do que a um
cânon preestabelecido. Importa aqui a maneira
pessoal de se manifestar (maniera, em
italiano), daí o nome. No entanto, ao contrário do que essa característica
poderia fazer supor, o Maneirismo possui alguns elementos básicos, que, em
geral, batem com a igreja de Sant’Ana.
O estilo é bem mais simplificado que os demais,
privilegiando os aspectos exteriores, enquanto a decoração interna é bastante espartana.
Os frontões são geométricos, com o uso de estruturas triangulares. O jogo de
luzes das janelas faz com que a iluminação interior seja contrastante, o que é
facilmente perceptível na boa entrada de luz do altar e na precariedade da
passagem imediata do pórtico. Há uma tendência em dar mais ênfase no eixo
longitudinal, justamente para tornar mais factível essa composição de iluminações.
Percebi algumas discrepâncias, porém. A torre alta e
centralizada não me parece típica, e os reforços das arestas, apesar de
presentes, não tem o aspecto de dupla coluna que é relativamente comum na
escola maneirista. Repetindo: apesar de seguir uma linha-mestra, o Maneirismo
dá mais liberdade ao autor, não possuindo um “manual de instruções” tão rígido
quanto nos demais estilos.
Mas eu não tenho conhecimento suficiente para enquadrá-la.
Como não há nenhuma informação no site da prefeitura ou da diocese, resolvi
fazer esse exercício. Se algum leitor versado nessa arte puder destrinchar o
frango da minha ignorância, farei questão de adendar este texto, penhorada e antecipadamente
agradecido, ainda que não seja costume meu fazer alterações pós-publicação.
Recomendação de visitação:
Aqui na cidade de São Paulo, é realizada, ano sim, ano não,
a Bienal de Arquitetura. E este é ano sim!!! Deverá ser realizada, segundo seus
organizadores, de outubro a dezembro. Mas ainda há muitas coisas por fechar.
Portanto, recomendo que vocês acompanhem as notícias e visitem os espaços
disponibilizados.
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