Não sei quantas vezes troquei de carteira na minha vida.
Nunca tive uma preferência fixa, pelo simples fato de ser um artigo destinado a
ficar escondido no bolso, portando coisas que tenho em pouca quantidade, como
dinheiro. Desta forma, o material a ser empregado pode ser qualquer um:
plástico, tecido, emborrachado, couro e suas imitações de napa ou korino©. Por força dos malfazejos trajes
sociais que me sufocam e se me impõem, sou quase compelido a usar destas últimas,
que são razoavelmente resistentes, mas que estão longe de ser eternas. Acontece
que eu só detecto o seu limite por elementos externos, como a grita da patroa admoestando
minha deselegância ou o estranho fenômeno da osmose das moedas, que insistem em
escapar do artefato para o fundo dos bolsos. Esse é o momento de expelir a velharia
e transferir seu conteúdo para um novo lar.
Isso geralmente acontece em dia de lavoro, quando
estou me preparando para a batalha, e o câmbio se dá em bloco – tudo o que está
na carteira pretérita vai de comboio para a futura. Só que desta vez resolvi
fazer a mudança em modorrento domingo, e por isso fiz uma inspeção de crivo
mais crítico na papelada que não representa aspecto monetário. Tinha de tudo um
pouco – a CNH, cartão de convênio, bilhetes com recados já vencidos, alguns
ingressos de partidas de futebol, vias de pagamento completamente esmaecidas e
um praticamente extinto cartão telefônico, do qual não faço a menor ideia de
funcionalidade. Quase tudo foi para o lixo, mas havia algo que tomava um bom
volume: uma folha de caderno totalmente amarelada, já puída nas dobraduras e
escrita a lápis em um nível de contraste que a tornava praticamente ilegível:
Demoro um pouco para decifrar a caligrafia apressada, mas
relembro do caso. Era mais uma das vezes que um dos meus aflitos afilhados me
procurava para dar umas dicas em suas tarefas de Filosofia. De cabeça, lembro
de dúvidas sobre Hume, Rawls, Borges e mais alguns outros, que nem sempre
consegui responder de bate-pronto. Desta vez, tinha diante de mim duas perguntas
(e respectivos subquesitos) sobre Aristóteles. Como bem sabemos, há pouca coisa
que se possa responder em duas ou três linhas sobre o filho mais célebre de
Estagira. Por isso, e se não me engano, fiquei com as questões para preparar
uma aulinha sobre o tema, ao invés de entregar a sopa pronta. Isso é bom para a
janta, não para o aprendizado.
Como este é um espaço que mescla Filosofia e dia-a-dia,
resolvi compartilhar não somente o prosaico evento, mas também a resposta dada,
ainda que não a tenha fechado em 100%, para que a ínclita pupila desse alguma
ativação às próprias sinapses. Eis aí o objeto arqueológico, consistente nas perguntas
e derivações:
Como se pode depreender, eu tinha razão em dizer que há um
limite para sintetizar coisas complexas, e a ontologia aristotélica não é papo
de boteco. Então nós vamos ter que destrinchar cartesianamente os temas propostos.
Vamos lá!
1) Por que razão para Aristóteles, para se conhecer o que
uma coisa é, é necessário partir do conhecimento de sua essência? Como a
essência se exprime? Qual a relação entre essência e finalidade?
Essência... Não dá para começar a falar sem esclarecer o que
é este conceito em Aristóteles. Na antiga Grécia em que se encontrava nosso herói,
existiam duas matizes de escopo opostos no que diz respeito à visão metafísica:
o transformismo de Heráclito e o imobilismo de Parmênides. O primeiro é o dono
do famoso pan ta rei, o fluxo eterno, onde nunca se banha duas vezes no
mesmo rio. É a filosofia do devir, ou seja, da afluência contínua das coisas e
da ininterrupta transformação do universo. Nunca somos os mesmos – a cada dia que
se passa estamos diferentes, nem que seja em mínimos detalhes, nem que seja apenas
para estarmos um dia mais próximos do fim. A grande característica do Ser
heraclítico é o constante vir-a-ser, a expectativa de que o futuro representará
um movimento dialético entre contrários – o quente esfriará, o tenro enrijecerá,
o muito diminuirá. Essa é a sua única permanência, e, por isso mesmo, Heráclito
via no fogo o elemento de composição do cosmos, a
arché (ainda que no plano simbólico). Por outro lado, o pensamento
parmenidiano via o devir como uma mera ilusão dos sentidos. Para ele, a
realidade se cinde em uma bifurcação: a via da verdade (aletheia) e a via
da opinião (doxa). Como a segunda se obtém de maneira muito mais pessoal
e perceptiva, temos a tendência de encará-la como a realidade, e é aí que entra
a mecânica ilusória dos sentidos, já que cada um de nós introjeta o mundo que
nos cerca de maneira peculiar. Há uma realidade subjacente, no entanto, de modo
que somente o intelecto puro pode captá-la. Parmênides baseia então sua
ontologia na dicotomia Ser/não-Ser – o Ser é tudo o que se pode positivar de um
objeto, e o não-Ser é a sua ausência ou oposição. De certa forma, Platão, o
mentor de Aristóteles, seguia essa mesma lógica. A essência de um Ser estava
apartada do mundo sensível, que nada mais era do que cópias plasmadas de um
modelo ideal, este sim representativo das essências, e que habitavam fora do
universo da percepção.
Aristóteles discorda de ambas as escolas, embora sua
filosofia utilize seus elementos. Por exemplo, não se alinha à fisicalidade do
devir de Heráclito, que diz ser tudo variação material. Por outro lado, também
não entende que exista uma instância em separado, como queria Platão, que
dissociasse os objetos sensíveis de suas essências. Ele dizia que a essência de
cada Ser poderia ser obtida dele mesmo, sendo desnecessário fazer a escalada
dialética tão cara aos seus antecessores.
Sendo assim, existe uma essência possível para Aristóteles? Sim,
é claro. Na verdade, ele concilia tanto o imobilismo quanto a transformação.
Para ele, a essência de qualquer Ser, para ser captada, precisa passar por um
longo processo de indução, sua ferramenta lógica, onde se percebe a repetição
de características sem as quais um objeto perde seu sentido. Por exemplo, uma
pedra possui características que podemos encontrar em qualquer uma delas: a
solidez, a frialdade, a ausência de movimento espontâneo, a ausência de vida, a
resistência a impactos, a possibilidade de ser lapidada, entre outras.
Dispara-se um processo indutivo e verifica-se a repetição de tudo isso em
qualquer pedra que se tenha à frente. Enquanto nada se contrapor, podemos dizer
que encontramos a essência do ser pedra, uma união entre a matéria que lhe
compõe e a forma que esta adota. No entanto, é preciso observar que certas
características são circunstâncias, e não essências. A cor, e.g., é um desses
casos. Há pedras de todas as cores, inclusive mescladas. Ser azul, neste prisma,
não é essência da pedra, mas uma circunstância, uma contingência, um acidente.
Mas olha que legal que é a dinâmica das transformações. Sim, é da essência de
uma safira ser azul, mas não de uma pedra. Deu para entender a diferença?
Além disso, é preciso atentar à forma que uma pedra adota.
Se você possuir um pingente de safira em forma de peixe, isso não significa que
esta se tornou um peixe – ela é uma pedra que foi lapidada nesta forma, e nada
mais. A essência do peixe tem muitas outras coisas além da sua forma.
Disso tudo, podemos entender que a essência de alguma coisa,
na visão aristotélica, tem tudo a ver com a matéria que lhe constitui e com a
forma que adota. Isso tudo é imutável, e Aristóteles dá o nome de ousia,
ou substância. Só que as coisas não são só substância. Mudam, e, se mudam, como
podemos em falar em substância, essa forma e essa matéria que permeiam todos os
seres? Como podemos pensar em uma árvore quando ela ainda é uma semente? É aí
que entra o devir de Heráclito. Na transformação, reconhecemos a presença da
essência porque um objeto já carrega consigo a possibilidade de se transformar
em outro. A semente tem em si a chance, a oportunidade, o potencial de se
transformar em árvore. A semente é a árvore em potência, e a árvore é a
semente em ato, a semente atualizada, e que, por sua vez, é a lenha em
potência, que são as cinzas em potência, que é o fertilizante em potência, que
é de onde novas sementes brotarão para ser árvores em potência. No fluxo do
devir, a potência é o vir-a-ser, e o ato é o presente.
Por fim, é preciso pensar que todo esse movimento tem por
trás de si um motor, que Aristóteles chama de causalidade (leiam
mais aqui). Uma causa eficiente dá início a uma cadeia de consequências,
agregando um material com uma forma específica. O joalheiro eficiente usa a matéria
safira e lhe dá forma de peixe. Faz isso gratuitamente? Não. Faz para embelezar
uma mulher, para exercer sua arte, para passar tempo, para ganhar sua vida. Ou
seja, faz por uma finalidade.
Aristóteles entende que esse fim é um dos autênticos motores
pelos quais a natureza se desenrola. Tudo tem seu fim, e compreendê-lo é o objetivo
da teleologia. Os fenômenos não são vazios de propósitos, sob pena de
que o ciclo de causas e efeitos não tenham um sentido apontado a partir de si,
e esse sentido é a sua finalidade. Faz parte da essência dos seres ter um fim,
e isso é o que nosso bom velhinho chamava de causa final. Guardem bem isso que
eu vou usar na próxima resposta. Tá bom assim? Dei uma rota? Então vamos para a
segunda questão:
2) Qual relação existe entre a afirmação de que o homem é
um animal racional e a de que ele é, por natureza, um animal político? Por que um
homem que naturalmente viva fora de uma comunidade é um bruto ou um deus e é
chamado “homem” por mera analogia?
Bem... acabamos de falar sobre essência, e não vamos largar
do conceito. À pergunta “qual é a essência do homem?” podemos responder de
diversas formas. É um ser vivo, vertebrado, aeróbio, que anda tipicamente em
posição ereta, oriundo de um pai e de uma mãe que lhe doaram gametas, et cetera.
Só que nem só de forma e matéria devemos entendê-lo, na visão aristotélica. Ele
mesmo indicava que havia uma causa final a mover o ser humano, que é a eudaimonia,
ou seja, a felicidade (vide).
Mas existem outras características intrínsecas aos bípedes implumes. Uma delas
diz respeito à sua racionalidade, em outras palavras, à capacidade de
desenvolver encadeamentos lógicos, inclusive prospecções que pudessem delinear
eventos futuros com base na observação. Outra nos remete a uma de suas causas
formais, ou seja, à maneira como os homens se organizaram em sociedades. A condição
de racionalidade humana lhes demonstrou que viver em grupo era mais proveitoso
do que uma condição de isolamento. Ser frágil, a divisão de tarefas traz a ele
maiores chances de sobrevivência em meio hostil. Sendo assim, a essência (olha
ela de novo) de uma sociedade nos diz que ela obrigatoriamente é um consórcio
de pessoas; não existe sociedade de um homem só. Portanto, os relacionamentos
interpessoais são necessários, e não acidentais. Essa teia de relacionamentos
exige de cada indivíduo uma elasticidade entre exigências e concessões, e é
nessa movimentação (ops! devir!) que a vida em comum se torna possível. Enfim,
a política, essa atividade tão mal falada em Terra de Santa Cruz é tão humana quanto
sua carne e seus costumes.
Estamos em uma época do auge da democracia grega. Pela
primeira vez na história, a vida em cidade (polis), uma criação tão
humana, passa a ser um distintivo tão forte da diferenciação entre natureza e
cultura. Um homem fora de uma sociedade é uma fera ou um Deus, diz Aristóteles.
Isso porque o isolamento faz com que se perca a essência humana. Um homem que é
tão intratável que não tem como se limitar diante dos relacionamentos sociais
tem a essência da fera, não do homem; ou alguém tão autossuficiente que não
necessite destes mesmos relacionamentos igualmente tem a essência do deus, não
do homem. Em ambos os casos, temos uma essência diferente daquilo que induzimos
ser comum a todos.
Deste jeito, o homem apolítico tem a forma e a matéria de ser
humano, mas algo lhe escapa: sua própria teleologia. É na polis o espaço vital
por excelência para que exerça o bem maior, a vida melhor, a eudaimonia. O
bruto vive pelo instinto, o deus vive pela independência; o primeiro não chegará
a bem algum, a não ser a própria sobrevivência, e o segundo já atingiu sua
própria insubmissão. Não são homens, e não lhe descaracteriza se vivem apenas
por si.
Tá bom assim? Eventualmente, se eu encontrar mais alguma
destas perdidas por carteiras, sacolas, cadernos ou outros continentes, volto a
postar por aqui. Eu sei que tem, e qualquer hora eu acho. Até lá. Bons ventos a
todos.
Recomendação de leitura:
Os tratados que abordam a questão do Ser em Aristóteles já
foram tratados neste espaço, mais especificamente neste
texto. Por esse motivo, vou recomendar o livro que dá base à segunda
pergunta. É fundamental para quem queira trilhar os caminhos da Filosofia.
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret,
2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário