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quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Para proteger o Homem-Cueca

Olá!

Embora eu nunca tenha pedido aos meus pais, nem tomado iniciativa própria após casado, o fato é são poucos dias na minha vida em que eu não tenha convivido com algum bicho de estimação, bem poucos mesmo. Explica-se: morei por muitos e muitos anos com parentes, e os animais dos parentes faziam parte do meu convívio, ora pois. Além disso, muitos dos bichos que apareciam no quintal eram prontamente adotados, como foi o caso dos três pássaros-pretos que apareceram sucessivamente, todos amarrotados: Godofredo, Felizberto e Nicanor. Eram da minha mãe, e cantavam que era uma beleza. Tínhamos cachorros, gatos, peixes e outros pássaros, alguns que me trariam problemas legais hoje em dia. Também havia o caso dos cachorros coletivos, criados por todos na rua, sem uma casa específica. Ora comia-se aqui, ora dormia-se acolá, ora reproduzia-se no meio da vila mesmo. O mais célebre deles foi um tal de Mosquito, que morava na rua da minha avó. Durou um tempão: acho que até mesmo minha esposa chegou a conhecê-lo, contrariando o dito popular que associa o desamparo ao “cão sem dono”.

Esses cachorros públicos eram alvo constante de uma instituição hoje conhecida como Centro de Controle de Zoonoses, mas que levava a malfazeja alcunha de “carrocinha”. Para quem é bem jovem, tratava-se de um veículo onde eram recolhidos os cães vagabundos largados nas ruas, para evitar a proliferação de doenças, em especial a temida hidrofobia, mais conhecida como raiva. A atitude era compreensível em tempos nos quais a doença não tinha cura, e a coisa funcionava mais ou menos assim: os laçadores (pessoas mais odiadas que árbitros de futebol) percorriam os bairros procurando cachorros soltos, sob demanda ou por ronda ostensiva. Uma vez capturado o pobre mendigo, era encaminhado ao canil da prefeitura, onde esperava pela sua sorte por três dias. Caso alguém se dispusesse a buscá-lo, fazia-se a liberação. Do contrário, o bicho era sacrificado na câmara de despressurização ou gás, e seu cadáver era incinerado. A historinha de que eram encaminhados à fábrica de sabão é uma daquelas lendas urbanas, a la loira do banheiro.

Hoje em dia a prática é proibida, o que é uma evidente solução e um óbvio problema: que destinação pode se dar aos cães e gatos que não criaram do nada o pudor de não se reproduzir?

A solução óbvia é substituir a cova pelo facão, ou seja, não matar o infeliz, mas castrá-lo. Com isso, dá-se sobrevida aos desejáveis e elimina-se a possibilidade de que os feios, sujos, cagados, nojentos, indesejáveis deixem o legado de sua miséria para uma prole igualmente feia, suja, cagada, nojenta e indesejável. Só que eles ainda viverão, e, se ninguém os quer, não por que sejam feios, porque feiura é uma questão de moda; não por que sejam sujos, porque um banho resolve; não por que sejam cagados, porque a sorte muda; não por que sejam nojentos, porque feridas se curam; mas por que são indesejados, porque não se enquadram em um determinado padrão, quem será por estes pagãos? É aí que surge, nos últimos anos, o papel dos protetores.

Mas vamos voltar um pouco mais ao meu caso particular. Hoje em dia, tenho um viveiro com quinze passarinhos, entre canários, diamantes, manons, mandarins e duas codornas. Mais de uma pessoa me perguntou se não considero cruel manter preso um ser apenas para meu prazer estético. É uma questão interessante, mas parto do princípio que há diferentes comportamentos animais. Um pardal ou um bem-te-vi se matam dentro de uma gaiola. Prezam mais sua liberdade que a segurança e a comida certa preferidas pelo canário; não me dá nenhuma impressão de que sofram, e talvez tenhamos uma visão muito idealizada da natureza para julgar a liberdade melhor que o cativeiro, no caso específico. É claro que isso não vale para a cabeça humana, cheia de abstrações, mas para o bicho, podemos tentar compreender o que lhe vale mais pelo jeito com o qual reage. Além disso, o viveiro é bastante espaçoso, há comida em abundância e variedade, ausência de predadores, cuidados veterinários quando necessário, e há machos e fêmeas, garantindo o lazer.

Há também um aquário, desocupado no momento. Alguma praga carregou todos os meus kinguios para a caixa-prego, todos de uma vez, e estamos aguardando alguém ficar suficientemente disposto para higienizar adequadamente o ambiente.

E há o Homem-cueca.


Já o mencionei brevemente aqui e aqui. É um cachorro vira-lata como outro qualquer, preto retinto e filho do medo da noite, como Macunaíma. Em comparação ao seu antecessor, não é especialmente brilhante – costuma latir para a própria sombra, para dar uma ideia. Mas já conseguiu aprender uma série de truques, sempre em troca de petiscarias. O cachorro anterior da casa, Coronel, era bem mais inteligente, para os padrões humanos. Conseguia sacar quando algo ia mal, e escondia-se silente em seu canto. Sabia se conter com um simples levantar de dedos, e parecia reconhecer expressões faciais, tanto que nem era preciso aplicar-lhe carraspanas. Só que era sério demais, parecia um filósofo kierkegaardiano, preso em suas aporias existenciais (um exagero, ele só não era dado a brincar). Já o Cuecão é puro hedonismo, fugindo um pouco do controle quando vê comida, e sendo absolutamente impossível levá-lo à rua sem os músculos em dia.

Há uma diferença decisiva entre nosso personagem e os demais cachorros com os quais convivi. Enquanto todos os outros eram mendigos que recolhemos das ruas, o Homem-cueca era habitante de um abrigo, algo como um órfão. Portanto, já era castrado, vacinado e vermifugado, e também já tinha um nome oficial: Quick – rápido, em inglês. Achamos o nome meio sem graça, e ficamos dias debatendo qual seria o mais adequado, até não chegarmos a consenso nenhum, e deixarmos Quick mesmo, como sua identidade oficial. O insólito apelido vem das brincadeiras oriundas deste nome: quick, quack, caíque, cueca. E daí para lembrar do personagem do chuchu beleza foi um passo. Ambos periféricos, ambos negros, ambos pobres, o herói dos cem reais mais o dinheiro do busão doou mais esse ponto de contato ao nosso coabitante – uma identificação comunitária.

O Homem-cueca, portanto, é filho do trabalho dos protetores, um papel social relativamente recente, que veio na esteira de uma nova relação entre humanidade e animais, mais próxima do que em outros tempos. Para proteger o Homem-cueca, foi necessário que a sociedade mudasse. Em outras épocas, não teria vivido seus dois anos em um abrigo. Já estaria espalhado pelas cinzas desse mundão.

Mas é óbvio que isso não aconteceu de supetão. Imaginem o quanto mudou a maneira com a qual os seres humanos se relacionam e interagem nesses mais de 200 mil anos de aventura no planetinha. Os nossos sistemas sociais e políticos vivem em uma constante evolução, sempre dirigidos pelo conhecimento sedimentado, pelos ventos de cada tempo e pelas circunstâncias ambientais. Até pelo menos os anos 70, por exemplo, a relação do homem com a natureza era de mera exploração. Os recursos pareciam infinitos e o pouco cuidado que tínhamos produziu problemas que acabaram por semear novas formas de relacionamento, muito mais preocupadas com a manutenção da própria existência. As pessoas passaram a se preocupar mais com o meio-ambiente e com fatores antes pouco considerados, pelo seu baixo valor intrínseco na lógica preexistente, exemplificados pelos animais como sujeitos de direitos. Esse acréscimo e essas alterações na maneira como as pessoas se relacionam entre si e o meio com que vivem formam o conceito de capital social, explorado pelo cientista político Robert Putnam.

Vamos aqui fazer a diferenciação e a aproximação entre dois significados para o termo em epígrafe. Ele vem da Contabilidade, e representa o montante investido pelos sócios em um determinado negócio. O capital é mutável: pode ser incrementado pelos lucros e por novos aportes, ou diminuído por perdas e retiradas, mas possui uma pretensão de crescimento, por certo, porque todo empreendimento visa sucesso. O capital social, no sentido de Putnam, tem o mesmo mecanismo, mas com outro objeto – o que aumenta ou diminui não é algo tangível, como o vil metal, mas as “substâncias” que criam e mantém o elo social, como a confiança interpessoal, a cultura, o aperfeiçoamento das identidades coletivas e outras coisas. A chave para a compreensão do capital social é a noção de reciprocidade: por exemplo, quando as pessoas de um grupo participam efetivamente da composição dos valores e das normas, aumenta sua confiança no poder de que tais regramentos representem o que há de melhor possível para conduzir aquele grupo, o que fortalece o nó que o ata. Já é fácil aqui perceber que falamos de democracia.

Mas nem sempre o caminho do capital social é aglutinador. Espelhando o que acontece nas finanças, há momentos de perdas, que são os esgarçamentos do tecido social. Muitos são os fatores que podem levar ao distanciamento interpessoal, como a concentração de renda, a estigmatização de uma classe, o empobrecimento generalizado, et cetera. No entanto, um estranho fenômeno levou Putnam a constatar o caminho de exacerbação do capitalismo: o individualismo. Putnam percebeu que uma tradição ianque permanecia intacta em sua prática: o jogo de boliche. No entanto, o local das partidas migrou dos clubes para os shopping centers (mais conhecidos nos EUA por malls). De fato, há uma diferença vital entre ambos os lugares. Nos clubes, as disputas de boliche se dão por equipes. Basta que se lembre do desenho animado dos Flintstones – as partidas não eram de Fred ou de Barney; eram de seu time, os Búfalos d’Água, se não me engano. Já nos shoppings, a disputa é individual. Já não temos a formação de times como ocorria nos clubes de boliche. Não é necessária uma espécie de “adesivo social” para que se pratique um esporte tão característico da cultura estadunidense.

Pensem bem se não é a mesma coisa que vemos no Brasil. Há duas décadas, as pessoas se inscreviam em clubes para as mais diversas práticas desportivas, como piscinas e aparelhos de ginástica. Ao lado disso, havia a possibilidade de práticas coletivas, como basquete e remo, exempli gratia. Hoje os clubes vivem na penúria e as academias povoam os bairros, onde os pretendentes a atletas malham sozinhos em suas esteiras, com um I-Pod conectado ao ouvido para disfarçar o tédio e dar lenitivo à solidão. As escolhas são feitas tão sob medida que o universo de opções fica radicalmente reduzido.

De uma constatação tão singela, Putnam conseguiu disparar uma série de observações sobre a sociedade norte-americana, e percebeu que os índices de participações em ações coletivas despencaram, como conselhos de bairros, reuniões de pais e professores, institutos voluntários e sindicatos, sendo a mais significativa de todas a participação eleitoral. O absenteísmo, por exemplo, foi a marca da eleição que levou Donald Trump à presidência. O voto nos EUA é facultativo, e essa é uma indicação segura de que o norte-americano, como um todo, não tem mais o mesmo interesse que tinha anos atrás na vida comum. Na medida em que os indivíduos se reconhecem cada vez mais como tais, menos a sociedade se dá os braços.

Ok. Vivemos hoje mais presos a celulares e feicebuques do que aos membros físicos de nossas comunidades, mas ainda vivemos, não é verdade? E aquela nossa velha necessidade atávica de companhia, de nos aquecermos em conjunto, de dividirmos um belo lombo de bisão (tudo bem, tudo bem, um churrasquinho já basta)? Como a suprimos hoje, ainda mais levando em conta a diminuição do tamanho das famílias e sua tentacularização? Uma das rotas utilizadas para supri-la é a adoção de animais, e um capital social acaba sendo substituído por outro, mais adequado à nova circunstância.

Vejam vocês. Os cães, desde seu ancestral longínquo, o tomarctus, são tão sociais quanto o homem. A princípio arredios, algumas espécies devem ter percebido que havia vantagem biológica em se aproximar das aldeias humanas, onde conseguiam restos de alimentos e um certo aumento do nível de proteção. A interação entre as espécies tornou-se significativa já nesses tempos. E foi se transformando na medida em que a vida se transformava como um todo.
Nas minhas épocas de criança, como já deixei entrever, os cães eram criados soltos nos quintais, geralmente com livre acesso à rua. Quando se queria prender um cachorro, coleira nele; o acesso ao interior das casas era vetado. Quem morava em apartamento nem sonhava com cachorro. Hoje em dia, tudo isso parece impensável. O dócil e fiel cão veio substituir a companhia física dos filhos que não nascem mais e dos amigos que só trocam seus afetos via WhatsApp e congêneres. Com vantagem: reclamam pouco, alegram-se com facilidade, não demandam agrados muito elaborados, são fiéis à sua pequena tribo e, principalmente, são sinceros. Com desvantagens: duram pouco, sujam muito, expressam-se limitada e dubiamente e, principalmente, aqui também são sinceros. No balanço, adaptam-se melhor que qualquer outro bicho ao modus vivendi individualista do ocidente contemporâneo, porque oferecem companhia sem reclamar da novela em relação ao jogo.

Não pintemos o pavão com cores que ele não tem, no entanto. Se o humano tem dificuldades de encarar seu companheiro de espécie como seu igual, que fará com o cachorro que não se enquadra a um ideal de beleza? É o caso do Homem-cueca, que demorou dois anos para que alguém o quisesse.

Para proteger o Homem-cueca, e a outros como ele, os protetores dedicam seu tempo e suas sempre parcas verbas. Eles fogem da lógica do individualismo e investem na da solidariedade, criando outra modalidade de capital social, em reversão à perda da coletividade. Seus cães lotam seus quintais e lhes tomam quase todo o tempo. Eles, os cães, não são bonitos socialmente. Se fossem, certamente estariam acolhidos, não importa se em uma mansão ou com moradores de rua; o que importa é estarem vivendo honradamente. Mas há bichos que são abandonados, doentes. São os cagados e cuspidos que citei no começo, aqueles que ninguém quer. No paroxismo do cúmulo da comparação, o Homem-cueca veio da favela. Ele é tão legal quanto seria se tivesse certificado e pedigree. Ele veio da favela como vem milhões de pessoas, e algumas delas, verdadeiramente de boa vontade, ainda acham recursos para cuidar de bichos tão desvalidos quanto eles próprios. Nos pet shops da vida, sempre há alguns cuidadores que apelam para a caridade alheia, fazendo todo o farol possível para conseguir algum reforço nos estoques.


Por isso, eu respeito e admiro os protetores. Fazem coisas que eu não faria e ajudam a manter ainda um pouco aderentes os contatos comunitários.

Para proteger o Homem-cueca precisaríamos, por fim, protegermo-nos, nós mesmos, de nossa sanha, de nosso egoísmo, lembrando do que nos afasta e capitalizando socialmente aquilo que nos aproxima e faz dar verdadeiro sentido à palavra “humanamente”.

Recomendação de leitura:

Cientista político e sociólogo controverso, Robert Putnam ainda está plenamente ativo. Segue o livro que dá base às observações deste texto:


PUTNAM, Robert. Jogando boliche sozinho. Colapso e ressurgimento da coletividade americana. Curitiba: Atuação, 2015.

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