Olá!
#BlackLivesMatter
Às vezes o silêncio da noite é um santo remédio para nosso
autoconhecimento. No transcurso destes insólitos tempos de pandemia, é bem
comum não se cansar o corpo como se deve, por mais que se tente inventar algum
tipo de exercício. O resultado é que tem vezes em que você acorda de madrugada
e não dorme mais. Noite dessas aconteceu isso comigo, e, como estava frio à
beça, fiquei com uma preguiça irremediável de levantar. Fiquei me revirando por
um tempo, mas a indolência não melhorou, até que resolvi pegar o celular para
ouvir um pouco de música, com os fones de ouvido regularmente instalados nos
ouvidos, bem baixinho para não prejudicar os tímpanos e, principalmente, não
provocar a cólera da consorte, no sono inocente de uma criança que tomou 10 mg
de Valium.
Vou “folheando” as pastas disponíveis, tentando achar algo
que já houvesse tempos que eu não ouvia. Saxon? Não, muito barulho. Yes? Meio
devagar para uma madrugada. Epitaph? Status Quo? Green River? Blackfoot?
Eskaton? Sister Rosetta Tharpe? Sister Rosetta!!! Boa, faz séculos que não a
ouço.
Enfileiro as músicas de modo a formar aproximadamente uma
hora de escuta, e acomodo-me ao travesseiro com o edredom à altura das orelhas,
como se isso melhorasse a audição, e fico lá ouvindo absorvido àquela mistura
inédita de blues com country, quase incrédulo de que aquele som era produzido
nas antigas igrejas batistas do interior de Illinois, com o típico vozeirão das
jazzistas negras, e uma guitarra afiadíssima. O que hoje chamamos de gospel não tem rigorosamente nada a ver
com o que agita meus ossículos auditivos nesse momento. Mas a coisa não dura
toda a hora prevista. A patroa, que não tinha tomado Valium porra nenhuma,
acorda vociferando e obrigo-me a transformar a maratona em meio-fundo,
desligando toda a parafernália e quedando-me insone. É aí que entra o silêncio.
Desprovido da distração, pude me pôr a pensar naquele rápido
giro pela discografia da artista ianque. Todas as vezes que falamos na origem
do megamovimento que virou o rock’n’roll a partir da década de 60, pensamos em
antigos negros que tocavam blues, como Robert Johnson, T-Bone Walker ou Howlin’
Wolf. Isso é verdade, mas esses eram artistas em que se podem sentir raízes,
mas que ainda estavam muito distantes do que viria a ser aquele ritmo agitado e
dançante. Daí para Bill Halley e Elvis Presley há um salto muito grande, e é
difícil compreender uma transição tão direta assim. Sister Rosetta é o mais
perfeito elo entre ambos os estilos e só se entende o rock a partir dela. Podem
pesquisar à vontade e, se houver, digam lá embaixo nos comentários. Não há
músico que melhor expressa essa ponte.
Não há Chuck Berry, Little Richard, Gene Vincent ou Jerry Lee Lewis sem
uma Sister Rosetta que os explique. Nenhum deles esteve antes por onde ela passou
primeiro.
Mas o que ficou para a história não foi isso. Depois de sua
morte, ficou guardada em esquecimento até 2007, quando alguém especialmente
perspicaz tirou-a do ostracismo para colocá-la no Hall da Fama. Quer dizer, mais
ou menos, né? Você que me lê, seja sincero consigo mesmo e só depois corra para
o Google. Você conhece a artista em questão? Se sim, deve fazer parte de um
grupo que não passa de 5% da humanidade, sendo generoso. Eu mesmo a conheço há
uns quinze anos, mas encará-la com sua real originalidade é coisa mais recente,
que ocorreu quase que por acaso. Estava um belo dia em algum afazer doméstico
quando, perdida pelo meio da audição de uma série de músicas aleatórias, surge
aquela canção pulsante, delineada por virtuosismo e energia. Um dos rocks mais n’roll que eu já tinha ouvido*. Com a
atenção devidamente chamada, fui observar o ano da gravação. Década de 40! Isso
é anterior a tudo o que convencionamos chamar de era rockeira, surgida em 1952
com Rock Around the Clock. E é isso
que acontece. Sempre que falamos em “pai do rock”, não pensamos em uma mulher,
afastada de um padrão de beleza dominante. Além de tudo, negra. O “Pai do Rock” é branco,
o avô também, e nada disso faz sentido quando mergulhamos na História.
A não ser que eu mesmo faça uma confissão. Enquanto o
desfiar do rosário dos meus pensamentos notívagos tinha seu andamento, uma
espécie de correlação entre a ausência de reconhecimento da pobre Sister e os
acontecimentos dos últimos tempos começou a se desenrolar. Desde o dia 25 de
maio do corrente ano, quando a morte do segurança e caminhoneiro negro George
Floyd pôs em movimento uma das maiores ondas de protestos a nível mundial que
se tem notícia, temos sido convidados a uma reflexão sobre nossa posição no
mundo e como enxergamos o outro. O que fez com que esse caso específico
desembocasse em seus efeitos é muito difícil de detectar. Afinal de contas,
pensando com frieza e cinismo, é mais um caso entre milhares. Para mim, é a
famosa gota d’água que transborda o balde, derrubada de seu teto pelo alcance
que as redes sociais dão hoje em dia a todos os fatos, para o mal e para o bem.
E a minha assunção é essa: construímos barreiras mentais para que alguns de nós
sejamos invisíveis. Somente quando acontece algo que nos é estranho é que o desassossego faz brotar o ser-diferente
que emerge para nós, heideggerianamente.
E é aí que posso me reconhecer racista. Esse estranhamento pode vir na forma de
epifania, como no caso da madrugada insone ao som de Sister Rosetta, ou de
alteridade, como em Floyd: o que seria se eu tivesse um joelho em meu pescoço?
E naquela mesma noite, ato contínuo, eu comecei a pensar em
qual momento de nossas vidas tornamo-nos racistas, tentando recuar até minha
lembrança mais primordial. Não foi um exercício fácil. Na minha infância, como
em todo bom bairro operário, havia gente de toda procedência, com o amálgama
comum da pobreza. Uns um pouco mais remediados, outros menos, todos acabavam se
equilibrando na balança da vida, e isso criava uma certa identidade comum, uma
espécie de cumplicidade, o que não evitava que, mesmo lá, houvessem olhares
mais tortos para certas direções. Entretanto, era meio difícil perceber, na
visão infantil, uma acepção tão contundente assim. Havia os filhos da dona
Aparecida, pretos retintos e filhos do medo da noite como Macunaíma, que
povoavam os mesmos quintais de todos nós outros. O mesmo acontecia com Luizinho
e sua irmã Claudinha, recém-chegados do Nordeste, mesma procedência do
Marquinhos e tantos outros. Mas houve um ponto claro, sim, que eu me recordei,
e veio de minha casa. Que são normais as aprontações das crianças, isso todos
sabemos. Entretanto, algumas transcendem a mera peraltice e passam para o campo
da maldade, como puxar as tranças das meninas até elas caírem no chão. Quando
eu fazia uma dessas, meu avô cravava: “judeuzinho”. Ok, pode até ser verdade
que eu pareça com os judeus do Bom Retiro, com meu cabelo enrolado e barba
espessa, mas não é certamente a essa minha característica que o velho
atribuía-me o apelido, mas a uma suposta ruindade inerente à etnia então
guerreada, além de não ser hebraico, nem de ascendência, nem de religião.
Comecei a lembrar de muitas coisas parecidas, fazendo um inventário mais
extenso do que eu gostaria, e que prefiro nem enumerar. Ou seja, não dá para
passar o pano para as minhas pessoas queridas, nem para mim. E é isso mesmo: o
preconceito pior não é aquele explícito, mas o sub-reptício, que nos pega sem
que percebamos, como quando chamamos o lápis salmão de “cor de pele”.
Mas eu ainda pensei: pode ser uma tremenda bobagem tentar
recuar no tempo em busca de uma origem do meu racismo individual, porque ele
pode estar ainda mais remoto, ainda na fase da formação da primeiríssima
linguagem, e, da mesma forma que ocorre comigo, acontece com tanta e tanta
gente, a sociedade inteira. Inclusive das minorias. Enfim, se temos tanta
dificuldade de reconhecer atos de racismo implícitos ao nosso redor, é porque
eles estão para lá de arraigados, justamente por nascer junto conosco. E o
efeito é mais devastador, evidentemente, em que está no polo fraco.
Uma das primeiras comprovações mais robustas de como as
crianças negras são afetadas em suas autoimagens veio dos trabalhos do casal
norte-americano Mamie Phipps e Kenneth Clark, raros psicólogos negros que
começaram a elaborar suas teses na década de 1930, impulsionados pela
segregação escolar inacreditavelmente comum nos Estados Unidos. A ideia
essencial era aferir o nível de aceitação da própria raça e da identificação
com bons valores em crianças negras na primeira infância, de modo a compreender
como suas consciências eram moduladas pelo meio em que viviam.
Os experimentos eram muito simples. Para cada criança
participante, eram apresentadas bonecas que tinham variações no tom de pele,
sem que nenhuma roupa, além das fraldas, estivesse as recobrindo. Em seguida,
eram feitos alguns questionamentos, como qual era a boneca mais bonita, qual
tinha a melhor cor, com qual a criança mais gostaria de brincar e qual a mais
parecida com a própria criança. Em seus resultados, a dura constatação é que as
crianças, em grande maioria, atribuíam boas qualidades às bonecas brancas, e só
a elas. Além disso, as crianças sabiam interpretar quais das bonecas
representavam negros, mas quando a pergunta era sobre qual boneca era mais
parecida com eles próprios, o nível de identificação caía bastante.
Percebem o que indica esta experiência? Duas coisas: que há
toda uma construção social que leva as pessoas negras a atribuir valores
negativos à sua própria condição e que isso é feito desde a mais tenra idade.
Desde muito cedo, uma criança negra já arrasta consigo o peso de uma
expectativa de bem-estar muito menor do que com relação a crianças brancas, o
que pode levar a um complexo de inferioridade ou a um desvio de objetivos
próprios, já que o melhor está no outro, e não em si mesmo. A criança negra já
é inserida em um contexto onde ela não é protagonista, e se desvaloriza sem um
porquê.
Isso gera insegurança, isso gera medo, isso gera ódio,
escalando um após o outro. E é superpositivo que, a partir de uma desgraça como
a de George Floyd, as pessoas passem a se mobilizar de verdade, como ocorre com
a hashtag mencionada lá em cima, extraída de um movimento que já existia desde
2013, mas que só foi a relevo há pouco; com as diferentes passeatas que vêm
ocorrendo ao redor do mundo, com o manifesto de gente famosa, negras ou brancas.
O ponto de viragem para o fim do racismo será indicado
quando deixarmos de admirar o fato de que um negro atingiu sucesso. Maju
Coutinho não é uma boa apresentadora negra, é uma boa apresentadora; Lewis
Hamilton não é um bom piloto negro, é um bom piloto (o melhor, para mim); Silvio
de Almeida e Djamila Riberio não são bons pensadores negros, mas bons
pensadores; Taís Araújo e Sheron Menezes não são atrizes negras de sucesso,
apenas atrizes de sucesso. Cor não pode ser um diferencial para que tenhamos
maior ou menor admiração pela pessoa. Dá a impressão de que temos um fenômeno,
e isso é prova do nosso racismo.
O céu já dealbava quando por fim peguei no sono novamente, e
acordei disposto a escrever este texto, o que custou um bocado, dada a pouca
inspiração que me bateu nos últimos dias, o que não deixa de ser uma espécie de
alegoria para todo o momento que acabei de descrever. Tem horas em que nossa
vontade só funciona na base do empurrão. Eu tenho que abordar o tema, todos
devemos. Se for para o bem de mais pessoas que não nós mesmos, está de bom
tamanho e é melhor que seja assim. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Existe um álbum ao vivo de Sister Rosetta que foi publicado
em 1991, contendo gravações de um show ao vivo em 1960. É a melhor forma de
sentir a pulsação de sua música e sua habilidade musical. Em tempo: pode
parecer que não, mas nossa heroína tocava guitarra prá caralho.
THARPE, Rosetta. Live in 1960. New Orleans: Southland, 1991. 47
min.
No link abaixo, está contida a pesquisa de 1947 do casal
Clark, que foi tão importante que acabou resultando na modificação da lei de
admissão de estudantes negros em escolas públicas nos Estados Unidos.
E não se esqueçam que ainda estamos em plena pandemia.
Procurem se manter em casa o máximo possível, e, se precisarem sair...
#UseMascara
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