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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Navegações de cabotagem – a Gruta da Paz de Limeira, com um nome e um designador rígido para torná-la única

Olá!

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É monocórdio, mas é assim mesmo, amigos que me acompanham neste blog. Talvez seja mais chato para quem lê, porque eu me divirto um bocado com isso, mas peço um pouco de paciência, porque não custa. Ainda no começo deste ano, antes da interminável pandemia, mais um domingo, mais um bate-e-volta, mais um concurso público da menina mais nova, que busca nas prefeituras o espaço que a iniciativa privada lhe nega, praticante da área de Ciências Sociais que é.

Desta vez, estamos em Limeira, cidade bastante próspera que fica situada no centro-leste do estado de São Paulo, em uma região onde a temperatura já começa a se elevar, próximo à depressão periférica paulista. É sabido como há uma diferença grande de temperatura entre a região serrana da qual Sampa faz parte e a área do planalto do interior. É um município grande, com mais de 300 mil habitantes, e que tem alguns prédios bastante antigos espalhados pelo centro urbano, embora, da mesma forma que na Capital da Solidão, tudo tenha ficado meio espalhado em meio à onda modernizante da década de 70.

Entretanto, estamos no interior e a paz reina nos domingos. Dei um pulo no mercado municipal para comprar umas castanhas (fiquei sabendo que pouco tempo depois o prédio sofreu um incêndio de grandes proporções) e fui passear pelas praças para esperar o tempo passar. Em uma delas, vi algo que me chamou a atenção: uma formação inconsueta de pedras, no meio termo entre uma caverna e um castelo, soergue-se em meio às árvores e bancos. É a Gruta da Paz.


Trata-se de um monumento centenário, construído de pedras retiradas de uma fazenda da região pela parte de fora, enquanto por dentro é toda feita de tijolinhos. Foi erguida por ocasião do término da Primeira Guerra Mundial e é cheia de referências religiosas, como os trinta e três degraus de sua escadaria, a idade de Cristo quando morreu.


São quatro tipos diferentes de pedras, para representar o que era entendido na época como as quatro raças humanas, e que constituem uma construção de estilo maneirista, segundo dizem, embora busque recordar um edifício medieval.


Ao redor da construção, há a estrutura de uma lagoa que se encontrava vazia. Não sei se se trata de manutenção ou limpeza, mas ficaram faltando umas carpinhas para dar alegria ao lugar, assim como mais significados religiosos.


O final da escadaria dá em um platô que serviria originalmente como um coreto, para as bandinhas da cidade tocarem suas músicas. Hoje, serve para dar um tapa na pantera. Por uma paulistaníssima prudência e mau costume, achei por bem esperar um pouco para ir até o alto.


O coreto de fato não está nos cimos do monumento, mas um pouco mais para baixo na própria praça, em estilo completamente diferente, guarnecido por uma rara arquibancada de três lances.


Hoje em dia, pelo que pude perceber, a gruta serve como espaço expositivo, mas já serviu como lanchonete e bomboniére. Os arcos ogivais dão um ar meio medieval, ainda que desvirtuados pelas contemporâneas grades de proteção.


A gruta fica na mesma praça onde fica situado o Teatro Vitória, e formam um conjunto bonito em meio a um centro comercial. Embora haja quem lhe conteste a beleza, pelo que andei vendo nessas internets da vida, não deixa de ter sua importância histórica.


Apesar de tão antiga, esse nome oficial, Gruta da Paz, somente veio em 2004. Até então, era apenas um monumento municipal que ficava no meio da Praça Toledo Barros. Nessa ocasião, houve um concurso de poemas. O vencedor virou uma placa que foi para a parede do castelo.


Quem me acompanha neste blog sabe da bronca que eu tenho com mudanças de nomes de logradouros, como pode ser lido neste texto. Salvo honorabilíssimas exceções, penso que um nome deve ser mantido quase sempre, porque carrega consigo um pacote de significados difícil de ser superado por uma homenagem a alguém que nem mesmo soube que tal rua existe.


Arrumaram um sistema na cidade de São Paulo que é ainda pior do que a mudança pura e simples: adiciona-se ao nome original uma designação laudatória, gerando trambolhos inexplicáveis, como é o caso da Rua das Olarias Coronel Camilo Christófaro Marins. Que coisa horrorosa! Nem se guarda a história da rua repleta de olarias que aproveitava a argila das beiras do Rio Tietê, nem se homenageia o gajo em questão com a devida deferência. A um parece querer-se apagar a memória; a outro, dá-se uma aura de desimportância, e a tudo se dá uma impressão de serviço malfeito. E a moda pegou: Ponte do Limão Adhemar Ferreira da Silva, Ponte da Casa Verde Jornalista Walter Abrahão, e por aí afora.


Não é o caso do monumento em questão. Um nome próprio geralmente é muito bom, e ele faz todo sentido quando lembramos que a gruta foi construída nos términos da Primeira Guerra Mundial, quando a esperança (infrutífera) de um mundo melhor vinha à tona de um povo muito assustado. Um nome próprio individualiza e ajuda a reconhecer um objeto mesmo quando falamos dele subjetivamente. É mais ou menos o que acontece com os cachorros, que deixam de ser UM cachorro qualquer para ser específico, O Fulano de Tal (no meu caso, o inefável Homem-Cueca).

Mas essa história toda me fez lembrar de uma das grandes questões da moderna Metafísica e de como o Filosofia da Linguagem costura uma solução para a aporia. Trata-se da Teoria dos Mundos Possíveis e do Designador Rígido, temas tremendamente complexos dos quais vou passar somente uma ideia geral. Vamos nessa.

Essa história toda começa com Leibniz, o pensador alemão das mônadas como componentes do universo (leiam aqui sobre isso, é importante). Ele dizia que as mônadas, uma espécie de centro de energia que seria o elemento fundamental de toda a realidade, acomodavam-se uma às outras através de uma harmonia preestabelecida, que, por sua vez, era fruto de um arranjo divino. Dada sua plasticidade, as mônadas que compõem o universo poderiam se amoldar a qualquer realidade, mas por conta da harmonia guiada por Deus, somente poderiam adotar a forma que percebemos na própria realidade. Diante das inúmeras possibilidades, aquela que nos é plasmada é a mais adequada de todas, em razão de seguirem a perfeição divina. Ainda que as contingências não nos permitam perceber, Leibniz entende que nosso limite intelectual impede-nos de compreender que os caminhos traçados em todo o universo são os melhores possíveis. “O mundo é o melhor dos mundos possíveis”, dizia o tedesco.

É óbvio que, por mais que fosse bem engendrada e não fosse desprovida de sua lógica, essa tese tinha costas largas para tomar paulada. E as mais célebres (dolorosas) vieram das ácidas mãos de Arthur Schopenhauer, o profeta do pessimismo. Ele ridicularizava as teses de Leibniz, tomando-as por pura viagem metafísica. “Eu só conheço o mundo real, não tive o prazer de conhecer os possíveis”, disse ele, asseverando a inutilidade de se pensar em algo que, no limite, não existe. Esse pensamento materialista só admite uma preordenação das coisas se pensado em sua própria metafísica da vontade, onde tudo concorre para tentar saciar o insaciável, em sua mais célebre frase, o exato oposto da assertiva leibniziana: “A existência é uma dívida perpétua que só a morte paga por inteiro. O mundo é o pior dos mundos possíveis”.

Mas o fato é que a ideia de mundos possíveis não foi descartada por completo, sendo retomada em um campo que trafega do metafísico para o lógico-semântico a partir da segunda metade do século passado – ontem, no tempo histórico. E aí vamos começar a fazer algumas perguntas para este novo momento. Ontologicamente, o que é um mundo possível? Seria algo semelhante a uma realidade alternativa, como é comum acontecer em histórias da Marvel? Não é bem isso. Embora exista quem de fato defenda a existência de mundos paralelos ao que temos ao nosso redor*, a questão dos mundos possíveis diz mais respeito a uma condição lógica do que propriamente existencial. Exemplo: Há pouco tempo, tivemos o sorteio dos confrontos para a Copa do Brasil**, e calhou ao Corinthians enfrentar o América Mineiro. Poderia ser um monte de outros times, todos participantes do sorteio: um Derby com o Palmeiras, Majestoso com o São Paulo,  um Clássico Alvinegro com o Santos, um Encontro das Nações com o Flamengo, ou jogos contra Inter, Botafogo, Grêmio, Cuiabá, Bragantino, Athlético Paranaense, Ceará, Juventude, Fortaleza ou Atlético de Goiás, mas lhe coube o Coelho. Esses são todos os mundos possíveis no caso “adversário do Corinthians na Copa do Brasil”, sendo que um corresponderá à realidade e os demais quatorze à possibilidade. Não está no escopo dos mundos possíveis enfrentar o Vasco ou a Portuguesa, porque o primeiro foi desclassificado em etapa anterior e a segunda nem participou do torneio, e, portanto, estes confrontos não estão incluídos nos mundos possíveis definidos neste escopo. Também não está na possibilidade enfrentar a seleção da Argentina, porque é uma copa entre clubes. Idem com relação a times ingleses ou coreanos, porque é um torneio nacional. Pior ainda outras hipóteses mais esdrúxulas: o Corinthians não pode enfrentar a si mesmo, nem a dois adversários ao mesmo tempo. Também não pode enfrentar um time de basquete ou um escrete de jogadores falecidos. Portanto, os mundos possíveis só são extraídos de um escopo bem delimitado e logicamente bem construído. Não é qualquer historinha que é um mundo possível. A coisa está mais para haver uma sinonímia entre mundo possível e mundo logicamente possível, entre os quais um deles é nosso mundo atual. Aristotelicamente falando, o mundo atual é um dos mundos possíveis que está em ato, enquanto os demais mundos estão no estado de potência (para ver mais, leiam aqui).

E existe a chance de que os mundos possíveis possam também ser reais? Tipo assim, de carne e osso? É impossível saber, e nem mesmo é seu propósito descobrir uma pretensa factibilidade. Essa teoria pertence à Filosofia, e não à Ciência. Perceberam a diferença? A ideia central desta teoria é dar uma totalidade entre o concreto e o possível, os dois componentes ontológicos da realidade, e com isso expandir a compreensão que temos do universo. Não é simples, mas eu nunca disse que era.

Pois muito bem. Se um mundo possível vai muito longe de um mundo de conto de fadas, de modo a possuir vastas coincidências entre si, é preciso pedir socorro à linguagem para que se possa chamar pão de pão, e pedra de pedra. O que eu quis dizer com isso? Que os filósofos estabeleceram que deve existir uma ferramenta tal que permita identificar sem sombra de dúvidas um mesmo objeto em diferentes mundos possíveis. Essa ferramenta é o designador rígido, e seus principais baluartes são os nomes próprios.

Em primeiro lugar, um pouco de gramática. Um substantivo é uma classe de palavras variáveis que serve para designar nomes e coisas, e tem esse nome porque pretende dar uma noção da substância do objeto ao qual retrata. Em suma, um substantivo corresponde a um nome. Quando este se refere a uma particularização de uma espécie expressa em um indivíduo, temos um nome próprio, expresso em letras maiúsculas, para dar uma certa “nobreza” a quem lhe recebe. Este é o maior distintivo de individualidade possível. Vamos reservar.

Em uma teoria de mundos possíveis, temos sempre indivíduos que se repetem em diferentes instâncias, sem que estes percam sua particularidade. Todos os termos que se refiram a eles são designadores, ou seja, são palavras que lhe dão precisão na identidade, que distinguem um objeto dos demais. Mas há um índice de “dureza” que torna esses designadores mais ou menos individualizantes. Chamamos de designadores rígidos aqueles em que indicam um único objeto em todos os mundos possíveis, e de designadores flácidos os que podem variar de objeto.

Nomes próprios são designadores rígidos por excelência. Quando falamos do Sport Club Corinthians Paulista, estamos apontando uma agremiação esportiva única, que seria apontado por esse nome sob qualquer condição do sorteio dos confrontos da Copa do Brasil. Já as descrições definidas são os designadores flácidos canônicos. Digamos que a equipe que enfrentará o América Mineiro será o alvinegro do Parque São Jorge. Parece a mesma coisa de dizer que este é o Corinthians, mas suponhamos a hipótese que, em um mundo possível, esta equipe não seja mais alvinegra, ou que haja outro time nessas cores no Parque São Jorge. Digamos ainda que o clube tenha se mudado desse bairro, e que outro tenha se fundado no lugar. São todas condições contingenciais, por mais que se aproximem do consenso. Entretanto, o Corinthians será o Corinthians na Copa do Brasil ou em qualquer outro torneio; continuará o sendo se mudar de bairro, cidade ou estado, e, mesmo que mude as cores, ainda assim vai ser Corinthians. Haverá quem diga: e se ele mudar de nome? Neste caso, teremos um novo designador rígido, que novamente passará a designar esse escrete nos mundos possíveis onde existir. Portanto, o nome próprio sempre se dirigirá a um objeto específico, enquanto uma descrição definida pode mudar de referência, dependendo das contingências.

Ora (direis), seu parlapatão. E se houvesse um time com exatamente este mesmo nome em uma cidade aqui ao lado... Santo André, digamos? Como farás para que sua tese do designador rígido continue funcionando? Para onde irá seu sentido e referência nos casos de homonímia, quando um mesmo nome próprio se referirá a dois objetos distintos. Primeira coisa que farei é explicar que a tese não é minha, mas de Saul Kripke, filósofo norte-americano ainda vivo. Segundo, que é exatamente para isso que servem as descrições definidas, que vão constituindo um feixe de descrições que é amarrado justamente pelo nome próprio. Portanto, este nunca vem sozinho, e por isso é possível obter consenso sobre a quem ele se refere.

Complicadinho... Posso eventualmente voltar ao assunto para falar mais, mas é mais uma importância que existe em se dar um nome ao monumento da Praça Toledo Barros: tornar-lhe único em todo o universo da arte pública, para além de suas cambaleantes descrições. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Kripke é um dos grandes nomes da moderna Metafísica e da Filosofia da Linguagem, e faz muitas inovações na Lógica. É bom ter um pouco de conhecimento anterior nessas áreas antes de começar a lê-lo, ou procurar um bom comentador.

KRIPKE, Saul. O nomear e a necessidade. Lisboa: Gradiva, 2012

E quando estiver passando por Limeira, dê uma passadinha rápida na Gruta da Paz, principalmente se for um pacífico domingo de sol, torcendo para seus tanques estarem cheios novamente.

Gruta da Paz

Praça Toledo Barros, s/nº

Centro

Limeira/SP

Aproximadamente 150 Km a partir do centro de São Paulo


* Não é isso o que a maioria das religiões fazem?

** Para quem não é ligado em futebol, trata-se de um torneio a nível nacional em que diferentes equipes de todo o Brasil vão se enfrentando e se eliminando, até terminar com uma final, obviamente. O campeão ganha uma bolada e uma vaga na Copa Libertadores, a competição mais importante da América do Sul.

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