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quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Navegações de cabotagem – O Vale dos Templos de Itapecerica da Serra: sobre cerejeiras e Filosofia budista

Olá!


Eu tenho uma afilhada chamada Bia, doente pela cultura japonesa, representada pelos mangás e animês em sua maioria. Ela tem talento para o desenho, e insisto com ela para que não se prenda ao estilo reconhecível a quilômetros de distância, aproveitando mais criativamente essa sua aptidão. Não adianta muito, mas sua admiração vai além, de modo a ter um namorado sansei e estar aprendendo a língua do sol nascente, inclusive os misteriosos caracteres da escrita kanji. Todo ano, na altura da virada de agosto para setembro, ela pega seu busão e seu japonesinho para ir ao Parque do Carmo, onde se dá a florada dos sakurás, a cerejeira que é a flor nacional do Japão. Eu já tinha visto como o parque fica bonito em fotos, mas faltava vê-lo ao vivo. Falta ainda, na verdade. Preferi ir a outro lugar, onde o mesmo fenômeno se repete: o Vale dos Templos, na vizinha cidade de Itapecerica da Serra. Tomemos nosso rumo.


Trata-se de um parque que contém dois templos em sua área, ambos de raízes budistas: o Kinkaku-ji, mais voltado para os cinerários, e o Enko-ji, de orientação zen-budista. Embora compartilhem o mesmo espaço, ambos são completamente independentes entre si, incluindo os horários de funcionamento. Paga-se uma módica quantia para acesso, com direito a dar comida para as carpas.


Desde fora já se pode observar o cuidado estético e os fundamentos artísticos típicos da cultura oriental, todo cheio de simbolismos, conforme discorri no meu post sobre o Templo Odsal Ling. O portal sempre tem um significado de passagem, de mudança para um novo estatuto. Essa passagem pode ser de uma encarnação para outra ou da saída da ignorância para a sabedoria.


Logo na entrada, temos uma maquete do templo Kinkaku-ji de Kyoto, do qual o templo homônimo é reprodução. Trata-se de um edifício totalmente revestido por folhas de ouro, o que lhe deu o nome, que significa “templo do pavilhão dourado”.


No corredor que dá acesso às escadarias, em uma cavidade pentagonal na parede, há um sino de badalo e uma imagem provavelmente do bodhisattva da compaixão, Avalokiteshvara, com o sino de pancadas e as moedas costumeiras. Algo semelhante ao que existe no templo Zu Lai (relato aqui), onde a versão feminina, Kwan Yin, está localizada em uma fonte, com o mesmo sino de doação colocado à sua frente. Calma, eu ainda estou aprendendo esses ritos. Caso eu esteja falando besteiras, não se furte de me corrigir nos comentários.


Daí para frente, é morro abaixo, em uma trilha composta especialmente por escadarias. Não se aflija com o retorno, porque o ambiente é formidável, com alguns pontos de parada e fôlego que nos ajudam a apreciar melhor todo o capricho do espaço idealizado por Takeshi Suzuki, o arquiteto encarregado da paisagística.


Uma boa parte do terreno se aproveita da Mata Atlântica que o circunda, o que influencia diretamente no frescor, ainda que o dia esteja muito quente. Mas uma outra parte significativa é elaborada pela mão humana, algumas vezes com elementos construídos, outras com o uso de elementos naturais, como os bosques de bambu.


Embora levando em conta todo o primor estético e potencial turístico, é preciso lembrar que o Kinkaku-ji é um cinerário. Isso significa que seu principal propósito é disponibilizar um espaço onde as famílias possam cumprir a tradição de guardar as cinzas de seus parentes falecidos. Sim, o Kinkaku-ji é algo muito próximo de um cemitério, seu cagão.


Isso quer dizer que há um monte de fantasmas espalhados por aí? Eu não vi nenhum, e, se visse, convidá-lo-ia para um saquê lá fora. O que eu vi bastante foram os diferentes modelos de nicho, que são feitos de acordo com o tamanho necessário e o luxo desejado. Há aqueles mais simples, feitos de cimento, e os mais rebuscados, em pedra...


... bem como há alguns individuais, onde é possível visualizar a urna que contém as cinzas através da janelinha do nicho.


Como o vale é caracterizado pelo ecumenismo* e os cristãos (pelo menos os católicos) também fazem uso da cremação, é possível verificar a presença de vários símbolos religiosos não-budistas, sendo que alguns cinerários são acompanhados de cruzes, além de haver locais onde podem ser acesas velas e colocados santos.


No meio da descida, há uma praça que é mais interessante do que o mero pouso faz supor. Em seu centro, há uma rocha que representa a pedra fundamental do Kinkaku-ji, o que aconteceu na década de 1970. Seu fundador, o norte-americano Alonzo Bain Shattuck (que viveu um bom tempo no Japão), fez encapsular em um recipiente um jornal do dia da fundação e algumas moedas correntes no país tropical deste mesmo momento, e os mandou enterrar sob esta pedra.


Há ainda outros elementos carregados de simbolismo e beleza, como as lagoas de carpas e os ishibashis, as pontes de pedra que expressam vida nova. As carpas são vorazes: é preciso um pouco de cuidado se você decidir comprar um pacotinho de ração para alimentá-las. Elas estão lá como símbolo de longevidade, já que duram um bocado de tempo.


A visão do templo é inebriante. A imagem fala por si só.


Como eu já falei, o templo é uma cópia de um original de Kyoto, no Japão. Evidentemente, não está forrado de folhas de ouro, mas reproduz as três arquiteturas distintas em cada um dos pavimentos. No térreo, um estilo que segue a nobreza da China medieval. No primeiro andar, a corrente comum das moradas dos samurais, e, no segundo, um formato mais budista, com uma fênix dourada no vértice do teto.


O conjunto se completa com um lago bem maior e com o pequeno bosque de cerejeiras ao fundo, que também pode ser observado pelos diferentes pavimentos do templo.


Do ponto mais alto, no pavilhão budista, a visão do entorno ganha mais profundidade, incluindo o desenho em leque do nado dos cisnes. Poético.


O interior do templo também tem a função de armazenar cinzas, do mesmo jeito que lá fora. Só que aqui são compartimentos bem mais simples, semelhantes a gavetas, muito parecidos com os que vi no templo Zu Lai. Percebam que neste pedaço o ambiente está preparado para ritos cristãos, dada a presença da cruz e do rosário.


Mas é óbvio que também há espaço para cultos budistas. Como estamos em um templo japonês, há uma imagem dedicada à bodhisattva Kannon, que é a mesmíssima Kwan Yin da misericórdia mencionada anteriormente.


No mesmo conjunto, mesmo sendo independente, há também o belíssimo templo Enko-ji, cujo significado é “templo do círculo luminoso”, bem mais recente. Ele possui algumas outras obras que ajudam a compor seu grupo específico.


O templo em si é da linha zen-budista, tipicamente japonesa, com fortes influências do taoísmo. Faz parte da tradição mahayana, embora haja contestadores minoritários de seu legítimo pertencimento ao budismo, o que não será importante neste texto.


Há um incensário inserido em uma cabine perante um pequeno buda. Não consegui maiores informações sobre esta estátua, mas, francamente falando, achei-a meio fora de contexto.


Há também uma estátua de uma divindade materna e das costumeiras lanternas orientais. Acho que se trata de Maya, a mãe do Buda Shakyamuni, o fundador da religião, mas não consegui ter certeza.


Mais clara está a situação do túmulo da família do monge Tensho Ohata, o fundador do templo Enko-ji, que inaugurou suas funções em 2001. É o típico pagode, com seus telhados múltiplos e formato de torre.


Há ainda uma curiosa pedra lapidar no jardim do templo que, pelo que pude deduzir, homenageia uma sociedade de assistência mútua para jovens japoneses, algo meio comum em colônia de imigrantes que visa preservar cultura e costumes.


Por fim, meu objetivo central: as cerejeiras em flor, um acontecimento para se ver rápido, porque dura bem pouco. Eu até desconfiava que chegaria aqui com as pétalas já caídas, mas me enganei para o bem.


As flores são lindas. Sua metáfora com a brevidade da existência é tão significativa que dá origem a diversas lendas e simbologias. Uma delas as liga aos samurais, que entregam suas vidas pelos seus protegidos. Suas existências são tão efêmeras quanto as das pequenas flores das sakurás.


No Japão, existe o costume de contemplação dessas flores, chamado de Hanami. É preciso atentar para o fato de que, no hemisfério norte, as estações do ano são trocadas em relação à Ilha de Vera Cruz, sendo que a época da floração se dá entre o final de março e começo de abril.


Há muito lirismo contido nos ambientes na matriz oriental, especialmente quando pensamos nas representações simbólicas ligadas às suas crenças. E há muita filosofia também, como já disse desde o primeiro texto em que me remeti a esta área específica, quando inaugurei a série Navegações de Cabotagem com o templo Kadampa de Cabreúva. Nesses estudos todos, percebi muitas semelhanças com outras religiões, se não na estrutura, pelo menos no desenvolvimento histórico, notadamente com o Cristianismo. Muito embora o Budismo se acomode bem melhor com a questão das diferenças interpretativas, o fato é que em ambas temos um corpus deixado pelo fundador que, aos poucos, vai sendo discutido e reinterpretado por filósofos que se voltam especificamente para seus pontos dúbios. No Cristianismo, por exemplo, tivemos grandes filósofos que abordaram temas difíceis de sua doutrina, como a questão da Santíssima Trindade, da cláusula Filioque, do livre arbítrio e da predestinação, entre tantas. São temas que não são abordados de maneira inequívoca em seu livro sagrado, e que precisavam constituir uma exegese robusta para lhe dar embasamento. É por esse fio condutor que são puxados Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Santo Anselmo e tantos outros. Com o Budismo acontece o mesmo. Assim como Jesus, Buda deixou seus ensinamentos transpostos de forma oral, e mesmo com uma sistematização, há uma série de questões que se mantiveram em aberto, o que teve por consequência o surgimento de vários filósofos ligados a esse conjunto de pensamentos. São nomes como Bodhidharma, Atisha, Padmassambhava e Nagarjuna. Vamos falar um pouco sobre esse último.

Em primeiro lugar, os ensinamentos de Buda preconizam a vacuidade. Em um olhar apressado, poderíamos pensar que se trata do nada, de uma extinção total do mundo e, especialmente, do eu. Mas esse não é o sentido do termo dentro da doutrina budista. A vacuidade diz respeito à impossibilidade de que as coisas, os fenômenos, o mundo e o eu existam por si mesmos, como essência unitária.

Vejam bem. Quando falamos em um processo de causa e efeito, não estamos falando de nada errado, mas apenas simplificando a questão em excesso. É sempre tentador falar que isso aconteceu por causa daquilo, que aconteceu por causa do outro e assim sucessivamente. Mas a realidade é uma longa cadeia de acontecimentos intervenientes, com graus de capacidade de modificação diferentes entre si. É algo que se assemelha à moderna Teoria do Caos, que estabelece a impossibilidade de conseguir fechar previsões, tendo em vista a falta de linearidade nos acontecimentos. Assim, quando uma lata é chutada na rua, há uma verdadeira teia de acontecimentos que levou à ocorrência daquele fenômeno, a ponto de não se conseguir recuar o suficiente no tempo para registrar absolutamente todos os passos que o desencadearam. A correlação direta é simples, a lata foi chutada porque um sujeito qualquer estava aborrecido, e isso nos ilude. Por trás dessa relação simples há motivos no sujeito irritado, na lata e no ambiente que os rodeia.

A coisa fica mais complexa ainda quando colocamos a nós mesmos na parada. Qual é o papel do self em um mundo cujos fenômenos estão em permanente interdependência? Temos a nítida sensação de possuirmos uma realidade interior e exclusiva que é paralela ao restante do universo, o que não é verdade. Nossa própria existência está condicionada, interiormente, ao mesmo turbilhão de causas e efeitos que toda a realidade circunstante possui. Isso resulta na conclusão de que não existe uma essência permanente do Ser, algo que nos designe de maneira indivisível. Pensem no seguinte: no que consiste nosso ser? É nosso corpo? Mas qual parte dele? O cérebro, o coração, o sangue, os ossos? Mas a vida é impossível sem qualquer um deles. Seria então a mente? Mas qual parte específica dela? As memórias com as quais construímos nossos pensamentos? Os raciocínios que nos levam a deduzir o mundo? As intuições que captam a realidade ao nosso redor? Os instintos que são a nossa fonte primária de animalidade? Tudo são aspectos da psique, que a formam e não existem isoladamente. Será então nossa alma? Mas para qual de nossas experiências de vida devemos identificá-la? É na encarnação humana? Nas fases menos esclarecidas? Nas iluminações? Se respondermos que somos tudo isso, então reconheceremos que estamos na mesma cadeia ininterpretável de interdependências, e que não existe um eu separado do todo cósmico. As coisas se originam umas das outras sem que se possa separar causa de efeito e em ampla correlação de dependência, influindo no que ela é. É o que se chama de cooriginação dependente. Nada existindo por si só, mas no âmbito da dependência, temos que a essência das coisas é, in extremis, vazia. A vacuidade é isso.

O grande problema na vacuidade está em uma dupla perspectiva niilista e substancialista. Se tudo é impermanente, é preciso aceitar que mesmo as construções teóricas são povoadas de vazio. Neste caso, a verdade se torna impossível, mesmo para os fundamentos mais viscerais dos próprios ensinamentos do Buda, como as Quatro Nobres Verdades. Nagarjuna contesta essa assertiva com uma tese de dupla verdade. Uma delas seria uma verdade suprema, expressa pela lógica da vacuidade, e outra obtida por convenção, a partir de padrões acordados pelos seres humanos. Essa convenção, basicamente, se funda na linguagem e na cultura para que haja uma ferramenta em que a verdade suprema possa ser expressa. Sua assertiva mais clara é a que diz que a convenção permite ao supremo ser mostrado. Sem ela, a verdade última é inefável; e a verdade convencional sem a verdade suprema não tem significado. Em resumo, sem construções humanas não há como se compreender verdades divinas. A ideia de que os entes não existem por conta da vacuidade, dessa forma, se explica. Estes fazem parte da verdade convencional, sendo tomados pela vacuidade ao se transpor para a verdade suprema.

Por outro lado, tendo em mente que todos os fenômenos são vazios, a substância da realidade seria a própria vacuidade. Se esta é a única verdade essencial, como se chegar a ela, se ela suplanta a verdade convencional? Nagarjuna argumenta que é errado pensar em um dualismo metafísico, onde vacuidade estaria de um lado e verdade convencional do outro. Para ele, a própria vacuidade não tem essência, algo imutável, universal e necessário. Ela também é cooriginação dependente e depende da verdade convencional apenas para ser expressa. A própria vacuidade não tem essência, não podendo ser substância. Verdade suprema e verdade convencional seriam, assim, uma mesma e única coisa.

Nunca ninguém disse que é simples. Mas são as dificuldades típicas de um tema intrincado, como é qualquer sistema religioso. Mas o que importa agora é que certamente os budas e bodhisattvas estariam bem satisfeitos com este lugar. Ou não. Bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Venham conhecer o Vale dos Templos, seja lá de qual religião vocês forem. É lindo à beça.

Também recomendo aqui a principal obra de Nagarjuna:

NAGARJUNA. Versos fundamentais do caminho do meio. Campinas: Phi, 2016.

* Ecumenismo é, grosso modo, a admissão de ritos de diferentes religiões em um mesmo espaço.

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