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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 1ª estação: Maria da Fé e a presença do feminino em lugares improváveis

Olá!


Vou interromper momentaneamente minha tarefa de elucidação de áreas da Filosofia (vejam aqui os textos já publicados) por uma razão nobre: fui dar um daqueles meus habituais rolês a esmo, sem roteiro fechado e com os riscos inerentes à quem se atreve a mochilar, ainda que de carro. Poderia esperar o término do guia? Poderia, mas desse jeito junto duas vantagens – dou uma descansada na chateação da monotemática e anoto rapidamente minhas considerações, que povoam um cérebro já não tão retentivo. Como virou praga, todas as vezes que visito um local, fico fazendo minhas considerações filosóficas, para depois traduzi-las em postagens, como esta que agora inicio. Portanto, vamos lá.

Meu último destino tinha sido o Sul de Minas, na região das Terras Altas da Mantiqueira e no Circuito de Águas Mineiro (leiam aqui os relatos). Apesar de passar por muita parte, senti que algumas coisas ficaram para trás, dadas as dicas de lugares que o próprio pessoal desses roteiros passava para mim e para a patroa. Não resta muito a fazer, com a parca semana que me é reservada para descanso a cada temporada, a não ser regressar e palmilhar mais um pouco deste chão, o que fiz. Desta feita, baixei de meridiano e fiquei por uma região conhecida como Caminhos da Mantiqueira, apreciador de serra e mato que sou, em região bem fronteiriça com o estado de São Paulo. A travessia percorreu área outrora coberta por uma importante malha ferroviária, e me dediquei a caçar aqui e ali os indícios dessa presença. Alguns são óbvios e bem preservados; outros, ficaram apenas na memória dos velhos moradores, que gostam de bater papo e contar “causos” com nível de credibilidade variável. Por isso nominei esta série desse jeito. O começo de tudo se deu pela pequena cidade de Maria da Fé.


Este lugarejo, cujo nome homenageia uma pouco conhecida proprietária de terras naquelas sesmarias, fica no topo da serra do Capituba, um subconjunto da Mantiqueira, local muito alto, e que é frio à beça para os padrões mineiros. É toda cercada de vales e com horizonte farto de montes e colinas. Como se pode perceber, chovia e fazia muita nebulosidade, com névoa estacionária no topo dos morros, algo muito frequente em terras com tanta variação de altitude, e que prejudica muito a visibilidade nos mirantes.


A antiga estação de trem se encontra bem preservada, e abriga hoje um espaço cultural. No dia em que estive lá, estava cheia de meninada, por causa de um desencontro de informações. Programada a exibição de um filme, o pessoal lá chegou às 13:00 para o deleite cinematográfico. No entanto, o número 1 marcado no cartaz não era um número, mas um rabisco qualquer. A sessão era às três da tarde, e, sendo assim, a massa mirim ficou aguardando pelos arredores, em frenético alarido, como é típico na faixa etária.


Ao lado da estação, uma locomotiva a vapor faz as vezes de obra estatuária. Seria legal se estivesse em funcionamento, como em Passa Quatro ou São Lourenço (se possível com preços mais convidativos), mas compreendemos que essas coisas não são fáceis. Pensei que a sigla RMV fosse a marca do fabricante, burramente. Não é. Significa Rede Mineira de Viação, o que significa que esta máquina operou em algum momento entre 1931 e 1965, período em que o tráfego esteve ao encargo desta companhia.


A praça formada à frente da estação é uma graça. É toda florida e bem cuidada, ainda no espaço que, no passado, era reservado à linha férrea. A caixa d’água que abastecia a máquina ainda está lá, dando referência à passagem dos hoje inexistentes trilhos.


Nesta mesma praça, temos a presença insólita de oliveiras, cultura incomum no Brasil, mas que acabou pegando em Maria da Fé, dada sua altitude e clima ameno. Neste sentido, é prima-irmã de São Bento do Sapucaí, onde também é praticada a olivicultura.


A árvore virou uma espécie de símbolo da cidade. Destaca-se da paisagem em geral pelo verde meio opaco de sua folhagem, composta de elementos alongados, e sua floração se dá no nosso inverno, de onde se deduz que não pude ver nenhuma. É uma folha meio dura, cujo sabor não lembra em nada uma azeitona.


Maria da Fé é a sede da Fazenda Experimental de Olivicultura da Epamig – Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais, uma espécie de Embrapa mineira, que pesquisa e dá apoio aos produtores rurais da redondeza, especialmente no cultivo de oliveiras e produção de azeite.


A Epamig cultiva os campos ao seu redor não só com propósito comercial, mas principalmente para compreender quais espécies melhor se adaptam às nossas condições ambientais e dão melhor produtividade. Por enquanto, o caminho vai apontando para espécies arbequina, espanhola e de sabor frutado; grappolo, italiana levemente amarga e koroneiki, grega mais picante.


A tarefa da Epamig inclui a extração do azeite, não só das azeitonas produzidas na casa, mas também para produtores menores, que não tem condições de armar um lagar próprio.


Boa parte dos produtores é abastecida pelas mudas germinadas em seus viveiros e estufas, não só nesta cidade, mas em outras localidades que vêm tentando se introduzir neste mercado.


Como o Brasil não é um produtor clássico de azeite, a Epamig estende sua pesquisa a outras espécies e mesmo provocando hibridações, em busca de resultados ainda melhores. Para tanto, possui um banco vivo de espécies em um dos seus terrenos. Agradecemos todas essas informações à Carol, que gentilmente nos atendeu naquele dia.


O resultado é muito bom, um azeite saboroso que se vem transformando em marca registrada de Maria da Fé.


Nem só de azeitona Maria da Fé viverá, mas de todo café que vier de sua zona rural. Sendo bastante alto, seu território não sofre das intempéries que sacrificam a qualidade da rubiácea, gerando grãos maturados no tempo certo, que produzem uma bebida mais suave, que dispensa adoçamento, característica do café de boa qualidade.


Vamos agora para a inevitável igrejona, que será a causa do argumento filosófico deste texto. Fica defronte a uma praça com declive acentuado, algo frequente por estas plagas, e é dedicada a Nossa Senhora de Lourdes. Trata-se de uma das mais célebres representações de Maria, que se apresentou na gruta de Massabielle, na cidade francesa de Lourdes, à menina Bernadette Soubirous, como a Imaculada Conceição.


A estátua da mesma santa pontua em um dos níveis da praça, ao lado de um dos canteiros de lavanda.


Por fora, é uma igreja típica, bastante bela, mas sem ser espetacular. O mesmo não se pode dizer do lado de dentro, este sim magnífico. É todo composto por pinturas da década de 40, pelo que entendi, e presta uma reverência incomumente feminina, buscando as personagens inclusive no velho testamento. O passeio se inicia pela própria padroeira, na lateral do altar, retratada aqui na aparição já mencionada.


No lado oposto, temos uma imagem que representa a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, que, na doutrina católica, diz que a mãe de Jesus foi concebida livre do pecado original, comum a todos os seres humanos, para que dela fosse gerado um ser absolutamente puro.


Nos fundos da nave, no acesso ao campanário, há outra pintura com centro temático feminino: as Três Marias, tão conhecidas pelo nome dado ao cinturão da constelação de Órion, as três alinhadas e equidistantes, em rara ocorrência cosmológica e ecumênica. Maria de Nazaré, Maria Madalena e Maria de Cléofas choram a morte de Jesus, que não é exatamente o foco da tensão da obra, mas a dor e a sensação de abandono que perspassa da expressão das três mulheres.


Nas laterais do teto, há três destaques circulares de cada lado, e em cada um deles uma imagem feminina: as rainhas Ester e Abigail, a juíza Débora, a viúva Judith, todas heroínas do antigo testamento, a mártir Santa Filomena e a já mencionada Santa Bernadette. Algumas delas eu nunca tinha visto representadas em uma igreja.


Há ainda mais algumas imagens femininas, como a Nossa Senhora das Dores da foto abaixo, além de uma Santa Cecília pintada logo abaixo do coro e algumas outras, cujas fotos foram vergonhosamente mal colhidas por mim, que sou inepto como artista e tremelicante como técnico.


Com relação à menina Bernadette, que se dedicou à vida monástica após sua visão, há um simulacro de seu corpo incorrupto, ou seja, que não se deteriorou depois da morte. Como obra de realismo, não é tão impressionante quanto a imagem de Nhá Chica na matriz de Baependi, mas é significativa para contar toda a história dos personagens que dão origem ao padroado da presente igreja.


É verdadeiramente incomum ver tanto destaque ao feminino em uma igreja católica. Geralmente, centraliza-se a devoção a uma santa específica e, em seguida, os congêneres acompanhantes são divididos por gênero. É inegável, por mais que se fale o contrário, que há uma certa preferência pelos homens na hierarquia, não só em espaços deste tipo, mas de muitas outras religiões. Não discutirei aqui se isso é certo ou errado, trata-se unicamente de uma constatação, qualquer que seja sua explicação. Mas é uma boa amostra de como as mulheres nem sempre têm facilidade para dividir o espaço público, o que não é circunscrito, como eu já disse, ao âmbito religioso. Basta que se comparem as edições de revistas ditas masculinas ou femininas. Nas primeiras, além dos habituais nus, há matérias falando de economia, de carros, de política e outros assuntos de cunho informativo; nas femininas, temos fofocas e itens de beleza, bem mais fúteis, e pouco mais do que isso. Por que há uma certeza absoluta de que a mulher não pode se interessar por assuntos mais profundos? Por que o conhecimento apresentado à mulher é feito com certo desdém, até os dias de hoje?

Imaginem a condição que se enfrentava no século XVIII. Mas essa foi a grande pergunta lançada pela inglesa Mary Wollstonecraft, considerada por muitos uma precursora do feminismo. Eu discordo. Entendo que o pensamento dela é, na verdade, o marco inaugural do movimento, muito embora ela tenha sido mais conhecida como mãe da escritora Mary Shelley, a criadora do Frankenstein, do que como filósofa. O eixo em que gira sua filosofia é o seguinte: homens ou mulheres, somos seres humanos, cuja principal característica é a racionalidade. O sistema social pensado por grandes intelectuais na época da Revolução Francesa tinha como pano de fundo a garantia de liberdade e igualdade dos cidadãos, baseado na sua capacidade de viver sem a tutela de um tirano. No entanto, o patriarcado combatido pelos liberais revolucionários era mantido no âmbito familiar: as mulheres eram consideradas incapazes de gerir suas próprias vidas, tendo a necessidade de se submeter a um pai ou a um marido que lhe provesse o sustento necessário. Se a Revolução realmente pretendia implantar uma justiça social, era imprescindível que não desperdiçasse metade de sua capacidade intelectual – justamente a das mulheres. Mas os projetos não indicavam neste sentido. A educação imaginada para as mulheres se baseava em dois pilares: mãe e esposa, e não protagonistas na vida política.

Wollstonecraft preconizava que as mulheres deveriam resistir a essa imposição injustificável. A maneira de se fazer isso era uma espécie de “masculinização”. Não no sentido sexual, mas no de realizar a assunção de tarefas tipicamente masculinas, como o trabalho no campo. Dizia-se que a lavoura era muito pesada para mulheres, mas as camadas pobres não abriam mão do trabalho feminino. Havia mulheres nas cocheiras, nas minas, na incipiente manufatura, e elas deveriam se provar autossuficientes, mas agora escalando para uma educação mais refinada, onde elas poderiam participar do poder decisório em todos os planos, desde a gestão da casa até a da cidade. Esse processo de masculinização incluiria a desmistificação da ideia de que haveria um recorte intelectual nos gêneros: enquanto aos homens caberia naturalmente a ponderação, a visão científica e a decisão sensata, às mulheres caberia a sensibilidade, a emotividade e a propensão para o afeto. Muito antes de Simone de Beauvoir, ela dizia que essa visão reduzia a mulher à sua condição de fêmea. Essa posição parece de grosseirões hoje em dia, mas era defendida por gente da bitola de Jean-Jacques Rousseau!!! Isso serve para provar como o preconceito é mais forte do que a própria pretensa racionalidade pode supor.

Para Mary, a tônica deste pensamento era tristemente perversa: manter sob o espírito do presídio toda uma classe, como ela mesma diz: a gaiola dourada só serve para adornar a prisão. Razão e emoção são complementares, e não excludentes; cabem em um mesmo ser. O grande problema é que, dada a condição de inferioridade intelectual das mulheres daquele tempo, nada restava a não ser aguardar que a atitude integradora partisse justamente dos homens, por isso ela guardava algum tanto de concessão à primazia masculina. Era ingenuidade demais achar que ela seria ouvida, ainda mais tendo levado uma vida fora dos padrões de moral da época, incluindo relações com homens casados e filhos ilegítimos. Demorou muito para que sua obra fosse dissociada de sua breve vida pessoal, e somente nos últimos tempos tivemos uma retomada de seus escritos com a reverência que lhe são devidos.

Então é esse o começo desta nova série. Estão todos convidados a viajar comigo pelo restante do caminho, onde continuarei procurando dar vazão à minha mania: a de encontrar Filosofia em todos os momentos que vivo e em todos os lugares por onde ando. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Felizmente, há uma edição mais ou menos recente de sua obra mais importante em português. Percebam a sua atualidade, ainda que a mesma tenha praticamente gritado no deserto em sua época.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos das Mulheres. São Paulo: Edipro, 2015.

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