Existem alguns termos que aparecem no nosso quotidiano de
forma tão distorcida que acabamos tendo imensa dificuldade em compreender
corretamente seu sentido. É preciso separar o joio do trigo, mas esse processo
é sempre contraintuitivo. É o que acontece com as universidades, por exemplo,
cujo engano no propósito já dissequei aqui, e que repito rapidamente: o
objetivo principal de uma universidade não é formar profissionais, mas
construir conhecimento. A formação acadêmica e profissional é uma consequência
dessa atividade e não uma causa. Mas é esmurrar ponta de faca. Cem entre
cem cidadãos lhe dirão que o que explica a existência das universidades é a
conferência de diplomas aos seus estudantes.
Algo muito semelhante acontece com a Metafísica, tema do
segundo episódio da presente série, que visa propor o esclarecimento do que se
referem algumas áreas da Filosofia. Quando falamos em Metafísica, a associação
é quase imediata no meio laico ao misticismo, o que é um ledo engano, uma
triste ilusão, um erro crasso. Sim, é bem verdade que certos raciocínios que se
valem do misticismo podem ser aproveitados na racionalização metafísica e
vice-versa, mas são coisas absolutamente distintas. Esse é o primeiríssimo
ponto a ser compreendido. Mas vamos com calma.
Quando eu era criança, geralmente tinha preocupações de
criança: basicamente brincar, ler gibis, assistir desenhos e arrumar desculpas
para justificar notas ruins. Eu não era exatamente mau aluno, mas não me fixava
tão bem como deveria no mundo didático de então. Minha mãe era um bocado
rigorosa nessas coisas educacionais, e todas as vezes em que acabava a reunião
bimestral na escola, o roteiro já estava escrito: chinelo cantando e castigo
por tempo indeterminado, até a raiva passar. A penalidade aplicada é
conhecidíssima pelas pessoas da minha idade – veto às saídas de casa e TV
desligada, para “pensar um pouco na vida e na dificuldade que passamos”. Como
se pode ver, minha mãe não era dada a longos discursos.
As poucas atividades permitidas eram aquelas impossíveis de
proibir, como o rádio que a minha mãe mesma ligava para passar o tempo na
máquina de costura e as lições que eu aproveitava para pôr em dia. Como não
fossem afazeres que me tomassem cem por cento do tempo e da atenção, a cabeça
por vezes ia viajar aos confins. Geralmente, pensava nos confrontos contra o
time da rua de cima que eu estava perdendo ou no céu coalhado de pipas sem que
a minha estivesse lá. Mas algumas vezes eu era tomado por raciocínios do tipo:
“ok, eu estou aqui e agora, completamente entediado. Se não estivesse aqui,
estaria em qualquer outro lugar. Mas como seria se não houvesse outro lugar?
Aliás, se além de outro lugar, nem o mundo houvesse? Não o espaço vazio que
sobraria se não existissem nem planetas ou estrelas, mas nem mesmo o espaço?
Como seria se não existisse a realidade, apenas um grande e imenso nada?” Eram pensamentos tão estranhos
porque excluíam noções básicas do conhecimento: se há nada, não há tempo e não
há espaço. Não há agora, não há antes, não há depois, não há lento, não há
rápido; não há longe, não há perto, não há grande, não há pequeno, não há reto,
mão há torto. Não há para onde ir e nem quando ir. Estes, meus caros, eram
pensamentos legitimamente metafísicos de eu-menino. Da Metafísica, portanto,
escapa essa história toda de energias místicas, medos de demônios e outras
instâncias esotérico-religiosas.
Mas é possível compreender a confusão. O próprio termo
“metafísica” já nasce criando essa possibilidade. É um daqueles gols espíritas
(epa!), uma coincidência que deu certo, mas que abriu algumas portas de
intromissão. A palavra é grega e composta de duas partes: meta e physika. A
primeira significa “aquilo que está além” ou “aquilo que vem depois”, ou, por
extensão, “aquilo que está por trás”. Já a segunda parte representa o mundo
físico, o cosmos, aquilo que nos rodeia e do qual fazemos parte. Portanto, em
uma tradução direta, metafísica significa “aquilo que está além do mundo
físico”, “aquilo que está por trás da Física”. A coincidência está no fato de
que o campo de estudo da Metafísica é praticamente esse mesmo: entender o que
há por trás da nossa realidade e que os sentidos são incapazes de detectar, mas
a sua criação é muitíssimo mais prosaica. Vejamos.
Como bem sabemos, é anacrônica a ideia de que livros
são objetos simples de colecionar. Encadernações, tipografia, capas e livrarias
são coisas recentíssimas na História, e não é de se surpreender que a produção
e a guarda de escritos fossem precárias em eras anteriores à cristã. Aristóteles,
um dos maiores de todos os filósofos, produzia conteúdo prolificamente, mas
dispunha de meios rústicos – uma pena e algo semelhante a um papel. A
reprodução de sua obra era dada por cópias, o que a tornava rara e dispersa. Um
dos seus discípulos, Andrônico de Rodes, teve a boa e laboriosa ideia de
coligir toda a obra do mestre e classificá-la de acordo com as temáticas, que
eram bem vastas. Um dos itens do catálogo abrangia o que Aristóteles chamava de
Filosofia Primeira, que discorria sobre temática semelhante aos da minha
infância carcerária. Esses quatorze livros foram ordenados em sequência aos
tratados sobre Física, o que os tornou os livros que vão “além da Física”.
Poderiam ser metaética ou metapolítica, se se seguissem a tais livros, mas
calhou de ficarem logo após os de física. Ainda bem, porque não daria tão
certo. Provavelmente por isso o nome pegou.
Mas do que trata exatamente a Metafísica? A primeira
pergunta que tem esse caráter questiona o que as coisas são de fato. A
Metafísica, portanto, é o estudo da natureza da realidade. Busca compreender as
características mais profundas de tudo o que existe, para lhe calçar os
fundamentos. Sua principal matéria-prima é a razão, já que é conhecimento
apriorístico. Conhecimento o que?
Vamos detalhar. A priori
é todo o pensamento que se dá por pura dedução, ou seja, que prescinde de uma
experimentação direta para ser conhecido. Ou seja, não preciso ter contato com
o objeto em si para que possa chegar a algumas conclusões sobre ele. Por
exemplo, o clássico triângulo. Por definição, sabemos se tratar de uma figura
de três lados, com três ângulos internos cuja soma obrigatoriamente será de 180
graus. Não preciso materializar um triângulo para chegar a essas conclusões,
basta que eu raciocine e aplique a lógica matemática para descrever
características suas. São conhecimentos que vem antes, a priori em latim. Já o conhecimento a posteriori exige algum contato com o objeto de estudo para que
este se torne cognoscível. O exemplo: quando o cosmonauta Yuri Gagarin, o
primeiro homem a fazer um voo espacial, pode ter campo visual suficiente para
contemplar todo o planeta Terra, ele afirmou: “a Terra é azul”. Percebam que,
mesmo a Ciência da época já contendo elementos para chegar à mesma conclusão, a
romântica frase do soviético dá conta de uma experiência definitiva – agora que
vimos, sabemos que o judiado planetinha é azul. Não se soube disso porque
alguém o raciocinou. Alguém foi lá e viu, investigou, pesquisou, experienciou.
É um conhecimento que vem depois do contato com o objeto. Portanto, a posteriori.
Dadas estas descrições, podemos entender que a apriorística
é o método epistemológico da Metafísica, enquanto a obtenção de informação a posteriori é tarefa da Ciência. E
também podemos concluir que estas formas de conhecimento transitam, como já
escrevi neste texto, sempre no sentido que vai da primeira para a
segunda. Acontece que, de tempos em tempos, alguém decreta a morte da
Metafísica. E não são manés que o fazem, mas gente com cacife, como Hume e
Kant. Essa morte se daria principalmente por três motivos:
1. A transição do conhecimento apriorístico da Metafísica
para o conhecimento a posteriori da
Ciência chegaria a um ponto em que haveria completude. Não haveria mais nada
que não pudesse ser obtido sem que exista forma de experienciar. Tudo seria
Ciência;
2. A Metafísica não traz nada de útil, porque o pensamento
apriorístico não apresenta novidades. Dizer que um triângulo tem três lados,
três ângulos internos e que estes somam 180 graus já está embutido na própria
definição de triângulo. Informação nova é aquela que obriga à experiência: para
saber se um triângulo é equilátero, isósceles ou escaleno, necessitamos
conhecer sua angulatura interna ou a medida dos seus lados, e isso é trabalho
da investigação. Toda dedução metafísica é vazia se não pode ser colocada no
campo da experiência;
3. Ainda que instâncias metafísicas sejam possíveis, são
incognoscíveis. Como temos uma consciência e uma percepção sensória que são
próprias para cada indivíduo, todo contato com um determinado objeto é
variável. Mais ainda: toda materialização de algo tem características próprias,
e o contato com sua forma primordial nunca é completo. Dessa forma, temos
contato com uma concreção individual da coisa-em-si, o fenômeno, e nunca com a
própria coisa-em-si.
Portanto, a Metafísica é:
1. Desnecessária;
2. Inútil;
3. Impraticável.
Basta agora fechar a tampa do caixão? Ora, ora... Nem tanto
a Deus, nem tanto ao Diabo. Se pensarmos na Metafísica como prerrogativa
científica, ela realmente parece servir meramente como usina especulativa. Mas
não podemos esquecer das coisas que a Ciência não alcança. Há uma materialidade
imprescindível para que o experimento e a pesquisa possam agir. Se há algo
suprassensível, isso vai para o campo da Metafísica. O mais belo exemplo é o
tempo, mas vou tratar desta questão em texto próprio. Há as moções dos
sentimentos, a dualidade corpo-alma, a hipótese de finalidade da vida, a
infinitude e a eternidade, a imanência e a transcendência, a existência de
divindades, e aqui temos a confusão com o misticismo. Enquanto este se
consubstancia em narrativas onde a fé é o elo com a suposição afirmativa, na
Metafísica tenta-se explicar a deidade racionalmente. Quando se diz que Deus
existe porque sua presença é perceptível para a alma das pessoas, temos a fé
agindo. Se dissermos que Deus existe porque é preciso que exista um modelo de
perfeição que se plasma a todo o cosmos, para que se tenha um elemento
distintivo para a realidade, temos uma disposição metafísica. Percebem a
diferença? A segunda é erguida sobre uma construção lógica, universal e
necessária, que não depende da sensação individual nem de uma posição
dogmática, seja ela oral, seja ela escrita, ainda que suas proposições não
coadunem com a realidade. Isso distingue a Metafísica real e legítima das
imposturas em que tentam metê-la: ela privilegia a lógica e a construção racional.
Em resumo, para finalizar. A Metafísica é aquela área da
Filosofia que trata da realidade mais profunda, que escapa ao tangível e ao
observável. Foi a principal propositura filosófica desde o seu princípio, até o
momento em que as melhores respostas sobre a natureza da realidade passaram à
Ciência, mas que ainda sobrevive em conceitos sofisticados, como o Designador
Rígido de Kaplan, os Mundos Possíveis Próximos de Lewis e os Contrafactuais de
Kripke, dos quais falarei quando surgir oportunidade. A Metafísica foge do real
palpável para compreender se há algo que vá além do que é possível alcançar
pela técnica, mas não por pura adivinhação. E ainda lembro que a Filosofia
nasce com o espírito da Metafísica, e tudo o mais que seja buscado, ainda que
pelas vias da prova e da pesquisa, guarda consigo o mesmo propósito: saber o
que as coisas são de fato. Não é isso o que a Metafísica buscava e o que outras
áreas ainda buscam?
Recomendação de leitura:
Obviamente, vou recomendar a obra que deu origem ao termo:
ARISTÓTELES. Metafísica.
São Paulo: Edipro, 2012.
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