Marcadores

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Navegações de cabotagem – o Museu do Telefone de Bragança Paulista e a disseminação de informações como “cola” social

Olá!

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Este será o último texto destas navegações de cabotagem até que as coisas se estabilizem de vez e eu possa finalmente retomar minha vida normal, assim como é desejo de tanta gente por aí, embora da minha janela eu veja que a coisa já esteja muito próxima de uma normalidade enviesada. Estou me comportando exemplarmente, com os cabelos a formar um patético rabo-de-cavalo, uns bons quilos a mais e uma adaptação que eu não fazia a mais de trinta anos: rapei fora com o bigode, para melhor me arranjar com a incômoda máscara. Mantive, todavia, a barba, dando a mim um insólito e esotérico aspecto de leprechaun. Mas essas são pequenas intercorrências que eu só coloco aqui para usar a função fática da linguagem. Vamos ao que interessa.

No último dia 01 de março, às portas da pandemia do coronavírus que veio corroer nossas relações, fiz algo que já tinha feito outras vezes: fui a Bragança Paulista para comprar linguiça. Ora (direis), vale a pena ir tão longe só para comprar um saco de embutidos? Respondo que sim, por vários motivos. O primeiro e mais óbvio é que o produto é muito bom mesmo, sua tradição não é à toa. O segundo é a modorra dominical e o terceiro é que Bragança é uma cidade bem bonita, tranquila de se passear. É por este motivo que o passeio não é somente gastronômico, mas também de lazer e (por que não?) cultural. Lá, existe o Museu do Telefone, que resolvi conhecer nesse mesmo dia.


Este museu não está instalado em um lugar aleatório. O prédio abrigava a Companhia Rede Telephonica Bragantina, uma espécie de Vivo que foi unificada com outras empresas para se tornar a Companhia Telefônica Brasileira. Quem for bastante atento, poderá encontrar perdida por aí alguma tampa de poço de visita com as iniciais CTB.


É um casarão típico dos começos do século XX, mais especificamente de 1907, que é a data gravada em seu frontão de pedra. É uma construção de três andares mais porão, com aquela costumeira imprevisão de pavimentos para garagem. Mesmo estando bastante desgastado, guarda uma boa parte de sua beleza original, e há projeto de reforma já aprovado.


Internamente, o espaço utiliza a divisão dos cômodos para separar os equipamentos em uma ordem mais ou menos cronológica. Boa parte dos aparelhos ainda funciona, e se houver disponibilidade, é possível conseguir alguma demonstração.


O telefone é um dos inventos mais contraintuitivos do ser humano. Ao contrário de um motor ou de um sistema hidráulico, a telefonia deixa aquela pulga atrás das orelhas – como minha voz pode correr através de um fio? Um começo de explicação vem da antiga brincadeira do telefone de copo, tão usual na época de eu-menino. A voz falada dentro de um deles produz uma vibração em seu fundo. Esse vai-e-vem é passado ao fio que, uma vez bem esticado, repassa-o aos fundos do outro recipiente, de modo a reproduzir o mesmo padrão vibratório, tornando a emissão original audível. Essa é a mágica por trás do brinquedo.

A lógica aplicável ao telefone propriamente dito é mais ou menos a mesma, com a diferença de que o meio de transmissão não é mecânico, como a vibração do barbante, mas eletromagnético. Este aparelho abaixo é um reversível, muito semelhante ao brinquedo, que tem esse nome por admitir uma única direção de fala, precisando ser revertido para trocar o sentido entre falante e audiente.


Acomodamo-nos a considerar Alexander Graham Bell como inventor do telefone, mas há inúmeras contestações sobre esta autoria. O fato é que ele ganhou a patente e com ela fez fortuna. Sua Bell Company foi uma das fomentadoras da expansão da telefonia a grandes extensões territoriais, utilizando uma base de funcionamento que, na essência, só mudou de arquitetura com o advento da telefonia celular. Embora tenhamos a ilusão de que estamos falando diretamente com  interlocutor na outra ponta da linha, o fato é que acionamos uma central que, por sua vez, promove a ligação entre as duas pontas. Bem nos primórdios, isso era feito através de uma indução magnética promovida pelo giro de uma manivela, como neste velho telefone de faroeste.

Este ato fazia com que a mesa da central recebesse um chamado, através do desarme de um componente chamado “drop”, que nada mais era do que o anteparo do "buraquinho" correspondente à linha que estava chamando. A telefonista introduzia-lhe o plugue do cabo e podia, desta forma, comunicar-se com o demandante da ligação, e transferi-la para o destinatário da mesma.

Essa operação de transferência de ligações é chamada de comutação e passou a ser feita de forma automática nas centrais mais modernas, com a adição de mais e mais linhas, exigindo mesas cada vez maiores e com grande número de operadores.

Entretanto, ainda na época da comutação manual, alguns aparelhos eram ligados diretamente a pontos específicos por uma questão de utilidade pública, como era o caso dos telefones policiais (momento Guarda Belo*). É mais ou menos como ainda acontece com os fones de rodovia, que bastam ser tirados do gancho para fazer uma chamada.

A evolução do telefone fez com que a portatilidade se tornasse não só um desejo, mas uma necessidade, que veio se aprofundando cada vez mais, até os dias de hoje. Mas o uso de pilhas permitiu o uso do aparelho em meio à guerra, através dos telefones de campanha.

Telefone era um troço incrivelmente caro, como já discorri neste texto. Na minha tenra infância, lembro de duas casas que o tinham: a do seu Otávio, por força do trabalho que o exigia, e a do seu Ernesto, que era um pouco melhor situado financeiramente. Quando a linha chegava na casa de algum endividado felizardo, vinha com um aparelho padrão, de disco, como estes abaixo.

Para quem não tinha essa opção, restava os orelhões, aparelhos em franca extinção e que funcionavam na base da ficha, um artefato semelhante a uma moeda com ranhuras, e que garantia três minutos de ligação ao transeunte (18 segundos nas ligações interestaduais).

Por conta desse custo mais alto, era nas empresas onde existia a possibilidade de observar outros usos das linhas telefônicas. Uma das mais fascinantes era o telex, onde era possível transmitir textos escritos entre dois pontos. Nem vou tentar explicar seu confuso funcionamento, com uso de teclados e fitas, mas vou dizer que era uma das grandes ferramentas para que os jornalistas transmitissem suas notícias a longa distância.

Outro aparelho muito comum em escritórios era o fax, que servia para reproduzir remotamente cópias de documentos, através da reprodução de imagens. Tanto o fax quanto o telex caíram em desuso com a chegada do e-mail e dos scanners.

Mais dois: os telefones sem fio (que ainda existem) e as secretárias eletrônicas, com suas pequenas fitas cassete e recados gravados com voz metalizada.


Por fim, há um grande mostruário com vários exemplares de celulares de várias gerações, com destaque aos tijolões que faziam os janotas andarem tortos. Creiam, crianças, que estes desconformes aparelhos limitavam-se unicamente a fazer e a receber ligações. Não havia joguinho algum neles.

Bom... Telefone nunca foi coisa que tenha me atraído a atenção. Bem entendido, os modernos celulares são antes computadores do que telefones, por isso uso à beça. O que me incomoda é aquela vozinha no ouvido e minha interlocução pouco animada. Minhas conversas nunca duram mais do que cinco minutos, e isso já sob uma certa irritação. Há causas? Certamente, mas não consigo interpretá-las muito bem. Talvez algumas das piores notícias de minha vida tenham chegado através do aparelho, no meio das madrugadas. Pode ser também da natureza do meu trabalho, que se baseia em pressão, o que causa um arrepio ao ouvir até o mais baixo dos toques telefônicos. Talvez ainda seja um daqueles estranhos fenômenos que ocorrem quando temos acesso a alguma coisa que jamais imaginamos que teríamos. Nossa sensação de estranhamento faz com que não nos convençamos de nosso direito a usar algo que jamais poderíamos em situação normal. Deve ser por isso que há tantos equipamentos públicos vandalizados, como é o caso das piscinas públicas. Como eu disse, telefone era algo muito caro, e não fazia parte das minhas expectativas de posse até a década de 90, quando já era adulto. Por isso, parece restar algum ranço subconsciente contra o bem. Ora, pensando bem, isso é uma sonora bobagem, porque a patroa era igualmente pobre e igualmente com baixa esperança de adquirir uma linha. Entretanto, quanto a consorte conecta-se com sua mãe, é conversa para horas. Chega a ser estranho. As duas são capazes de ficar tempos a fio em uma linha, e quando se veem pessoalmente a quantidade de mensagens trocadas é muito mais modesta.

Pode ser que seja o conteúdo a explicação. O telefone consegue um nível de privacidade impossível de se obter ao vivo e em cores, mas que dá uma expressividade que não se consegue com palavras escritas. Por isso, indiscrições são mais possíveis de se transmitir através dos pulsos telefônicos. Não digo os grampos que tanto afligem políticos, mas certas coisas são meio inconfessáveis a um público aberto, como é o caso das maledicências, dos maldizeres, das aleivosias, dos murmúrios, das coscuvilhices, das difamações, das futricas, dos fuxicos, das fofocas.

Eu não vou aqui posar de bom moço e dizer que não curto uma fofoquinha. Lembro bem das freguesas da minha mãe que tinham fama de bisbilhoteiras contumazes. O quintal da Edileusa, pedicure do pedaço, era então uma espécie de agência de notícias, especialmente aos sábados. Entretanto, é o tipo de coisa que me causou perturbações nos meus tempos de cristão. Uma frase retumbava em minha cabeça quando me preparava para minhas poucas confissões: “Não é o que entra em sua boca o que o torna impuro, mas o que sai dela” (Mt 15, 11). Isso era uma clara mensagem de que não bastava amar a Deus sobre todas as coisas, não tomar seu santo nome em vão e così via, mas que a língua estava a serviço do diabo e me levava à perdição pelo fato de não saber guardá-la dentro da boca. Dessa forma, tinha comigo que seria necessário uma extensa caderneta para anotar todas as imprecações impiedosas que eram despejadas da minha boca. Mas elas insistiam em estar lá. E, de mais a mais, quando a minha mãe queria puxar o interesse da casa, ela sabia muito bem o que fazer: “gente, vocês não sabem da maior”. Portanto, a fofoca deve ser uma inerência do ser humano, e não simplesmente um defeito. Há teorias para tanto. Uma delas diz que a fofoca é um elemento evolutivo. Vamos ver isso.

Há cerca de 2,5 milhões de anos atrás, um primata diferenciou-se de todos os demais então existentes. Era o Australopithecus, ancestral comum aos hominídeos, e do qual lentamente foram se derivando todas as espécies daquilo que chamamos de gênero homo, do qual nós, bípedes implumes, fazemos parte. Não vou me alongar muito na história, principalmente porque me falta conhecimento para tanto, mas é suficiente dizer que nós, homo sapiens, surgimos no Sul da África há cerca de 200 mil anos, e convivíamos com outras espécies do mesmo gênero, que se espalhavam por todo o globo, como o Homo Erectus, o Homo Heildelbergensis e o Homo Neanderthalensis, além de possivelmente outras espécies. Como é de se supor, a vida em tempos passados era muito mais restrita a uma geografia menor, por isso as espécies tardavam a se espalhar para outras terras. Entretanto, as necessidades de busca por novos territórios levaram nossos ancestrais a tentar sair da África. A expansão mais óbvia era a região do Levante, parte do Oriente Médio ligada ao Mar Mediterrâneo, pelo simples motivo de existir ligação por terra entre os dois continentes. Observações paleontológicas notaram que uma primeira tentativa de incursão pelo Levante ocorreu a cerca de 100 mil anos atrás, onde havia populações neandertais já habitando. O resultado foi ruim, com o desaparecimento desses primeiros aventureiros. Na segunda tentativa, há 70 mil anos, o contrário aconteceu: os sapiens dominaram a área e expandiram seu território cada vez mais, eliminando, expulsando ou se miscigenando com os neandertais, tudo junto ou separado. O que será que houve de diferente entre as duas incursões, que deram resultados tão distintos?

Especula-se na existência de um período em que mudanças drásticas ocorreram no homo sapiens; não em sua conformação física, mas na maneira como a linguagem se desenvolveu, especialmente de modo a dar conta do convívio de grandes grupos. Houve um momento tal em que a capacidade mental da comunidade sapiens conseguiu superar seus limites físicos através da abstração, encontrando um sentido coletivo que dava coesão a massas muito maiores de população, como a introdução de totens e deuses unificadores das tribos. Essa foi a Revolução Cognitiva preconizada por Yuval Harari, professor israelense que é, hoje um dia, um destacado pesquisador das coisas humanas.

Somos animais gregários, ou seja, vivemos em bandos, como eu já disse dezenas de vezes (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui há exemplos). Entretanto, a capacidade de se organizar em grupos tem um limite: a quantidade de membros do grupo. Um grupo muito pequeno é ineficiente; um grupo muito grande é incontrolável. Mesmo um líder muito forte tem dificuldades em manter as rédeas de uma população muito grande. Entretanto, quando se consegue unir algum objetivo comum que vai além da mera concretude do mundo, o grupo tende a se tornar mais homogêneo, através do compartilhamento do mito. Notem como nas histórias antigas das religiões há sempre um deus conduzindo os exércitos, as oferendas pelas boas safras e outros atos que, mesmo desligados da realidade circunstante, tornam possível a agregação de tantos homens. E quanto mais homens, melhor a ocupação em território inimigo, principalmente se eles não tiverem o mesmo nível de coesão do invasor. Na primeira tentativa, pequenos bandos encontraram outras pequenas tribos, mas que tinham a seu favor o conhecimento do terreno e maior disponibilidade de provisões. Na segunda, o jogo virou por conta do volume organizado de gente.

Só que mesmo essa causa comum não é suficiente para explicar o amálgama social. Imaginem um líder que precisa, de uma forma ou de outra, controlar seu pessoal. Em uma população muito grande, ele não terá como perguntar um a um o que está bom ou ruim. Mais ainda: não terá como acompanhar o modo de pensar e a personalidade de cada um dos membros: quem é bom, quem é falso, quem se contraria com suas decisões, quem é fiel e assim por diante. O papel de lhe trazer informações sobre o aparelho social como um todo vem exatamente da fofoca. Ao saber como se posicionavam os membros e o potencial de influência que cada um tinha sobre sua comunidade local, o líder tinha ferramentas para criar uma coesão em torno de propósitos que era impossível antes deste enriquecimento da linguagem. E um grupo coeso faz exatamente aquilo que descrevi logo atrás: tem uma capacidade muito maior de enfrentar um grupo inimigo. Os sapiens, que evoluíram para esse modelo de “compartilhamento de informações”, eram muito mais bem adaptados ao meio do que as dispersas tribos neandertais. Não parece interessante?

Portanto, não fique mangando de sua sogra e vizinhos que fofocam nos telefones e nos muros de nossos bairros. Eles estão apenas sendo humanos. Bons ventos a todos.

Recomendações:

Harari é um dos melhores escritores da atualidade, com um texto altamente fluído. Mas não é só forma – seu conteúdo também é muito bom.

HARARI, Yuval. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. São Paulo: L&PM, 2015.

E recomendo também uma visita ao Museu do Telefone, com a sugestão de pegar uma bela porção de linguiça no restaurante do campo do Bragantino.

Museu do Telefone – Centro Cultural
Praça José Bonifácio, nº 126
Centro
Bragança Paulista/SP

Aproximadamente 90 Km a partir do centro de São Paulo

* Não sei até onde vai o conhecimento dos antigos desenhos da meninada atual. Para quem não sabe, o Guarda Belo era um daqueles famosos personagens secundários essenciais a uma trama. Falo especificamente do desenho Manda-Chuva, que mostra uma caterva de gatos vagabundos que vive às turras com o ordeiro policial em questão. Procurem na internet porque é muito divertido (e um tanto subversivo).

Nenhum comentário:

Postar um comentário