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quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (16 – Filosofia Política)

Olá!


Vamos reciclar rapidinho um tema muitas vezes mencionado neste espaço. É extremamente difícil rastrear com precisão como se desenhou a história humana no pequeno planetinha azul, mas é certo que, tendo descendência comum com tantos outros primatas, tenhamos mais pontos de semelhança que a cara achatada e os olhos frontais. Um destes nos coloca no grupo dos animais gregários, ou seja, aqueles que se associam e vivem junto, partilhando recursos comuns e realizando um processo de custos e benefícios que é vantajoso biologicamente. É fácil de entender por que. Isoladamente, um ser humano é frágil. Seu equipamento corporal não possui grandes destaques, a não ser por um córtex cerebral sui generis. A vida comum permite que o conjunto se comporte como um grande organismo, onde os subgrupos dividem as tarefas de acordo com sua aptidão ou sua disponibilidade: uns caçam, outros coletam, outros vigiam, outros cuidam da prole e assim sucessivamente. Essa estratégia funcionou tão bem que, no final das contas, derivou nas grandes metrópoles que temos hoje. Evidentemente que, na medida em que a quantidade de membros se tornava maior e ao gregarismo foi somado o sedentarismo propiciado pela incipiente agropecuária, as relações entre os membros do grupo foram se tornando mais e mais complexas. Quando a vida consistia em caçar de dia para ter o que comer à noite, as coisas eram bem delineadas – era partir para o pau e pronto. Estando mais fixos e mais protegidos das intempéries, os homens começaram a se deparar com problemas que não existiam: a organização das tarefas, a distribuição dos recursos, a divisão dos resultados dos esforços comuns. Seria muito bonitinho se tudo fosse tratado com justiça, mas, desde que esse é um conceito um tanto dúbio, o que é justo para um pode não ser para outro. Essa é a raiz dos conflitos oriundos da vida comunitária, e, para mediá-los, nasce toda uma linha de pensamentos que tenta compreender como os homens ajustam acordos e concedem a certas pessoas a atribuição de ter poder sobre as demais. Esse é o cerne da Filosofia Política.


Como sempre, vamos começar pela etimologia. Já notaram como há inúmeras cidades que contêm em seu nome o termo polis? Petrópolis, Teresópolis e Florianópolis no Brasil, Indianapolis, Minneapolis e Persépolis no exterior, dentre muitas outras. Isso não é à toa. Vem do conceito grego de cidades-Estado, que eram os grupos humanos que tinham como característica uma forma de poder delegado pelos seus cidadãos a uma determinada figura, que era obtida por alguma forma de consenso – ou porque os cidadãos concordavam que era adequado, ou porque não tinham como derrotá-lo e baixavam as orelhas. É dessa ideia de uma especialização na tarefa da gestão que nasce a Política, a arte de viver na polis.

O desenvolvimento de uma lógica do poder, no entanto, antecede a formação das cidades-Estado. Antes disso, foi preciso que surgisse o próprio conceito de Estado, que corresponde a um poder decisório em nome de uma coletividade. Sendo que os homens não poderiam resolver todas suas pendências e arestas com base em uma guerra interna, foi necessário que a tarefa fosse atribuída a alguém que pudesse ter nas mãos o bastão que decide, e que, em nome desta mesma coletividade, ditasse os rumos que deveriam ser seguidos, como a determinação na execução de tarefas. Entretanto, como os conflitos são o nascedouro da necessidade de uma intervenção externa, podemos dizer que a Política nasce em uma perspectiva judicial. Se observarmos a história dos hebreus, através da Bíblia, veremos que, antes de nomear um rei (o que, aliás, era objeto de contestação de muita gente), em cada aldeia era escolhido um juiz, cuja tarefa era distribuir justiça, exatamente mitigando conflitos. Somente mais tarde, quando há uma institucionalização crescente das territorialidades ocupadas por etnias, que são unidas por um elo cultural e que tem normas e costumes em comum, é que surge a concepção de Estado. Neste momento, não é mais um grupo de pessoas que se relaciona com outros, mas uma nação. Não conversam, discutem ou batalham gregos e troianos, mas Grécia e Tróia. Só que Grécia e Tróia, como Estados, são entidades abstratas, que precisam ser personificadas através de representantes de carne e osso. É nesse âmbito que surge a figura do governante, o ocupante do poder no Estado. Uma pausa para respirar... Sem dúvida alguma, temos uma visão muito torta da figura do político no Brasil, pelo óbvio motivo de que os mesmos fazem um uso ainda mais torto do poder, mas é tarefa da Filosofia Política lembrar que o fogo serve tanto para queimar quanto para aquecer. E Estado não é governo, governo não é Estado, como eu bem acabei de explicar. Está claro?

A delegação do governo confere muitas responsabilidades aos seus ocupantes, mas, por outro lado e até mesmo por isso, também lhe dá muito poder. Por isso mesmo, os primeiros pensadores políticos trataram da questão no âmbito do idealismo. Como deve se portar o bom político? A quem deve se voltar os interesses do Estado? O que torna legítimo o exercício do poder? Já transparece aqui um amplo substrato axiológico, porque, em tese, estaremos sempre falando de valorações do bem ou do mal. Enfim, nessas linhas de pensamento, a Filosofia Política é, essencialmente, uma derivação da Ética. Os historiadores da Filosofia chamam essa corrente de moralista*.

Gente grande usava a abordagem moralista, como Platão e Aristóteles, mas é com os sofistas e sua inédita visão antropocêntrica que podemos falar em um primeiro pensamento político baseado na razão. De um modo geral, a linha-mestra do que eles pensam tem fundamento na estranha democracia direta helênica, baseada, grosso modo, nas discussões na ágora, a praça pública que acampava as decisões políticas na polis. Os sofistas viam a política como um reflexo da cidade: uma construção humana, e, portanto, tão volúvel e variável quanto. Sua ideia geral era a de que os discursos deveriam se adequar às circunstâncias da variabilidade da vida comum, muito mais do que seguir princípios rígidos.

A partir de Platão, a coisa muda de figura. A noção de cidade como criação humana é deixada de lado, por conta da ideia de agrupamento natural. Agora, os homens vivem em cidades porque é de sua natureza, como já vimos, serem gregários. A invenção da cidade nada mais é do que a evolução esperada das antigas tribos que viviam em choças ou cavernas. Sendo assim, é esperado da polis que tenha o mesmo objetivo dos indivíduos: a virtù, em especial a virtude da justiça. Platão não gostava da democracia ateniense, porque não entendia ser um sistema que favorecesse o exercício de virtudes. Para ele, a distribuição da justiça só poderia se dar pela via da sabedoria, e não pelo conteúdo dos discursos, ou pelo poderio econômico. É a figura do rei-filósofo, aristocrática em sua essência, porque poucos saberiam usar sua razão sem se afetar pelas benesses do poder.

Já Aristóteles nos fala sobre a eudaimonia coletiva, ou seja, uma felicidade que seja aplicável a todos, como já refleti neste texto. É possível detectar a cidade feliz: ela é viva, embora tranquila. O espaço público é ocupado por seus cidadãos, que cuidam bem dele e fazem com que ruas e praças sejam lugares aprazíveis. A cidade feliz só é possível quando há equidade distributiva e participativa. Na primeira, a distribuição dos bens da polis é razoável, não havendo pessoas demasiadamente ricas em detrimento de um grande número de pobres; na segunda, todos têm direito de participar da vida política, tendo espaço para dar e receber justiça e para fazer parte do consenso que resolverá o modo de governar a cidade. Esquerdalha, esse tal de Aristóteles.

Notem que, apesar da beleza do idealismo platônico-aristotélico, cada um do seu modo, não foi frequente na história a sua aplicação. Em contraposição à justiça distributiva de Aristóteles, presenciamos a ascensão de tiranos que concentraram todo o poder em suas mãos. E ao rei-filósofo de Platão, tínhamos seu antagonista direto: o imperador que se impunha pela força. Diante do caráter opressivo e repressivo que caracterizaram os diferentes impérios espalhados pela Terra, era inevitável que a Filosofia levantasse a questão da legitimidade. O que dá guarida ao detentor do poder para que os outros o aceitem no lugar onde está colocado?

Como já vimos no caso dos gregos, a legitimidade se daria pelo consenso da polis: o governante está no poder porque a sociedade assim assentiu. Só que, no caso das tiranias, sabemos que esse consenso não existe, ou, ao menos, não é livre. O que há é uma espada na garganta dos cidadãos. A violência, no caso, explica o governante e os motivos que o mantém no poder, mas não o legitima. Essa posição, por mais que o tirano seja poderoso, é instável. Conspirações e alianças podem fazer com que o eixo do poderio se desloque, a não ser que se encontre uma justificativa para a guarda do poder. E essa é encontrada na esfera divina – nasce a crença de que o poder é um legado dos deuses.

Essa regra originar-se-á no politeísmo, mas será confortavelmente absorvida pelo Cristianismo crescente. Deus é um imperador supremo, que não rege somente a Terra e os homens, mas o universo inteiro. Sua vontade basta por si própria, não cabendo aos homens conceituar se está certa ou errada, já que suas razões são inescrutáveis. O poder régio dos homens é uma atribuição que Deus dá a indivíduos específicos, supostamente cunhados para governar, com a benção de sua igreja, e esse mandato, portanto, tem o seu selo ISO-9001. Desta forma, como representante de Deus na Terra, o rei goza de uma submissão muito próxima da que é devida a Deus. Perfeito!

Isso significa que, indistintamente, toda decisão proclamada pelo governante é incontestável, por ser reflexo da palavra divina? Nem sempre. Segundo Santo Agostinho, o poder político realmente emana de Deus, mas o homem é dotado de livre-arbítrio, ou seja, não é mera marionete nas mãos do titeriteiro supremo. Sendo assim, nada ter a ver a conduta do governante com o fato de ter lhe sido dado o poder por Deus. Um chefe político é um homem como outro qualquer, inclusive nas imperfeições. A vida perfeita se encontra fora do mundo, e não nele. Agostinho projeta duas dimensões existenciais: a cidade de Deus e a cidade dos homens. E apenas na primeira há regência direta de Deus e, consequentemente, a perfeição. Na cidade dos homens, é perfeitamente possível que o ocupante do poder degenere – imutável é só Deus, a eternidade é um dos atributos da perfeição. No entanto, o governante, apesar de não atingir, deve perseguir esta mesma perfeição. De que forma? Seguindo as leis divinas.

Já para São Tomás de Aquino, o Estado é um espaço para o desenvolvimento das virtudes comuns, algo típico em um ser comunitário como o homem. Se este espaço não cumpre essa função, principalmente na tirania que só se importa consigo mesma, é justo que as pessoas se revoltem com a situação. A base para isso é o desacordo com a lei divina. A imposição de uma regra que leve à profanação dos valores, por exemplo, é um caso. E aqui justifica-se o motim. No entanto, a revolta contra o dirigente deve se limitar a extirpar o que há de errado e sempre deve sopesar os bens e os males que dela decorrerão ao bem comum, de modo que não se imponha uma situação ainda pior, como a adoção de um regime ainda mais despótico, que aprofunde a imoralidade e afaste a nação cada vez mais da lei divina.

Bom... É possível perceber que, até agora, mencionamos um monte de ideias que visam estabelecer o que é um bom governante, ou, melhor dizendo, como a Política deve ser. No entanto, toda a história humana nos mostra que a luta pelo poder é escapadiça a esta perspectiva deontológica. Das duas, uma (ou ambas): ou as palavras dos filósofos eram poesias soltas ao vento, ou a análise deveria se voltar para o mundo concreto, despido de tanto idealismo. É com esse painel que lida uma outra cepa de pensadores, à Política que é praticada, ao seu funcionamento e aos seus meandros. São justamente chamados de realistas, e é nessa corrente que nasce a imponente obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.

O termo “maquiavélico” já denuncia o alcance da mudança do pensamento filosófico político. Às portas do Renascimento, quando o pensamento científico vai lentamente afastando a metafísica religiosa do substrato do conhecimento, Maquiavel traz uma concepção política vista de dentro. Membro da corte, observou criteriosamente todo o jogo que se desenhou desde os primórdios conhecidos para produzir um livro incisivo, voltado inteiramente para a práxis política, uma espécie de manual sobre como tomar e manter o domínio de povos e adversários. Sua abordagem exclui todo o mote da justificativa do poder; este é obtido pela força e pela astúcia, não por consenso deliberado ou interveniência divina. Ele deixa de olhar para a Política como uma derivação da Ética, e passa a estudar seus mecanismos. Com esse afastamento e esse sentido prático, Maquiavel se torna detestado por aqueles que exigiam um fundo moral, e o adjetivo derivado de seu nome é, até hoje, um sinônimo de demoníaco. Parece que a injustiça nesse ponto de vista está no fato de que há um desalinhamento irreparável entre o que se oferecia como legitimação ao poder e seus corolários éticos e o que se exercia de fato nos bastidores do poder: traições, eliminação de adversários, favorecimento de aliados e um projeto incessante de continuidade nos tronos reais. Neste sentido, a obra maquiaveliana pode ser vista como um libelo contra a hipocrisia dos detentores do poder e dos devaneios moralistas. Ele enfatiza a necessidade do príncipe (termo que pode ser transposto para qualquer categoria de dirigente) acautelar-se para ser amado ou temido, nunca odiado, porque este é o combustível da deposição. Adota a virtude não no sentido utópico da virtù latina, mas da areté original grega, a virtude propositiva de quem sabe o que fazer na hora certa, com a virilidade necessária, em especial diante da fortuna, a personificação do destino inesperado.

Sua obra, apesar das polêmicas, fez escola, e a Política começou a ser vista mais em si mesma. O laço que une os homens, por exemplo, passou a ser tratado mais pragmaticamente. A humanidade se une em torno de uma impossibilidade de viver em estado de guerra permanente, como preconiza Thomas Hobbes em sua obra mais conhecida, o Leviatã (vejam mais aqui). Em seu entendimento, a natureza humana não é corrompida; é má em si. Veja-se que as crianças nascem eminentemente egoístas, e só vão se solidarizando à medida que captam vantagens em seu relacionamento interpessoal. A sociedade nasce de uma espécie de acordo tácito de se aliar e não se agredir, que foi denominado de contrato social**. A garantia de que estes acordos sejam cumpridos reside na existência do Estado, que é colocado acima do interesse individual.

A Filosofia Política continuou a produzir teses contratualistas, notadamente em 
Rousseau e Locke, que aperfeiçoaram cada vez mais a necessidade da preponderância da lei sobre os membros do Estado, a ponto de, através de Montesquieu, chegarmos a mecanismos que limitem o excesso de poder na mão de poucos, de modo a não se colocar ninguém para além do Estado de Direito, princípio com o qual a legislação deve abranger todo o guarda-chuva social, sem diferenciações. E sua ferramenta para a cumprir essa tarefa é a tripartição dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, onde, respectivamente, são colocadas em prática as medidas de administração do Estado, elaboradas as leis e verificados os seus cumprimentos. É algo que perdura até hoje nas democracias, ainda que, em algumas, de maneira cambaia.

A Filosofia Política ainda solta sua coruja sobre muitos outros temas, mas, sucintamente, é sobre a descrição destes desenhos do poder que ela se debruça. Em tempos de instabilidade, como o atual, é importante que se saiba bem em que tipo de terreno se pisa, para que se saiba filtrar a torrente de bobagens que costumeiramente temos presenciado em redes sociais. Bons ventos a todos.

Recomendação de Leitura:

Não confie em ninguém que queira se meter a politizado, mas não saiba te dizer do que trata o livro abaixo. Ele é a base para entender o que é a Política em bases práticas, mesmo que você não queira entendê-lo como um guia de conduta da classe dirigente.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Centauro, 2001.

* É evidente que este termo, no caso, não tem o sentido moderno de “prócer dos bons costumes”, mas de observação dos valores como critério de avaliação.

** Aqui, não há nenhuma equivalência com o termo utilizado para fins contábeis.

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