Vamos reciclar rapidinho um tema muitas vezes mencionado
neste espaço. É extremamente difícil rastrear com precisão como se desenhou a
história humana no pequeno planetinha azul, mas é certo que, tendo descendência
comum com tantos outros primatas, tenhamos mais pontos de semelhança que a cara
achatada e os olhos frontais. Um destes nos coloca no grupo dos animais
gregários, ou seja, aqueles que se associam e vivem junto, partilhando recursos
comuns e realizando um processo de custos e benefícios que é vantajoso
biologicamente. É fácil de entender por que. Isoladamente, um ser humano é
frágil. Seu equipamento corporal não possui grandes destaques, a não ser por um
córtex cerebral sui generis. A vida
comum permite que o conjunto se comporte como um grande organismo, onde os
subgrupos dividem as tarefas de acordo com sua aptidão ou sua disponibilidade:
uns caçam, outros coletam, outros vigiam, outros cuidam da prole e assim sucessivamente.
Essa estratégia funcionou tão bem que, no final das contas, derivou nas grandes
metrópoles que temos hoje. Evidentemente que, na medida em que a quantidade de
membros se tornava maior e ao gregarismo foi somado o sedentarismo propiciado
pela incipiente agropecuária, as relações entre os membros do grupo foram se
tornando mais e mais complexas. Quando a vida consistia em caçar de dia para
ter o que comer à noite, as coisas eram bem delineadas – era partir para o pau
e pronto. Estando mais fixos e mais protegidos das intempéries, os homens
começaram a se deparar com problemas que não existiam: a organização das
tarefas, a distribuição dos recursos, a divisão dos resultados dos esforços
comuns. Seria muito bonitinho se tudo fosse tratado com justiça, mas, desde que
esse é um conceito um tanto dúbio, o que é justo para um pode não ser para
outro. Essa é a raiz dos conflitos oriundos da vida comunitária, e, para
mediá-los, nasce toda uma linha de pensamentos que tenta compreender como os
homens ajustam acordos e concedem a certas pessoas a atribuição de ter poder
sobre as demais. Esse é o cerne da Filosofia Política.
Como sempre, vamos começar pela etimologia. Já notaram como
há inúmeras cidades que contêm em seu nome o termo polis? Petrópolis, Teresópolis e Florianópolis no Brasil,
Indianapolis, Minneapolis e Persépolis no exterior, dentre muitas outras. Isso
não é à toa. Vem do conceito grego de cidades-Estado, que eram os grupos
humanos que tinham como característica uma forma de poder delegado pelos seus
cidadãos a uma determinada figura, que era obtida por alguma forma de consenso
– ou porque os cidadãos concordavam que era adequado, ou porque não tinham como
derrotá-lo e baixavam as orelhas. É dessa ideia de uma especialização na tarefa
da gestão que nasce a Política, a arte de viver na polis.
O desenvolvimento de uma lógica do poder, no entanto,
antecede a formação das cidades-Estado. Antes disso, foi preciso que surgisse o
próprio conceito de Estado, que corresponde a um poder decisório em nome de uma
coletividade. Sendo que os homens não poderiam resolver todas suas pendências e
arestas com base em uma guerra interna, foi necessário que a tarefa fosse
atribuída a alguém que pudesse ter nas mãos o bastão que decide, e que, em nome
desta mesma coletividade, ditasse os rumos que deveriam ser seguidos, como a
determinação na execução de tarefas. Entretanto, como os conflitos são o
nascedouro da necessidade de uma intervenção externa, podemos dizer que a
Política nasce em uma perspectiva judicial. Se observarmos a história dos
hebreus, através da Bíblia, veremos que, antes de nomear um rei (o que, aliás,
era objeto de contestação de muita gente), em cada aldeia era escolhido um
juiz, cuja tarefa era distribuir justiça, exatamente mitigando conflitos.
Somente mais tarde, quando há uma institucionalização crescente das
territorialidades ocupadas por etnias, que são unidas por um elo cultural e que
tem normas e costumes em comum, é que surge a concepção de Estado. Neste
momento, não é mais um grupo de pessoas que se relaciona com outros, mas uma
nação. Não conversam, discutem ou batalham gregos e troianos, mas Grécia e
Tróia. Só que Grécia e Tróia, como Estados, são entidades abstratas, que
precisam ser personificadas através de representantes de carne e osso. É nesse
âmbito que surge a figura do governante, o ocupante do poder no Estado. Uma
pausa para respirar... Sem dúvida alguma, temos uma visão muito torta da figura
do político no Brasil, pelo óbvio motivo de que os mesmos fazem um uso ainda
mais torto do poder, mas é tarefa da Filosofia Política lembrar que o fogo
serve tanto para queimar quanto para aquecer. E Estado não é governo, governo
não é Estado, como eu bem acabei de explicar. Está claro?
A delegação do governo confere muitas responsabilidades aos
seus ocupantes, mas, por outro lado e até mesmo por isso, também lhe dá muito
poder. Por isso mesmo, os primeiros pensadores políticos trataram da questão no
âmbito do idealismo. Como deve se portar o bom político? A quem deve se voltar
os interesses do Estado? O que torna legítimo o exercício do poder? Já
transparece aqui um amplo substrato axiológico, porque, em tese, estaremos
sempre falando de valorações do bem ou do mal. Enfim, nessas linhas de
pensamento, a Filosofia Política é, essencialmente, uma derivação da Ética.
Os historiadores da Filosofia chamam essa corrente de moralista*.
Gente grande usava a abordagem moralista, como Platão e
Aristóteles, mas é com os sofistas e sua inédita
visão antropocêntrica que podemos falar em um primeiro pensamento político
baseado na razão. De um modo geral, a linha-mestra do que eles pensam tem
fundamento na estranha democracia direta helênica, baseada, grosso modo, nas discussões na ágora, a
praça pública que acampava as decisões políticas na polis. Os sofistas viam a
política como um reflexo da cidade: uma construção humana, e, portanto, tão
volúvel e variável quanto. Sua ideia geral era a de que os discursos deveriam
se adequar às circunstâncias da variabilidade da vida comum, muito mais do que
seguir princípios rígidos.
A partir de Platão, a coisa muda de figura. A noção de
cidade como criação humana é deixada de lado, por conta da ideia de agrupamento
natural. Agora, os homens vivem em cidades porque é de sua natureza, como já
vimos, serem gregários. A invenção da cidade nada mais é do que a evolução
esperada das antigas tribos que viviam em choças ou cavernas. Sendo assim, é
esperado da polis que tenha o mesmo objetivo dos indivíduos: a virtù, em especial a virtude da justiça.
Platão não gostava da democracia ateniense, porque não entendia ser um sistema
que favorecesse o exercício de virtudes. Para ele, a distribuição da justiça só
poderia se dar pela via da sabedoria, e não pelo conteúdo dos discursos, ou
pelo poderio econômico. É a figura do rei-filósofo, aristocrática em sua
essência, porque poucos saberiam usar sua razão sem se afetar pelas benesses do
poder.
Já Aristóteles nos fala sobre a eudaimonia coletiva, ou seja, uma felicidade que seja aplicável a
todos, como já refleti neste
texto. É possível detectar a cidade feliz: ela é viva, embora tranquila. O
espaço público é ocupado por seus cidadãos, que cuidam bem dele e fazem com que
ruas e praças sejam lugares aprazíveis. A cidade feliz só é possível quando há
equidade distributiva e participativa. Na primeira, a distribuição dos bens da
polis é razoável, não havendo pessoas demasiadamente ricas em detrimento de um
grande número de pobres; na segunda, todos têm direito de participar da vida
política, tendo espaço para dar e receber justiça e para fazer parte do
consenso que resolverá o modo de governar a cidade. Esquerdalha, esse tal de
Aristóteles.
Notem que, apesar da beleza do idealismo
platônico-aristotélico, cada um do seu modo, não foi frequente na história a sua
aplicação. Em contraposição à justiça distributiva de Aristóteles, presenciamos
a ascensão de tiranos que concentraram todo o poder em suas mãos. E ao
rei-filósofo de Platão, tínhamos seu antagonista direto: o imperador que se
impunha pela força. Diante do caráter opressivo e repressivo que caracterizaram
os diferentes impérios espalhados pela Terra, era inevitável que a Filosofia
levantasse a questão da legitimidade. O que dá guarida ao detentor do poder
para que os outros o aceitem no lugar onde está colocado?
Como já vimos no caso dos gregos, a legitimidade se daria
pelo consenso da polis: o governante está no poder porque a sociedade assim
assentiu. Só que, no caso das tiranias, sabemos que esse consenso não existe,
ou, ao menos, não é livre. O que há é uma espada na garganta dos cidadãos. A
violência, no caso, explica o governante e os motivos que o mantém no poder,
mas não o legitima. Essa posição, por mais que o tirano seja poderoso, é
instável. Conspirações e alianças podem fazer com que o eixo do poderio se
desloque, a não ser que se encontre uma justificativa para a guarda do poder. E
essa é encontrada na esfera divina – nasce a crença de que o poder é um legado
dos deuses.
Essa regra originar-se-á no politeísmo, mas será
confortavelmente absorvida pelo Cristianismo crescente. Deus é um imperador
supremo, que não rege somente a Terra e os homens, mas o universo inteiro. Sua
vontade basta por si própria, não cabendo aos homens conceituar se está certa
ou errada, já que suas razões são inescrutáveis. O poder régio dos homens é uma
atribuição que Deus dá a indivíduos específicos, supostamente cunhados para
governar, com a benção de sua igreja, e esse mandato, portanto, tem o seu selo
ISO-9001. Desta forma, como representante de Deus na Terra, o rei goza de uma
submissão muito próxima da que é devida a Deus. Perfeito!
Isso significa que, indistintamente, toda decisão proclamada
pelo governante é incontestável, por ser reflexo da palavra divina? Nem sempre.
Segundo Santo Agostinho, o poder político realmente emana de Deus, mas o homem
é dotado de livre-arbítrio, ou seja, não é mera marionete nas mãos do
titeriteiro supremo. Sendo assim, nada ter a ver a conduta do governante com o
fato de ter lhe sido dado o poder por Deus. Um chefe político é um homem como
outro qualquer, inclusive nas imperfeições. A vida perfeita se encontra fora do
mundo, e não nele. Agostinho projeta duas dimensões existenciais: a cidade de
Deus e a cidade dos homens. E apenas na primeira há regência direta de Deus e,
consequentemente, a perfeição. Na cidade dos homens, é perfeitamente possível
que o ocupante do poder degenere – imutável é só Deus, a eternidade é um dos
atributos da perfeição. No entanto, o governante, apesar de não atingir, deve perseguir esta mesma perfeição. De que forma? Seguindo as leis
divinas.
Já para São Tomás de Aquino, o Estado é um espaço para o
desenvolvimento das virtudes comuns, algo típico em um ser comunitário como o
homem. Se este espaço não cumpre essa função, principalmente na tirania que só
se importa consigo mesma, é justo que as pessoas se revoltem com a situação. A
base para isso é o desacordo com a lei divina. A imposição de uma regra que
leve à profanação dos valores, por exemplo, é um caso. E aqui justifica-se o
motim. No entanto, a revolta contra o dirigente deve se limitar a extirpar o
que há de errado e sempre deve sopesar os bens e os males que dela decorrerão
ao bem comum, de modo que não se imponha uma situação ainda pior, como a adoção
de um regime ainda mais despótico, que aprofunde a imoralidade e afaste a nação
cada vez mais da lei divina.
Bom... É possível perceber que, até agora, mencionamos um
monte de ideias que visam estabelecer o que é um bom governante, ou, melhor
dizendo, como a Política deve ser. No
entanto, toda a história humana nos mostra que a luta pelo poder é escapadiça a
esta perspectiva deontológica. Das duas, uma (ou ambas): ou as palavras dos
filósofos eram poesias soltas ao vento, ou a análise deveria se voltar para o
mundo concreto, despido de tanto idealismo. É com esse painel que lida uma
outra cepa de pensadores, à Política que é praticada, ao seu funcionamento e
aos seus meandros. São justamente chamados de realistas, e é nessa corrente que nasce a imponente obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.
O termo “maquiavélico” já denuncia o alcance da mudança do
pensamento filosófico político. Às portas do Renascimento, quando o pensamento
científico vai lentamente afastando a metafísica religiosa do substrato do
conhecimento, Maquiavel traz uma concepção política vista de dentro. Membro da
corte, observou criteriosamente todo o jogo que se desenhou desde os primórdios
conhecidos para produzir um livro incisivo, voltado inteiramente para a práxis
política, uma espécie de manual sobre como tomar e manter o domínio de povos e adversários.
Sua abordagem exclui todo o mote da justificativa do poder; este é obtido pela
força e pela astúcia, não por consenso deliberado ou interveniência divina. Ele
deixa de olhar para a Política como uma derivação da Ética, e passa a estudar
seus mecanismos. Com esse afastamento e esse sentido prático, Maquiavel se
torna detestado por aqueles que exigiam um fundo moral, e o adjetivo derivado
de seu nome é, até hoje, um sinônimo de demoníaco. Parece que a injustiça nesse
ponto de vista está no fato de que há um desalinhamento irreparável entre o que
se oferecia como legitimação ao poder e seus corolários éticos e o que se
exercia de fato nos bastidores do poder: traições, eliminação de adversários,
favorecimento de aliados e um projeto incessante de continuidade nos tronos
reais. Neste sentido, a obra maquiaveliana pode ser vista como um libelo contra
a hipocrisia dos detentores do poder e dos devaneios moralistas. Ele enfatiza a
necessidade do príncipe (termo que pode ser transposto para qualquer categoria
de dirigente) acautelar-se para ser amado ou temido, nunca odiado, porque este
é o combustível da deposição. Adota a virtude não no sentido utópico da virtù latina, mas da areté original grega, a virtude
propositiva de quem sabe o que fazer na hora certa, com a virilidade
necessária, em especial diante da fortuna,
a personificação do destino inesperado.
Sua obra, apesar das polêmicas, fez escola, e a Política
começou a ser vista mais em si mesma. O laço que une os homens, por exemplo,
passou a ser tratado mais pragmaticamente. A humanidade se une em torno de uma
impossibilidade de viver em estado de guerra permanente, como preconiza
Thomas Hobbes em sua obra mais conhecida, o Leviatã (vejam mais aqui).
Em seu entendimento, a natureza humana não é corrompida; é má em si. Veja-se
que as crianças nascem eminentemente egoístas, e só vão se solidarizando à
medida que captam vantagens em seu relacionamento interpessoal. A sociedade
nasce de uma espécie de acordo tácito de se aliar e não se agredir, que foi
denominado de contrato social**. A garantia de que estes acordos sejam
cumpridos reside na existência do Estado, que é colocado acima do interesse
individual.
A Filosofia Política continuou a produzir teses
contratualistas, notadamente em
Rousseau e Locke, que aperfeiçoaram cada vez
mais a necessidade da preponderância da lei sobre os membros do Estado, a ponto
de, através de Montesquieu, chegarmos a mecanismos que limitem o excesso de
poder na mão de poucos, de modo a não se colocar ninguém para além do Estado de
Direito, princípio com o qual a legislação deve abranger todo o guarda-chuva
social, sem diferenciações. E sua ferramenta para a cumprir essa tarefa é a tripartição
dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, onde, respectivamente, são
colocadas em prática as medidas de administração do Estado, elaboradas as leis
e verificados os seus cumprimentos. É algo que perdura até hoje nas
democracias, ainda que, em algumas, de maneira cambaia.
A Filosofia Política ainda solta sua coruja sobre muitos
outros temas, mas, sucintamente, é sobre a descrição destes desenhos do poder
que ela se debruça. Em tempos de instabilidade, como o atual, é importante que
se saiba bem em que tipo de terreno se pisa, para que se saiba filtrar a
torrente de bobagens que costumeiramente temos presenciado em redes sociais.
Bons ventos a todos.
Recomendação de Leitura:
Não confie em ninguém que queira se meter a politizado, mas
não saiba te dizer do que trata o livro abaixo. Ele é a base para entender o
que é a Política em bases práticas, mesmo que você não queira entendê-lo como
um guia de conduta da classe dirigente.
MAQUIAVEL, Nicolau. O
Príncipe. São Paulo: Centauro, 2001.
* É evidente que este termo, no caso, não tem o sentido
moderno de “prócer dos bons costumes”, mas de observação dos valores como
critério de avaliação.
** Aqui, não há nenhuma equivalência com o termo utilizado
para fins contábeis.
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