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quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 2º episódio: Joanópolis e a superstição nossa de cada dia

Olá!


Conforme falei no texto anterior desta série, saí de forma tão corrida de casa que tudo estava recheado de incerteza, incluindo até mesmo o lugar onde dormir. Claro que este não é um problema tão complicado quando você parte da premissa que é possível passar a noite em um motel, mas já é preciso que ele exista. Também eu e a patroa temos um pacto: o de nunca encrencar entre nós nos casos de dificuldades encontradas nas viagens. Isso ajuda e muito.

Mas não foi o caso. Ficamos em uma pousadinha cuja localização era tão incerta quanto tudo o mais. Estava no contexto de nossa chegada em Piracaia, mas fica situada em uma estradinha rural que constitui a exata divisa entre esta e Joanópolis, sem ser possível saber muito claramente onde termina uma e começa a outra.


Lembro de Joanópolis por dois motivos básicos: era de onde vinham as bolachas que um vendeiro com uma velha Variant apregoava na rua em que eu morava durante a infância das crianças, e é onde meu filho mais velho conseguiu encontrar vacina contra febre amarela em 2017, em pleno surto da doença. Além disso, Joanópolis também tem a curiosa fama de ser a capital nacional do lobisomem. Vamos lá tirar a limpo essa história.


Esta cidade, como sói acontecer em terras serranas, tem uma quantidade de trilhas tentadora. No caminho que a liga com Piracaia, há uma formação rochosa conhecida como Gigante Adormecido, cuja cabeça é a Pedra do Lopo. Para o lado de lá, já estamos no estado de Minas Gerais, e a serra impera por toda a região, podendo ser visualizada de toda a cidade.


Joanópolis é bem pequena, com uns 12000 habitantes, com o relevo acidentado típico dos contrafortes da Mantiqueira, e o turismo é uma de suas principais atividades, dada sua proximidade à capital. Trekking, escalada e artesanato são algumas das coisas que chamam gente para lá.


O nome da cidade se dá em virtude de seu padroeiro, são João Batista, que, por sua vez, era o nome de um dos fundadores do antigo bairro do Curralinho, João Nogueira. Este é o antigo núcleo que deu origem à futura cidade. A igreja matriz é dedicada a este santo.


Era o local onde a pequena população local e das redondezas se reunia para brincar nas festas juninas, em especial no dia 24 de junho, quando se comemora o atual padroeiro. A cidade foi crescendo ao redor da capelinha que foi erigida para a festa anual, e seu adro era o centro da vida da pequena comunidade.


A construção inicial de Joanópolis tem mais ou menos cento e cinquenta anos, o que garante a existência esparsa de algumas construções de interesse histórico. Uma delas é a Farmácia São João, que tem aquele frontão típico das boticas do passado.


Na parte mais alta da cidade, destaque especial para um museu de garrafas antigas localizado dentro de um armazém, o Empório Cachoeira, onde se vende de tudo: doces, queijos, bebidas, panelas, brinquedos. Encontrei objetos que me despertaram reminiscências de infância, como o refrigerante Cerejinha…


… e as cachaças favoritas dos meus parentes, que eu ia buscar na padaria do seo Gaspar embrulhadas em uma inútil folha de jornal, já que todo mundo sabia o que havia lá.


Vamos para a área rural, porque eu estou a fim de terra. Joanópolis tem algumas cachoeiras bem interessantes, sendo que uma delas é a cachoeira Escondida. Apesar do nome, seu acesso não é tão complicado, precisando de uma curta trilha para acessá-la.


É uma cachoeira boa para crianças, por conta do formato da queda, que é um escorrimento pelas pedras, com um poção rasinho e de escoadouro estreito. Vi umas máquinas mexendo no curso do rio abaixo, o que me assusta um pouco. A conferir.


Foi bom para se refrescar em um dia muito quente. Depois disso, continuei a subida da serra, rumando para a divisa com Minas. No caminho, uma parada no ruralíssimo alambique São Pedro, cercada pelos inhames e taiobas do seo Sebastião, para ver umas malvadas, que ninguém é de ferro.


A cachoeira dos Pretos fica no topo da estrada asfaltada, no caminho para a pedra do Selado, e é cercada por uma infraestrutura turística mais robusta. Lá, fica as nascentes do rio Piracicaba, e em seu leito inicial podemos descer a ladeira de bóia-cross.


Na parte do rio, além disso, pode-se tomar um bom banho na água geladíssima. Alguém de São Thomé das Letras deve ter passado por aqui e dado o costume de se erguer pirâmides de pedras no seu leito.


A cachoeira em si é enorme, com 154 metros de altura, a maior do estado de São Paulo. Cercada de mata nativa e recheada de pedras em sua base, tem seu acesso rigorosamente limitado, pelo evidente risco.


Embora não seja possível tomar uma ducha na base da cachoeira, ainda assim há todo o rio para fazê-lo, bem como pode-se observar a floresta e a imensa quantidade de insetos, especialmente borboletas e besouros, muito numerosos.


Cada um tem seu jeito de apreciar o contato com a natureza. Digamos que a patroa seja mais… telúrica. Deve ser seu restinho de sangue indígena.


Como eu disse, os baixios da cachoeira dos Pretos tem um equipamento turístico que costuma bombar nos finais de semana e feriados. Tem restaurante, quiosques, artesanato e também uma casa do lobisomem, aproveitando a fama que a cidade tem.


Aliás, não só aqui, mas por todo lado estão espalhadas as referências ao tal ser, meio lobo, meio homem, formando uma iconografia que varia do bem humorado para o aterrador.


Pois bem, é aqui que vamos centrar nosso foco. A própria maneira jocosa como os joanopolitanos lidam com a fama da cidade demonstra que não há nenhum tipo de receio com a figura do lobisomem. Só que é possível encontrar dentre os moradores mais antigos aqueles que ainda se arrepiam com o uivo de um cachorro solitário em noites de lua cheia. Por que as superstições ainda persistem, ainda que não percebamos?

Eu tenho nas raízes da minha família gente do interior, bem como a patroa. Quando falamos com parentes de nossa idade, ninguém concorda com a existência de seres folclóricos, mas eu lembro de histórias de redemoinhos estranhos que limpavam paióis, de cabritos enfurecidos que desapareciam por trás das cercas, de cavalos com as costas sangrando, tudo sem muita explicação. Isso tudo era relatado por gente da geração do meu glorioso sogrão, que via molecagens do saci, vinganças da caapora, zombarias da cuca e, claro, as incríveis histórias de terror do lobisomem a cada fenômeno mal compreendido. É a Psicologia que nos vai ajudar a entender a pendenga.

Houve uma ocasião em que eu falei sobre a falácia chamada de deus das lacunas. O fundamento principal dela consiste na imensa dificuldade que o ser humano tem em lidar com buracos nos encadeamentos lógicos. Isso acontece porque estamos tão acostumados com a dicotomia causa-efeito que sempre buscamos fazer associações. Por exemplo: se eu vejo alvoroço qualquer no meio da Praça da Sé, já me pergunto o que está acontecendo – um roubo, uma briga, uma captura policial. Como eu sou prudente, não vou me enfiar no meio do parangolé para saber, mas, como sou curioso, vou nos jornais ou na internet para ver algum eventual cadáver. Se nada de tão grave ocorre, posso até mesmo perguntar para os meus vizinhos ou para os mendigos que conheço se eles sabem o que aconteceu. Se nada obtenho, vou seguir um dos dois caminhos: resignar-me e admitir que nada sei, ou especular sobre um motivador qualquer, sem nenhum tipo de precisão. Minha tendência humana será sempre fazer algum tipo de inferência que traga uma solução para a minha sede de padronização. Enquanto faltar a perna na causa, a perna do efeito permanecerá cambaia.

Mas vamos colocar o lobisomem neste angu. Ao contrário do que acontece com a maioria dos mitos mais comuns no Brasil, de origem indígena ou africana, temos aqui um mito muito antigo de origem europeia. Na mitologia grega, fala-se de Licaonte, o rei da Arcádia, que antes de se tornar regente, tinha uma origem selvagem (daí seu nome, derivado de lobo). Apesar de toda a cultura que adquiriu, um certo espírito bruto ainda habitava nele, de modo a sacrificar todos os homens que viessem de outros países. Isso contrariava a moral hospitaleira que tinha um estatuto de legislação naquela época, o que incomodou Zeus, o deus mais poderoso do panteão grego. Para puni-lo, Zeus se disfarçou de estrangeiro e foi ao seu palácio. Licaonte já se preparava para realizar o esperado holocausto quando Zeus se revelou e transformou-o em um lobo, destruindo seu palácio. Daí por diante, o rei se transformou no licantropo, a mistura de um lobo com um homem.

Essa é só a origem do mito, que foi evoluindo de acordo com as culturas por onde passou. A grande ponte de ligação entre a Europa e nossa pobre Pindorama se deu através dos portugueses, povo cristão que, como tal, trouxe elementos de sua religiosidade à antiga superstição. Embora o motivo pelo qual alguém se torna um lobisomem seja meio difuso (os pecados dos pais, o fruto de um incesto), a mecânica que se dá é algo parecido com o seguinte, com algumas variações: o sétimo filho de um casal sempre penderá a ser um lobisomem. Para evitar a maldição, é preciso que o primeiro dos filhos batize esta criança. Se isso não for feito, a cada noite de lua cheia o fenômeno se repetirá e o lobisomem partirá para a caça, aliando a astúcia humana com a ferocidade lupina.

Está aí um Deus das Lacunas e tanto. Nestes sertões perdidos do passado (ou nem tão passados assim), era relativamente comum encontrar mortes violentas ou desaparecimentos misteriosos. Sem ter meios mais esclarecedores, era bem fácil lembrar das lendas contadas pelas avós e atribuir um defunto desfigurado à ação de um lobisomem. Daí para frente, entra a parte da superstição – um desfiar sem fim de imprecações, esconjuros, rabiscos de sinais da cruz e assim por diante, com o objetivo de evitar contato com o bicho. Há um lado pretensamente pragmático no seu uso? Sim, há – controlar as crianças, justificar os males-feitos, estimular cortinas de fumaça. Mas o principal é mesmo espontâneo, com o efeito colateral de criar um certo hábito do medo, um comportamento que visa isolar os malefícios sem que tenhamos muita proteção contra suas surpresas.

As superstições trabalham com a mesma linha das religiões e muitas vezes se confundem com elas, embora até mesmo ateus guardem seus tabus. Eu lembro, por exemplo, que durante a Copa do Mundo de 1994 fiz questão de assistir todos os jogos da seleção brasileira com a mesmíssima camisa do... Corinthians!!! Para que? Para dar sorte. Imagino quantos italianos fizeram o mesmo com camisas da Juventus, do Milan, da Roma, do Napoli, do Bari, do Ascoli, do Catanzaro... Por que deu certo para mim e não para eles? A boa e velha lógica diria que não há nenhum sentido nisso, que o Brasil venceu a copa porque foi mais competente e pronto. Mas a superstição não é só um modo de lidar com a transcendência, mas de ajudarmos a influenciar os acontecimentos de alguma forma.

E agora vamos para o behaviorismo, corrente psicológica cujo maior expoente é Burrhus Skinner. Ao contrário da psicanálise freudiana, os behavioristas tinham um viés menos filosófico e mais científico, não se preocupando muito em como funcionava a mente, mas como se poderia aferir sua ação. A parte visível da psiquê está no comportamento (behavior), e os primeiros experimentos desta escola se focavam essencialmente em observar como o ambiente condicionava os seres que neles habitavam. As experiências de Pavlov com cachorros são a demonstração mais célebre de como é possível modificar o comportamento de um animal através da associação de eventos paralelos. Skinner concordava com essa visão, mas deu um passo adiante, ao teorizar sobre a maneira como buscamos interferir no meio que nos cerca, em um processo que denominou como condicionamento operante. Vamos esmiuçar mais um pouco.

Todos nós sabemos que nossa relação com o ambiente é recíproca, ou seja, tanto nós agimos no mundo como o mundo age sobre nós, isso é cediço. Em um exemplinho básico, eu olho para o céu e vejo que não vai chover. Vou na tabela de jogos e vejo que há uma boa pedida, um JuveNal na Comendador Souza. Ponho a camisa e vou para a Barra Funda, comer amendoim enquanto a partida se desdobra. Falando dessa forma, temos a sensação de que tudo foi decidido através dos preceitos do livre-arbítrio, com opções feitas através de critérios pessoais. No entanto, Skinner bateria no meu ombro e diria: “É, meu amigo... Você acha que fez tudo isso com autonomia, mas não. Você é um fantochinho de suas conjunturas. Fossem elas diferentes, e você estaria indo para o cinema, ou preferiria lavar a louça”.

Nós já falamos sobre determinismo neste espaço, que, resumidamente, representa um controle inconsciente do ambiente sobre o sujeito. Skinner concorda com essa posição, entendendo que ninguém decide nada espontaneamente, apesar da aparência contrária. Podemos pensar que eu sopesei por conta própria as vantagens de acompanhar o menor clássico da cidade de São Paulo, mas, no entendimento dos behavioristas, é o próprio mundo que, em algum momento da minha vida, instruiu a mim que meu joguinho à tarde é seguro, que é divertido, que a ausência de chuva é mais cômoda, que há estacionamento fácil, que é melhor do que ver filme ou lavar louça e assim por diante. A relação de causalidade sempre se inicia por um conjunto de informações que obtemos do mundo exterior e que nos transforma ANTES de transformarmos o mundo. Sempre agimos e somente agimos de uma única maneira possível: aquela determinada por nosso ambiente.

Mas nós sofremos influências externas que são boas ou más. De que modo, e ainda que inconscientemente, fazemos a seleção do que nos irá moldar o comportamento? Como já diziam os behavioristas anteriores a Skinner, recebemos reforços positivos ou negativos, que fazem com que determinados comportamentos sejam repetidos ou repelidos. A novidade que Skinner traz é que esta relação de estímulo e resposta não é meramente passiva, mas com um nível de interação muito grande, que foi chamado, como eu disse anteriormente, de condicionamento operante. Nesta tese, uma resposta a uma interação qualquer a estimulará a ser repetida ou reprimida. Os experimentos feitos com a “caixa de Skinner” demonstram como isso funciona. Esse aparelho consiste em uma caixa contendo um mecanismo que libera alimento (como uma alavanca), um sinalizador e uma grade elétrica. Quando um ratinho ou um pombo entende que, ao pressionar a alavanca, é-lhe liberada comida, adotarão esse comportamento direto como resposta. Se para lhe ser liberada a comida é preciso que uma luz seja acesa, ele terá este estímulo reforçado, ainda que indiretamente. Se entende que é preciso apertar a alavanca para cessar choques, também aqui haverá o reforço, só que negativo. A sessão que se tornou mais famosa de todas foi a do “pombo supersticioso”, onde se provou que o animal agitava as asas freneticamente para obter comida sem correspondência direta. Inicialmente, era dado ao pombo uma porção de ração tão logo o mesmo agitasse as asas, ou desse um determinado número de voltas para a esquerda ou direita. Isso se deu até formarem-se intervalos regulares, de modo que o pombo sentisse fome no momento certo. Com o estabelecimento desta habitualidade, o que se percebeu é que, quando se aproximava a hora da refeição, o pombo começava a repetir o comportamento reforçado, batendo as asas ou dando voltas em torno da gaiola, como se esse fosse o motivador do alimento. Dessa forma, Skinner pretendia provar que, com o passar do tempo e com os condicionamentos era possível mudar um padrão de comportamento, sem que qualquer vínculo direto fosse mantido com seu propósito.

Bem... E daí? É que o hábito mental de acreditar em explicações simplificadas obedece ao mesmo princípio de condicionamento operante. Todas as vezes em que buscamos a explicação que preenche todos os requisitos para esclarecer uma dúvida, estamos seguindo uma determinação de nossa mente. Ela simplesmente sofre com a incerteza, porque nos colocamos na situação ancestral de estar expostos a riscos, ainda que, como o pombo que não sabe porque bate suas asas, não faça sentido se sentir temeroso. Lançar mão de histórias que supram essas lacunas faz com que tenhamos a sensação de que há como controlar as situações. Se eu tenho a lenda do lobisomem ao meu dispor, sei me proteger melhor do que se eu admitir minha ignorância, porque identifico os suspeitos, conheço as rezas que lhe afastam e sei das estacas recobertas de cera que o matam, enquanto do desconhecido eu só desconheço. É menos perturbador uma fera que me ameaça do que um destino que me escapa do controle. E assim se multiplicam tantas crenças.

Ufa! Conforme já falei, em Joanópolis o lobisomem já deixou de ser um terror para virar atração. Melhor que seja assim, para o bem de nossa sanidade e de nossos pescoços. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

A obra de Skinner é muito extensa, e, por vezes, controversa. Vou deixar aqui um dos livros onde ele discute a questão da ausência do livre-arbítrio.

SKINNER, Burrhus. O Mito da Liberdade. São Paulo: Summus, 1983.

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