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quinta-feira, 17 de abril de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 2º porto: Silveiras entre a arte e o artesanato

Olá!

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Pois muito bem. Na manhã seguinte à minha estadia em Queluz (relato aqui), decidimos, meio de repelão, tomar rumo pela rodovia dos Tropeiros (SP-68). Esta estrada, carregada de história e que já serviu um dia para ligar os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, contém em seu trajeto uma série de pequenas cidades que fazem parte do assim chamado “Vale Histórico”, e foi construída no caminho natural que os tropeiros encontraram pela sua frente para conduzir suas cargas. Estas cidades experimentaram seu apogeu entre os fins do século XIX e começo do século XX. Uma série de fatores históricos e geográficos levaram todas à decadência, e não foi diferente com nosso segundo destino.
Quando comparada a Queluz, a primeira impressão que se tem é a de que Silveiras conseguiu permanecer mais bem conservada. Algumas coisas motivam isso: Silveiras é mais isolada, já que seu centro urbano não margeia a via Dutra; este também foi levantado em uma pequena planície em meio ao vale, o que facilita a construção e a consequente manutenção das construções. Por fim, o tráfego maluco de caminhões levando toras de madeira é infinitamente menor. Desta forma, a cidade é bastante agradável em sua arquitetura simples, com um casario bastante significativo de tempos passados.


Dentre todas as cidades que visitei na turnê, Silveiras é a que mais se dedica a preservar a identidade de rota de tropeiros. Em inúmeros pontos, é possível encontrar referências a esta característica, como, por exemplo, podemos ver na parede abaixo...

... na praça histórica da cidade...

... ou no seu principal centro de cultura, o Espaço Nenê Emboava...

... um belíssimo casarão em excelente estado de preservação. No seu piso superior está situada a Fundação Nacional de Tropeirismo, e é onde acontecem as reuniões de interesse geral da municipalidade (no dia em que eu estava lá, acontecia uma reunião contendo pauta de reivindicação dos moradores da área rural)...

... e no piso térreo, de onde é possível observar toda a estrutura de sustentação do prédio, são mantidos os objetos históricos da cidade...

... inclusive algumas fotos e pertences dos revoltosos da constituinte. Pouco é divulgado, mas como Silveiras ficava no meio do caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro, além de ficar muito próxima ao sul de Minas Gerais, foi palco dos combates de duas importantes revoltas: a Revolução Liberal de 1842 (que chegou a destruir quase completamente as construções da cidade) e a Revolta da Constituinte de 1932, onde foram formadas algumas das mais encarniçadas trincheiras, como podemos ver na foto do cartaz abaixo:

Como não poderia deixar de ser, Silveiras tem a sua igrejona na praça principal da cidade, com o seu coreto e suas flores:

Mas há uma peculiaridade que eu não conhecia. Quase no início da rodovia dos Tropeiros, há um santuário bem mais visitado do que todo o restante da cidade, dedicado à Santa Cabeça de Nossa Senhora. A tal parte foi localizada por um pescador no rio Tietê, e foi parar em Silveiras nas mãos de um gaúcho que se encontrava a caminho do Rio de Janeiro. Foi dada a uma senhora que a depositou em um lugar decente de sua casa. Aos poucos, a cabeça foi pegando a fama de milagrosa, e foi transferida para essa igreja, construída especialmente para ela. Está inserida em um altar, acima de dois anjos que a sustentam. Acho que vale a pena conhecer.

Bom, mas o forte mesmo é o artesanato, como ocorre com outras cidades da região. Porém, aqui, temos como especialidade principal: as peças de madeira. Um exemplo bastante significativo são estes pilões e suas respectivas mãos, escavadas diretamente dos troncos:

Também são produzidos vários animais da região, como araras, corujinhas, galinhas e outros. As lojas de artesanato existem em profusão.

Não só a venda, mas a própria produção de artesanato é ensinada no lugar. Um dos mais interessantes é a artesã que dá suas aulas no coreto da praça da igreja, ao ar livre e a preços módicos.

Silveiras respira destas duas atmosferas: os tropeiros do passado e o artesanato do presente. Adquiri estas duas simpáticas pecinhas, que bem representam essa fusão: um burrinho de tropeiro com sua carga e um carro de boi, ambos feitos de madeira escavada a faca, com a utilização de palha para os adornos.

A loja onde comprei estes dois simpáticos artigos pertence ao Josadir. Trata-se de um carioca simpaticíssimo, descendente de alemães, que trabalhou na CSN, em Volta Redonda. Convidou-nos para um café, e pudemos conhecer seu depósito e sua oficina, cômodos de sua casa. Perguntei o porquê da opção pela mudança de ramo. A resposta foi interessante. Além da óbvia paz de espírito proporcionada por uma cidade menor e um trabalho menos extenuante (o trabalho nas siderúrgicas é um dos mais insalubres quem existem – altas temperaturas e excesso de partículas são uma constante), Josadir nos contou que o envolvimento com o artesanato aumentou sua sensibilidade.
Ora, isso parece uma prerrogativa estética. Mas o artesanato pressupõe repetição e produção seriada. Artesanato pode ser considerado arte? Vamos ver.

Em primeiro lugar, vamos utilizar uma perspectiva dialética. Vamos defender a tese de que o artesanato NÃO pode ser considerado obra de arte. Para tanto, vamos imaginar a seguinte dicotomia: prazer-utilidade. Não há dúvida de que uma peça de artesanato tem a possibilidade de nos causar uma sensação estética, positiva ou negativa. Mas olhamos para as oficinas e vemos centenas de peças semelhantes, fabricadas a partir de moldes e até mesmo com algum grau de especialização. Não temos aqui a liberdade do artista colocada em prática. É uma fábrica, como são as montadoras, as olarias, as cordoarias, as siderúrgicas, cada uma com sua escala. A peça já não interessa pelo que ela tem de belo, mas pelo que ela tem de útil, já que produz riqueza e faz circular dinheiro. Essa visão, tão cara ao capitalismo, é o que chamamos na Filosofia de pragmatismo.
Os principais expoentes desta doutrina epistemológica são William James e John Dewey, mas vamos deixá-los para instante mais propício. Neste momento, é melhor se ocupar de Charles Sanders Peirce, estadunidense que é considerado o criador do termo. O pragmatismo é contrário aos devaneios metafísicos que ficam circundando o debate filosófico praticado até seu surgimento, em meados do século XIX. Para esta escola, importa o que o mundo tem de prático, as coisas em sua utilidade. Um belo exemplo é dado pelo próprio Peirce aos seus alunos: uma tese sobre a dureza dos diamantes. A afirmação “todo diamante é macio até ser tocado” tem conformidade com a lógica. Mas é possível prová-la? A resposta é não. E que diferença ela faria? Um diamante é utilizado basicamente como adorno ou como ferramenta de corte. No pescoço de uma mulher, sua finalidade é estética, não tem a necessidade de ser tocado, mas de ser visto; portanto, não faz diferença se ele é duro ou macio. Em seu uso como ferramenta, o toque no objeto a ser cortado é premissa necessária. Se a tese do diamante macio estiver correta, o que interessa é que, no momento do uso, o diamante estará duro. Portanto, se em algum momento de sua existência um diamante é macio, pouco nos importa. Todas as suas teses sobre a sua maciez não tem significado, já que nunca são apresentadas concretamente a nós.

Falando pragmaticamente, portanto, temos o artesanato visto em sua utilidade como um meio de vida. Isso é comprovado ao observar a repetitividade na reprodução das peças e na escolha dos produtos que mais atraem a clientela. O artesanato não é livre como deve ser a obra de arte.
Ok. Mas será que tudo isso exclui a criatividade? Será impossível reconhecer valor artístico na obra de artesanato? É bem verdade que a vida de um artesão se baseia na repetição de sua produção, mas não se resume a isso. De uma junção da escolha dos materiais que dão suporte ao seu trabalho, da opção e até mesmo da criação de uma ferramenta para a confecção das peças, da observação da realidade e da história que o circunda e principalmente da originalidade da ideia e da abstração expressa na obra criada, podemos enxergar um disparar de sensações que atingem seu objetivo estético: produzir conhecimento sensível. Pensem em quanta informação há em uma peça de artesanato: No burrinho e no carro de boi temos um dado histórico, a prática do tropeirismo. Temos uma informação geográfica, já que a utilização de burros é uma prática típica de regiões com relevo acidentado. Temos uma informação botânica, já que são usados como suporte madeira e palha disponíveis na região. Temos informações da região e do próprio artesão – o seu mundo, visto como ele mesmo vê. E disso tudo brota uma sensação estética, a expressão de uma ideia, que é a base da conceituação da obra de arte. O artesão primeiramente cria, para depois reproduzir. E o que importa no caso é se a peça de artesanato é capaz de causar a sensação estética.

Harold Osborne, crítico de arte e filósofo da estética britânico, afirma que a verdadeira apreensão estética se dá com o maravilhamento, que progressivamente afasta o observador de todo o mundo que o rodeia. A experiência estética é, dessa forma, um movimento em que o isolamento é total. O observador já não se ocupa de nada além de sua própria sensação, nem mesmo o próprio objeto de arte é percebido, mas apenas a sensação que perpassa dele para quem o capta, que é a ideia que ele transmite, de forma pura. A seguinte frase resume otimamente essa sua tese:
A atitude estética caracteriza-se pela concentração da atenção (que separa o objeto percebido de seu entorno), pela suspensão das atividades analíticas e discursivas (ignora o contexto social e histórico), pelo desinteresse e desprendimento (afasta preocupações passadas e futuras) e, enfim, pela indiferença à existência do objeto.”

Disso tudo, chego a uma síntese que me permite concluir que o artesão, ao expressar suas ideias, na criação do protótipo de seu artesanato (que, no final das contas, é seu ganha-pão), é um autêntico artista, a despeito do objetivo pragmático de sua produção. Afinal de contas, assim como a neutralidade científica é um mito, também o desinteresse artístico o é. Mas isso, isoladamente, não tira a criatividade e a capacidade de produzir o espanto e a admiração que as mãos humanas têm ao moldar o objeto estético.
Recomendações de leitura:
Osborne apregoava que a grande experiência estética era uma total absorção do sujeito pelo objeto de arte. Interessante. É possível ler muito mais no livro abaixo:
OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. São Paulo: Cultrix, 1978.

As doutrinas de Peirce até hoje são adotadas no modo de aplicar o capitalismo e o pensamento geral nos Estados Unidos. Para compreendê-lo melhor, indico a obra abaixo:
PEIRCE, Charles S. Semiótica e filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975.

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