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segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 4º episódio: Vinhedo e a colheita de ideias semelhantes às boas uvas

Olá!


Ao contrário dos primeiros dias de viagem, a chuva chegou com força a partir do quarto dia. Parecia que toda a água que estava acumulada na floresta de Monte Verde resolveu se espraiar para a região e fazer molhar a terra ressequida, dando um novo ar de frescor para estas paragens. No primeiro dia de chuva mais intensa, fiz um exercício de verdadeiro retiro com a patroa. Comemos daquilo que a terra dava, bebíamos da água que estava disponível e conversávamos como há muito tempo já não fazíamos mais, relembrando traquinagens de infância, sonhos e frustrações juvenis, gente que veio e gente que se foi, alguns projetos possíveis para nossos joelhos já não tão rijos, até mesmo um pouco de política e futebol. Ficamos assim o dia todo, até a iluminação começar a cair. Foi emblemático, uma espécie de reencontro, alijados de meios digitais e até mesmo de uma musiquinha. Que música o quê, com tantos pássaros e cigarras ao redor, redivivos no fim da tarde em que o estio daquele dia chegou e nos trouxe para uma realidade que parece não existir mais. Recomendo a vocês, meninos e meninas, que pratiquem um abandono desse tipo, sem redes que não sejam de bilro, sem sons que não sejam os naturais, sem bate-papos que não sejam olho no olho, sem cultos que não sejam o do seu corpo como membro do todo natural, sentindo o vento em lenta mudança de temperatura.

O dia seguinte amanheceu ainda sisudo, o que significava que não teríamos estradas de terra em condições de serem encaradas pelo humilde Bedelho, meu caranguinho de pneus já no limite do aceitável. Mapeei a região mentalmente com a cara-metade, tentando achar algum lugarejo que pudesse nos propiciar algumas horas de distração. O impasse foi resolvido através de uma abstração no modelo insight: enquanto eu coçava o piolho, a patroa tamborilava a pequena taça que estava no balcão, uma tacinha que a gente leva para todo lado, a ser usada em momentos mais aconchegantes. Ela diz: se São Roque fosse perto...

Não é, mas estamos nas franjas do Circuito das Frutas, e Vinhedo fica logo ali. Como seu nome mesmo faz entrever, há vinho por lá, ora pois! Dá mais ou menos uma hora de viagem, tem gasolina no tanque, vamos rodar então, para ter uma noite filosófica e romântica.


É bem verdade que, pensando em termos de divisão política, Vinhedo não está na região de Bragança Paulista, mas de Campinas. No entanto, são cerca de 80 quilômetros de distância, em ótima estrada. Isso pode ser traduzido em uma hora e pouco de viagem, mesmo com o chove-não-chove. É uma cidade com IDH muito alto, facilmente perceptível por seu nível de organização urbana. A cidade é fruto de colonização europeia, principalmente italiana, que recebe homenagens no Memorial do Imigrante que fica próximo ao portal de entrada.


No lado oposto, como quem vai para Itatiba, um outro portal leva até a réplica do Cristo Redentor que fica em um mirante que dá vista panorâmica para a cidade. Como chuva e contemplação não costumam combinar, não havia muito o que observar naquele momento.


Pela praça do Centenário do Rotary dava para ter uma dimensão mais exata do clima no momento. A observar de importante, a autoria da obra de arte, que é de Adélio Sarro, um dos artistas brasileiros mais representativos da atualidade, que também possui um memorial de arte em Vinhedo.


Depois de vagar aqui e ali, fomos até um lugar que eu tinha curiosidade em conhecer: o mosteiro de São Bento. Essa bisbilhotice tinha razão de ser desde o dia em que filhos e amigos vieram para cá e falaram mil e uma maravilhas do lugar, uma ilha de paz em meio ao verde, onde eram praticadas atividades para a juventude, et cetera.


De fato, a ordem dos beneditinos é caracterizada pelo seu recolhimento, que inclui momentos de clausura e vida comum, afastados do convívio social. Um dos seus principais preceitos é a oração e o trabalho, tanto que quase todas as atividades locais são feitas pelos monges.


Diferentemente do templo homônimo paulistano, de linhas do Ecletismo alemão, o mosteiro tem uma arquitetura toda moderna, em seção triangular, mas estava com uma reforma a pleno vapor, o que multiplicou sobejamente a quantidade de lama. Em seu pátio, no entanto, estavam os sinos em campanário aberto, uma maneira ousada de rever as tradições.


No interior da igreja, uma disposição muito austera dá uma sensação de incompletude muito grande. Não sei se é intencional. Fiquei babando para dar um pulo no teclado do órgão de tubos para dar uma dedilhadinha básica. Em tempo: não sei nada de teclados.


No final das contas, confrontado com o relato empolgado dos meninos, devo confessar que fiquei um pouco decepcionado. Criei uma imagem muito diferente do que existe na realidade, em que haveria uma sensação de escalada mesmo a partir da base do morro até o templo no alto, em uma simulação do ideário cristão de se atingir os céus. Mas isso não significa nada ruim, apenas uma dissonância entre expectativa e concreção. E, mais ainda, eles mantêm a tradição da boa culinária, com a produção de bolos, pães, bolachas, geleias e licores.


Mas vamos ao vinho, que é o que mais interessava, desde o começo. O nome da cidade está intimamente ligado à uma atividade já bastante antiga na região, quando imigrantes italianos aproveitaram a rota dos tropeiros que iam a Campinas para cultivar suas uvas. Creio que absolutamente todas as adegas estão ligadas à descendência dos nativos da bota: Baccetti, Della Bruna, Azzolin, Andretta (na verdade, um alambique), Campovilla e a mais conhecida de todas, a Ferragut, uma espécie de família decana da vinicultura.


Quando a visita é feita em grupos, há uma monitoração que conta as histórias da família e demonstra as plantações e o processo de fabricação do vinho. Para visitantes avulsos como eu, no entanto, há ainda alguns quadros explicativos e velhos apetrechos de manufatura, além da simpatia do seo Carlos, veterano ainda em ação.


Logo na entrada da vinícola, há várias videiras de uva Shiraz, para produção de vinho fino. É uma inovação em Ilha de Vera Cruz, que vem fazendo relativo sucesso. Produz um bordô muito profundo, onde quase não se observa transparência, e seu sabor é bem marcado, servindo para tomar com pratos contrastantes – carnes vermelhas e queijos picantes, por exemplo. Estava na época de crescimento, com seus sarmentos fortemente agarrados e bagos ainda bem miúdos.


Não saímos de lá com pouco líquido. Os vinhos são saborosos e os preços não matam. Há vinhos para todos os gostos: espumantes, tintos, brancos, rosés, sejam secos, sejam suaves, sejam licorosos. Acredito que nem todas as uvas sejam produzidas pelo próprio estabelecimento, porque são produtos muito variados.


A casa não se limita a vender vinhos tão-somente. Há também boas cachaças, vinagre e suco de uva, além de uma diversidade grande de geleias, compotas, biscoitos e doces. Há também frutas de época, mas calhou de novembro não ser safra de nenhuma delas.


Como a Ferragut, todos os outros praticantes de vitivinicultura da cidade adotam cuidados para manter um nível de qualidade padronizado. Para tanto foi criada a Avivi – Associação de Vitivinicultores de Vinhedo, uma associação que busca essa garantia, e todos os produtos saem selados e numerados de seus produtores.


Meio diferente de São Roque? Parece que sim. Mas isso serve para provar que nem tanto presto culto a deus, nem tanto faço pacto com o diabo. Assim como me divirto com os vinhos populares de lá, também me acomodei bem com os vinhos mais refinados daqui, que nem são tão metidos a besta assim. A questão do gosto apurado já discuti no texto onde falo da Rota do Vinho são-roquense, e lá eu contraponho a certa pressão que nos fazem para categorizar o que é bom e o que é ruim, além de reconhecer que os entendidos podem realmente entender... Em suma, ninguém precisa dizer do que eu devo gostar, mas preciso abrir os olhos para as dicas. Meu espírito é meio que assim mesmo. Procuro tirar conclusões a partir de minhas próprias experiências. Quando falamos de vinhos, pode até parecer bobagem, mas em termos de vida política, nunca é bom se fechar em pacotes prontos, como já observei neste texto que tantas vezes insisto para que vocês, meus poucos leitores, deem uma olhadela.

Tem um videozinho curtíssimo no Youtube, do canal do Clarion de Laffalot, que explicita bem a síntese de minha pesquisa intelectual. Ele se chama Metáfora da Caixa de Bombom e tem meros 2:46. Lá, há um resumo onde enxergo com clareza uma das escolas que floresceram na Grécia após o período de domínio romano, a chamada Filosofia Helenística, predominantemente ética. Trata-se do Ecletismo, e vamos tratar dele.

Desde o início daquilo que chamamos de Filosofia Ocidental, as linhas de pensamento foram se diversificando, de modo a formar vários ramais. Após o advento do período socrático, e na esteira dos grandes sistemas platônico e aristotélico, surgem numerosas escolas de pensamento helênico sobre as quais eu já falei sobre todas: o Estoicismo de Zenon, o Epicurismo de Epicuro, o Cinismo de Diógenes e o Ceticismo de Pirro. Este é o exato momento em que a Grécia perdia sua autonomia para se tornar uma província romana. Como todo domínio muito poderoso, Roma trouxe uma forte influência nas culturas locais dos povos para onde estendia seus braços. No entanto, ao contactar a cultura grega, conheceu pressupostos intelectuais muito consolidados e bem engendrados, o que fez com que seu próprio patrimônio cultural fosse influenciado fortemente. Porém, o substrato de sua cultura era eminentemente prático, enquanto os gregos se permitiam longos devaneios filosóficos. Este momento de interpenetração foi a batuta que regeu um ponto de convergência entre as diferentes linhas de pensamento grego que concorriam entre si.

Muito embora cada uma das escolas que citei no parágrafo anterior possuísse um corpo teórico próprio, o fato é que todas comungavam de um mesmo esqueleto: eram precipuamente correntes do pensamento ético e todas concluíram que o objetivo de vida do ser humano era a felicidade, e a cada uma cumpria abrir mão de alguma coisa para atingi-la, com base na anulação das perturbações propriamente humanas: a dor para os estoicos, o desejo incontrolado para os epicureus, a cultura para os cínicos e a verdade para os céticos. Se estiverem com paciência, leiam cada um dos meus textos para vocês entenderem bem.

O grande problema é que estes diferentes sistemas, apesar de guardarem semelhanças, fecham-se em si mesmos com pouca possibilidade de diálogo, em especial os céticos, que, com sua negação da possibilidade de alcançar uma verdade, meio que inviabilizam qualquer outra opção. O Ecletismo surge então dotado de um espírito de liberdade, não para propriamente criar uma doutrina nova, mas para pinçar o que cada uma delas tem de bom e formar um corpus original a partir de preexistências.

Ecletismo é um termo grego (ek-legein) que significa escolher e ajuntar. Isso corresponde, por exemplo, às apreciações de gosto estético que não se limitam a um único estilo. Menciono como exemplo o próprio mosteiro de São Bento paulistano, que, para quem repara bem, explicitei ser de estilo homônimo. Reúne elementos do barroco e do neoclassicismo para apresentar soluções novas. Mas é possível construir exemplos mais quotidianos. Metaleiros, por exemplo, costumam ser a coisa menos eclética que existe: é só heavy metal, heavy metal, heavy metal. Isso tem a ver com uma ideia de grupo que eu não vou tratar agora, mas um cara eclético curte de tudo o que for bom, ao menos em sua concepção. Portanto, imaginemos que em um belo domingo, sem absolutamente nada para fazer, o sujeito eclético resolva criar uma extensa playlist em um Deezer da vida: bossa nova, progressivo, grunge, hardão setentista, jazz, boogie, sertanejo raiz e até, vejam só, heavy metal. Tudo escolhido entre o que nosso amigo achar de melhor, e reunido em um só repertório para seu enlevo dominical. É isso que os filósofos ecléticos do período helênico faziam, só que com ideias.

Os mais conhecidos filósofos ecléticos foram Filon de Larissa e Antíoco de Áscalon, e o principal organizador romano foi o célebre orador Cícero. Embora a principal característica desta vertente fosse uma completa liberdade na escolha dos princípios adotados por cada um de seus pensadores, há uma espécie de linha geral que a norteia, e há também algum teor original e próprio. De um modo geral, os ecléticos rejeitam a assertiva cética de que é impossível atingir a verdade, e que, portanto, os juízos devem ser suspensos. Para eles, ainda que a certeza absoluta seja de fato absurda, o fato é que sempre existe uma probabilidade da qual podemos nos fiar, em maior ou menor grau. Dessa forma, os ecléticos pensam a verdade como uma aproximação, antecipando as teorias científicas em vários séculos, já que também estas funcionam com este fundamento.

Mas por que os ecléticos acreditavam na aproximação com a verdade? Os céticos viam na diferença de perspectivas o grande problema da obtenção do real. Só que os ecléticos entendiam não ser isso um critério para se dizer que a verdade não existe - o problema não está na verdade em si, mas na maneira como cada um de nós a interpreta. A razão não é coletiva, mas o fato é que ela detecta elementos suficientes para se formar um juízo. Olhemos para uma pedra, por exemplo. Sabemos que ela é dura. Pode ter um grau máximo de dureza, como um diamante, ou praticamente desmanchar ao toque, como talco. Mas sabemos que ela é sólida; se se transforma em líquido, certamente não é uma pedra, ora essa. Sendo assim, a apreciação do que é a verdade desloca-se da existência para a cognoscibilidade. A verdade é um parâmetro abstrato do qual é possível se aproximar, e isso é suficiente para que a mesma não seja renegada.

Outra característica típica do Ecletismo é a tentativa de conciliação de doutrinas distintas. Tentavam provar que o platonismo e o aristotelismo eram uma só coisa, distintas entre si tão somente pelos pontos de vista. A colheita de diversos pontos de escolas distintas não objetiva apenas o exercício de liberdade de pensamento, mas a própria harmonização de ideias contrárias visa reencontrar um rumo comum. Os ecléticos pensavam de modo dialético, mais ou menos como séculos depois Hegel levou à consagração. Em suma, os ecléticos arquitetam suas doutrinas pela síntese, e através dela escolhem os conteúdos que, uma vez reunidos, tiram o extrato de verdade que cada corrente carrega consigo, deixando de lado seus dogmas e enganos.

Esse modo de pensar por síntese se consagrou e se reproduziu através dos tempos, e seria possível dizer que muitos pensadores traduziram suas ideias ecleticamente. No entanto, como corrente filosófica, é a esse período do século II a. C. ao qual nos referimos quando queremos falar sobre Ecletismo. O que vem daí para frente é essa atitude de não se fixar a dogmas imutáveis criados e que seduzem tanta gente, uma quase prisão intelectiva, que até mesmo nos perturba quando apenas queremos tomar uma boa taça de vinho.

Bom... Pegamos um tremendo toró na volta ao Vale das Maritacas, a ponto de ter a visibilidade muito reduzida. Nenhum problema, as coisas são como são. Pelo menos, à noite nossas taças estavam cheias, transbordantes de vinho e da felicidade que os ecléticos tanto procuravam por toda parte. Quero pegar Vinhedo em dias secos para andar mais comodamente por aí, para ver até onde meu ecletismo consegue me levar.

Recomendação de leitura:

Não é muito fácil que escritores tão antigos tenham deixado escritos em quantidade. No entanto, Cícero viveu no auge do poderio romano, e isso favoreceu a manutenção de suas obras. Mesmo tendo sido mais um organizador do que um filósofo, seu legado traduz em boa parte as linhas gerais do Ecletismo.

CÍCERO, Marco Túlio. Sobre a Amizade. São Paulo: Nova Alexandria, 2006

Recomendação de canal:

Ele não produz vídeos já há um bom tempo, mas o que ainda está disponível é de boa qualidade. Clarion de Laffalot teve seu ápice no boom dos canais ateus do YouTube, do qual pertenciam gente como Yuri Grecco, Maestro Bogs, Bematematica, Guilherme Tomishyo e tanta gente boa que anda sumida por aí. De qualquer forma, ainda vale a pena ser assistido.

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