Marcadores

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O cesto da gávea de onde observo o mundo - 7ª mirada (1ª parte): São Luiz do Paraitinga - A História sob as águas e o ciclo existencial

Olá!


Na noite da virada do ano de 2009 para 2010, as fortes chuvas que ocorriam naquele verão produziriam um alagamento como poucas vezes foi visto antes, muito embora não fossem de todo incomuns. Naquele momento, a água não transpôs somente o leito do rio, mas atingiu as casas da cidade em uma altura que mesmo os mais antigos não conseguiam recolher dos alfarrábios de suas memórias. E, da noite para o dia, as casas de pau-a-pique foram cedendo uma a uma, impotentes diante da força da natureza. No paroxismo, desaba a igreja matriz, uma queda física e carregada de simbolismo, que levou consigo muitas das construções que insistiam em se manter de pé, na poderosa onda que se formou. Estou falando de São Luiz do Paraitinga, que se tornou o ponto central de toda a viagem que reportei até agora.



Mas, começando pelo começo. Sendo uma cidade com turismo mais estruturado, há uma oferta mais abundante de vagas para os velejadores de terra firme. Ocorre que, mesmo fora de época, a cidade abriga eventos com muita frequência, o que torna arriscada uma viagem sem reservas. Não foi o nosso caso. Ficamos hospedados no hotel do Donizete, que, além de todo o serviço de hotelaria, é também um bom conhecedor de todos os meandros da cidade, o que garante boas dicas de atividades.



O São Luiz do nome da cidade é um santo da igreja católica, um bispo da cidade de Toulouse (mais comumente chamado de Tolosa por estas plagas) de origem nobre, que viveu longos anos de sua vida preso, por conta de intrigas palacianas. Renunciou à vida na corte para ingressar em um convento franciscano, até ser nomeado bispo, cargo que exerceu até sua morte. Desculpem pela péssima foto, mas foi a única que tirei de sua imagem.


Já o Paraitinga refere-se ao rio que recorta o município. Este rio, cujo nome significa “águas claras”, unindo-se ao rio Paraibuna, dá origem ao rio Paraíba do Sul, o que já falei no texto sobre Paraibuna. É um rio de porte mediano, com as clássicas várzeas lhe acompanhando de lado a lado, o que explica muito do desastre que ocorreu por aqui.


Sim, a cidade de São Luiz do Paraitinga foi construída com a mesma lógica de todas as outras que se originaram de pousos de tropeiros. O mais importante era estar próximo da água: para beber, para alimentar os animais, para se lavar, mesmo para fazer pequenas navegações. Como eram pontos de passagem, ninguém se preocupava muito com inundações das várzeas. Mas o fato é que as cidades que foram sendo construídas ao redor dessas rotas não podiam se distanciar muito, pelas óbvias questões práticas. É o caso, por exemplo, dos mercados. Eram necessariamente erigidos perto dos pousos, sob pena de não cumprir seu papel. Vejam abaixo o mercado de SLP, de 1902. Sua parte de trás dá exatamente para as margens do rio, e ficou completamente encoberto pela enchente:


No caso específico da cidade, além do óbvio comércio que ainda remanesce (modestamente demais), no Mercado se encontra o principal polo de problemas sociais. É um lugarejo que fica aos seus fundos, chamado de “roda de fogo”, onde se concentram os alcoólatras e usuários de droga. Em minha passagem, ninguém me causou nenhum tipo de problema. Devo lembrar que, para quem mora no centro de São Paulo, o problema de SLP parece risível. Até mesmo por isso, seria interessante um melhor olhar do poder público sobre o assunto.

Antes de voltar novamente o foco para o centro nervoso deste texto, cumpre lembrar que São Luiz tem referências bastante claras a seus filhos ilustres, como no caso do coreto maior, que se chama Elpídio dos Santos e que fica na praça Osvaldo Cruz. São, respectivamente, um músico de renome e um dos principais sanitaristas do país, ambos nascidos por aqui. Há ainda o geógrafo Aziz Ab’Saber, de morte mais recente, e talvez por isso ainda não existam referências e reverências tão significativas em seu nome.


A casa onde ambos residiram viraram locais turísticos, sendo que a de Elpídio dos Santos será comentada em minha postagem seguinte, quando versarei sobre a cultura popular local. Já a casa de Osvaldo Cruz abriga um museu, no qual está incorporado o terreno que contém uma pequena pracinha de eventos e um bosque. Infelizmente, não conseguimos acessar o museu pelos cinco dias em que estivemos na cidade, inclusive no final de semana. Mas, pelo menos por fora, está bem conservado.


Retomemos os acontecimentos. Um dos maiores estragos da inundação de 2010 foi a queda da igreja matriz de São Luiz de Tolosa, que mencionei acima. O nível das águas jamais havia subido tanto. Desta vez, toda a área central foi praticamente coberta. Da visão que temos abaixo, quase nem os tetos das casas de dois pavimentos ainda podiam ser enxergados.


Tirei a foto seguinte de um livro que retrata o drama dos moradores. Foto de foto é uma maravilha, né? Mas dá para se ter uma boa ideia do volume de água que invadiu a cidade. Podem acreditar, o rio Paraitinga está aí na foto, indistinguível. Percebam um grande prédio à direita da foto que já perdeu seu frontão. Trata-se da igreja matriz, ainda não inteiramente quedada.


Vejam a igreja reconstruída, com seu desenho original. É uma igreja de aparência robusta, mas que tinha um grave defeito: era feita em taipa de pilão. Muito grossas, poderia ser que resistissem a uma colisão de uma jamanta, mas a água abundante tratou de liquefazer suas bases e levá-las ao chão. Tipo assim: gigante dos pés de barro.


No detalhe, as escadarias de pedra do adro da igreja, para uma melhor percepção da altura que as águas precisaram vencer.


Terra de ladeiras, a cidade tinha rotas de fuga para catástrofes desta monta, o que talvez tenha sido a causa das perdas unicamente materiais. Sim, felizmente não houve mortes.


Estes registros foram obtidos a partir dos vários morros que rodeiam a várzea do rio, como o morro do Cruzeiro e o mirante da Torre, que ficaram a salvo da enchente pelos mais que evidentes motivos. A propósito, a subida para as torres de rádio é bastante íngreme, começando por uma escadaria de uns 200 degraus...


... que adentra por uma comunidade, desembocando em uma trilha de mato baixo, conduzindo até as tais antenas...


... e que propiciam pores-do-sol deste naipe, onde é possível ter uma ampla visão da mancha urbana da cidade:


Vamos retornar ao assunto mais uma vez. As águas que chegaram à igreja matriz primeiramente danificaram os alicerces do campanário, levando-o abaixo com sino, relógio e tudo o mais. A foto abaixo foi tirada na ladeira ao lado, que conduz a outra igreja, mais acima. Talvez seja o registro mais famoso da tragédia: o exato momento da queda da torre.


A igreja do alto da ladeira é a igreja do Rosário, em arquitetura gótica destoante com o restante da cidade, que acabou se tornando casa dos desabrigados nos dias seguintes à inundação.


Algum tempo após, todo o restante da igreja foi ao chão, causando uma grande onda que derrubou muitas das casas que ainda resistiam. Após a reconstrução, alguns restos das paredes originais foram mantidas como memória, enquanto as novas foram refeitas com material menos suscetível aos humores do rio.


Também foram resgatadas várias peças e moldes que compunham o todo da construção, e elas mesmas acabaram por se tornar espaço e objetos de culto, além de explicar o que era e o que se tornou a igreja matriz.


Outro prédio histórico que veio abaixo foi a capela das Mercês, templo mais antigo de SLP, construída no mesmo material da maioria das edificações. Na foto abaixo, temos a igreja já devidamente reconstruída.


Por ocasião de nossa visita, estavam próximas as festividades de 202 anos de inauguração da capela, tão velha quanto o município, e que tem uma curiosa e relativamente rara imagem de Santa Maria grávida. Também a imagem foi objeto de restauração. Não conseguimos fotografá-la ao vivo e em cores, porque a capela só abre às segundas. Fica registrada a foto que tirei do cartaz de divulgação da festa da padroeira.


A imagem que dá melhor dimensão do que foi o volume das águas é a que segue. Este prédio fica situado em uma praça ao lado da matriz, onde foi formado um calçadão e são realizadas feirinhas de artesanato. Há, inclusive, um segundo coreto, menor que o principal. No edifício, funciona um restaurante, cujo proprietário resolveu pintar na parede lateral a altura onde a água chegou.


Apesar da rápida reconstrução, há ainda muitas edificações que permanecem semidestruídas. Algumas delas precisam ser mantidas escoradas.


Neste prédio, por exemplo, dá para observar claramente o problema das construções em pau-a-pique.


Aproximando o olhar, é possível observar como o barro das paredes se desfez, deixando à mostra o madeiramento da estrutura, extremamente fragilizado sem o revestimento que lhe dá consistência. Vejam que é uma parede do segundo pavimento, demonstrando mais uma vez o quanto subiu o nível do rio.


Alguns dos prédios que ainda estão de pé, mas que não foram completamente reformados, são de importância histórica inestimável. Percebam a sutileza deste prédio, elevado em relação ao solo e que possui seus elementos vazados comprovando a existência de porão. Também aqui temos uma arquitetura única nos elementos decorativos de suas esquadrias, com arco abobadado em forma de pétalas e aberturas abauladas. São espécimes únicos no conjunto.


Tudo o que relatei até aqui é uma amostra dos estragos e da reconstrução do Centro Histórico. Muitos outros prédios acabaram por não ser reconstruídos, e há vários terrenos que ficaram vazios. Também em outras localidades se deu o desmantelamento das edificações, mas que não receberam a mesma atenção, como várias casas da localidade conhecida como Várzea do Passarinho, situada na entrada secundária da cidade, próxima à Rod. Osvaldo Cruz.

Apesar da monstruosidade da enchente e suas consequências, não foi a primeira vez que uma invasão das águas causou estragos na cidade. Conta-se que a chegada de um novo pároco a SLP, Monsenhor Ignacio Gioia, nos princípios do século XX, prenunciou a inundação da cidade se os carnavais não deixassem de ser festejados, coisas do diabo que causariam o surgimento de rabos e chifres em quem os praticassem. Em tempos onde os padres eram autoridades máximas das pequenas comarcas do interior, a ameaça teve o resultado desejado: o Carnaval virou uma data como outra qualquer, sem festejos nem farras. Não adiantou nada, óbvio. Em 1967, um terço da população ficou desabrigada e a tradição dos carnavais ainda não havia voltado. Em 2013, novo susto: mais de 200 pessoas ficaram desabrigadas em outra estripulia cometida pelo rio. Ou seja, inundações são mais ou menos habituais neste lugar. Vou contar melhor esta história no próximo texto.

A história da inundação de SLP comoveu todo o Brasil, e, num raro rasgo de generosidade coletiva, muitos donativos e auxílios chegaram à cidade. Mesmo com o alto custo, a empatia causada por uma cidade que ameaçava desaparecer, com toda a sua história e tradição, fez com que o município rapidamente se reconstruísse, muito em função do orgulho de seus habitantes.

Mas toda ferida deixa cicatriz. E as pessoas da cidade ainda hoje olham para o céu e, da mesma forma que as nuvens fazem com o Sol, parecem ter sua confiança encoberta. Alimentado pela catástrofe ainda recente, há um véu de preocupação todas as vezes em que uma chuva se inicia mais grossa. Isso é possível de capturar tanto nos olhares quanto nas histórias que são contadas tão abundantemente quanto a chuva que cai.

Se o ciclo das águas costuma negar piedade aos habitantes de SLP, qual é a mágica que explica sua permanência e seu apego às suas casas e coisas? Com tantos montes e colinas, por que não se pôr à salvo, como fizeram Redenção e Natividade da Serra? Essa história de queda e reconstrução não se assemelha ao Mito de Sísifo*, o rei que desafiou os deuses e que ganhou como pena eterna a carga de uma rocha ao alto da montanha, para vê-la rolar morro abaixo todas as vezes em que o pobre chegava ao cume?

Sim, o mito de Sísifo, visto pela ótica de Albert Camus, filósofo e escritor francês de origem argelina, é um retrato do absurdo da existência. Sísifo sabe que vai arrebentar seus músculos morro acima, carregando seu pesado rochedo, ralando seus pés e seus ombros, banhando-se em suor, muitas vezes em sangue de suas feridas. E sabe que tudo isso será inútil, um trabalho que vai começar outra vez, e outra, e outra...

Não soubesse que todo o seu trabalho seria reiniciado eternamente e não existiria o castigo, apenas a própria vida, cíclica, ininterrupta. O absurdo, portanto, reside na consciência. Mas, enquanto arrasta sua pedra, Sísifo não pensa; somente se preocupa em chegar ao topo. É na perda, ou seja, na pedra que rola morro abaixo, que ele tem a oportunidade de se defrontar com o absurdo de seu destino. É uma conclusão tipicamente existencialista, a corrente filosófica que faz da consciência diante do mundo sua matéria-prima, com suas angústias e solidões, muito embora Camus resistisse a ser incluído no rol dos autores desta tendência, tão em voga nos meados do século XX.

Talvez isso ajude a explicar o fato de tanto amor dos luizenses por sua cidade. É claro que eles têm consciência dos riscos de que o rio não se comporte como um senhor de boa índole, mas a imprevisibilidade da história lhes permite arriscar. Sísifo obtém sua pena porque é apaixonado pela vida, desafia os deuses e a ordem natural das coisas. Sua tarefa infinita é o preço que ele aceitou pagar por sua paixão.

Cada subida é uma esperança de que um dia a pedra não role mais, ainda que se saiba que isso vai ocorrer. O mesmo acontece a cada reconstrução que se faça: a esperança, ou mesmo um certo “foda-se”, de que os dias vindouros serão melhores. O destino de Sísifo foi uma escolha pessoal, e SLP faz isso também, não lamenta seus porvires, porque o absurdo é desmanchado quando reconhecido. Não há outro caminho quanto nos colocamos à frente do absurdo, a não ser que resolvamos descer do ônibus planetário ainda em movimento. Diante do ciclo infinito e inexorável, nada há a fazer senão dar de ombros, retomar a pedra e subir novamente o morro. Nesse aspecto, e ao contrário do que pode parecer, Camus tem sombras de otimismo. Nada melhor do que sustentar que a vida segue.

Não vou cair na tentação de me restringir a um único texto para falar sobre São Luiz do Paraitinga. Vou abrir ainda mais dois textos, abordando aspectos culturais e religiosos. Convido a todos que tiveram paciência até agora para visitá-los também.

Recomendação de leitura:

O Mito de Sísifo, mesmo tratando de temas tão densos quanto o absurdo da vida e a problemática do suicídio, é um livro bom demais de ler. Curto e conciso, otimamente escrito, feito por um literato que o torna levemente lírico, é o tipo de recomendação que faço sem pestanejar.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Lisboa: Livros do Brasil, 2005.

Um bom livro para conhecer a história deste município com nível satisfatório de profundidade, é o que segue.

CAMPOS, Judas T. de (Coord.). A Imperial São Luiz do Paraitinga. História, Cultura e Educação. Taubaté: Unitau, 2011.

* Sísifo foi um rei mitológico de uma região grega chamada Corinto. Driblou duas vezes a morte: na primeira, ofereceu a Tânatos, o deus da morte, um colar em honra à sua beleza, mas se tratava de uma coleira que o deixou aprisionado. Na segunda, estando prestes a morrer, ordenou à sua esposa que não enterrasse seu corpo. Por conta dessa profanação, Sísifo clamou a Hades, deus do inferno, que o permitisse se vingar de sua esposa. Sendo-lhe permitido o retorno ao corpo, aproveitou para fugir, o que não foi possível de fazer para sempre. Sua pena foi carregar eternamente ao cimo de uma alta montanha um enorme rochedo. Logo que terminava a extenuante tarefa, o rochedo rolava escarpa abaixo e Sísifo era obrigado a descer mais uma vez e reiniciar a carga.

Nenhum comentário:

Postar um comentário