Sabe aquelas vezes em que você acha que vai dar de frente
com uma pedra e de repente encontra uma joia? Essa foi a sensação que eu tive
ao visitar a pequena cidade de Monte Alegre do Sul, irmã menos famosa do
Circuito das Águas.
É uma das cidades que fica mais ao sul do conjunto “aquático”, já pegada com a região de Bragança Paulista. Não há uma grande rodovia para acessá-la, o que se faz com estradas vicinais. Sua entrada é guarnecida por um pórtico clássico (não no estilo, mas na onipresença).
Mas, da mesma forma que em outras cidades, há um forte
distintivo de identidade na sua entrada. Assim como em Socorro temos uma grande
moringa, e em Águas de Lindoia há o estilo alemão, em Monte Alegre do Sul surge
uma bonita fonte em forma de cachoeira.
Sem dúvida alguma, Monte Alegre do Sul é a menor cidade de
todas da região, o que se provou até mesmo uma vantagem, dada a imensa tranquilidade
do lugar. A igreja tradicional estava lá. É um Santuário, designação de igreja
que recebe peregrinações. No caso, o do Bom Jesus.
No adro da igreja, uma praça com coreto, entrecortada pelas
duas ruas principais da cidade. Aqui, aquela famosa brincadeirinha da rua da
igreja e da prefeitura é real.
Nos fundos da igreja, há um conjunto interessante. Nele, há algumas grutas com santos e presépios, escadinhas e ladeiras, formando uma espécie de espaço contemplativo, sombreado pelas árvores e pelo morro. Tudo muito calmo e bonito.
Na minha pesquisa inicial, resolvi subir ao alto do monte
onde pontifica o Cristo Redentor...
... e, de lá, pude ter uma dimensão mais exata
da mancha urbana do município. Pequena, de fato. Mas de lá era possível
entrever uma cidade muito bem cuidada, que desde já parabenizo.
Eu não tinha a menor intenção de passar por lá, admito. Digo
mais: nem conhecia sua existência. Mas meti na minha cabeça uma equação que
tinha como raízes a conjunção de preço baixo e disponibilidade de vagas.
Acertei em cheio, mas sem antes passar pelo dissabor de passar em um monte de
outros lugares muito caros, localizados em outros municípios. E, mesmo lá,
tomei um pequeno susto ao verificar que a área urbana não possui hotéis. Fui
encontrar abrigo em uma pequena pousada retirada do centro urbano, chamada
Pousada da Luz, da dona Rosa. Um outeiro
com cinco chalés, piscina, refeitório, playground e um riacho ao redor. No
final da tarde, revezei com a patroa na rede (os pés são dela)...
... para contemplar esse pôr do sol:
Devidamente estabelecidos, partimos para explorar um pouco
mais profundamente a região. A cidade, como bem se sabe, é rica em águas, e
disponibiliza ao visitante um balneário fechado, com sauna, banho de imersão,
ducha escocesa e outras opções fluidas.
Há, como se pode supor, muitas fontes espalhadas pela cidade. Estivemos em duas das mais urbanas, mas sabemos que há várias outras espalhadas pela zona rural. Há uma nas vizinhanças do balneário municipal...
Aliás, já que falei da gare, ela tem a função de espaço
cultural, sem contar o exemplar de locomotiva lá localizado, bastante íntegro.
Quase na entrada de Monte Alegre do Sul, há uma curiosa cidadezinha construída para crianças, que tem banquinho, vendinha, quadrinha, igrejinha... Não me furtei a entrar em algumas delas, mas chapei o coco no teto de uma delas. Bem feito!
Na estradinha que liga o centro da cidade ao distrito de Mostardas, encontramos bons pontos de balneabilidade em rios, como o Camanducaia e seus afluentes...
... incluindo algumas cachoeiras, como a Andorinha (vacilo,
não tirei nenhuma foto) e a do Sol, que fica no interior de uma propriedade
particular.
Mas estava de graça no dia, por escassez de água. Deu para
molhar os pés, e nada mais.
Já no distrito de Mostardas, encontramos o José Márcio,
fabricante de artigos de madeira, um talentoso artesão que vive nesta bela
casinha, onde faz seus esqueletos de dinossauros...
... e muitas coisas mais, como retratos, jogos de montar, barquinhos e outros, como essa bancadinha de marceneiro:
Mas é na produção de cachaça que Monte Alegre do Sul ganha o jogo. De acordo com a prefeitura, a cidade possui 37 alambiques, sendo que nenhum deles produz suas pinguinhas de maneira totalmente industrial. Passamos, entre todas as nossas idas e vindas, pelas seguintes:
Casa da Cachaça:
É a mais sofisticada de todas. Tem mais um jeitão de loja, mas produz muita coisa do tipo exportação. Possui em exposição um aparelho de destilação todo feito em cobre.
Adega Peterlini:
Forno de barro no estilo da vovó, com café quente disponível
a toda hora, pães caseiros e movelaria rústica, é o lugar onde mais molhamos
o bico frequentamos, atendidos com cortesia pelas irmãs Edivana e Elaine.
É a típica casinha de interior, destacando-se uma curiosa
árvore de Natal construída com garrafas diversas.
Abaixo da casa, a adega. Ambiente necessariamente protegido
da luz, com suas barricas. Ali, também se trabalha com bons vinhos, feitos a
partir de uvas Isabel e Bordô.
Ateliê da Fonte:
É uma combinação entre adega, barzinho e, como diz o nome,
ateliê. Nele, há muitas peças de artesanato fino, elaborados pela ceramista
Dadá Macedo. O ambiente é um autêntico espetáculo, com a fonte que nomina o
estabelecimento.
Chora Menina:
Voltamos à zona rural, onde fomos recebidos pelo seo Nelson e pela Havanir. É uma das
cachaças mais premiadas de uma cidade que já recebe muitos prêmios.
Uma pequena variedade de excelentes bebidas, usadas
inclusive em um curioso ritual festivo de fecha-corpo, realizado em todas as
sextas-feiras santas. A conferir.
Cantinho da Ni:
Um dos lugares mais famosos e agradáveis de todos, pilotado
pela Denise, descendente do pioneiro Dirceu Daolio, que, além dos produtos
etílicos, possui vasto arsenal de geleias e de pimentas.
Neno Campanari:
Para quem quiser conhecer todo o processo produtivo da
cachaça, esse é o lugar. O próprio Neno faz questão de apresentar em pessoa a engenhoca,
o alambique, os tanques de fermentação e explicar tim-tim por tim-tim como se
faz para extrair da cana a sua alma. Também é possível comer um bom queijo
vindo diretamente da mineira Cambuí, que entende dessas coisas.
Sítio do Vidião:
De todas aquelas que visitamos, é a menor. Aliás, é bem
escondidinha. Olhando da estradinha, tudo o que se vê é essa bonita casa e um
cachorro que só tem tamanho. Possui um acervo pequeno, mas bastante saboroso,
porque os tonéis utilizam as madeiras corretas.
Uma curiosidade. O Vidião, já falecido, dizia que sua
cachaça era tão boa que mesmo seu cavalo gostava de dar um tapa no beiço. Ele
fez questão de eternizar o fato no rótulo de suas bebidas.
Nono Rouxinolli:
Aqui, estamos no alto de um morro. De cara, um veículo
utilizado para fazer pequenos passeios para as crianças. Lembrou-me a camicleta
dos personagens Shazam e Xerife, defendidos por Paulo José e Flavio Migliaccio,
no meio da década de 70. Este é um lugar que também tem o café como lado forte.
Além disso, é bastante notável a quantidade de licores de
tudo quanto é tipo, todos com mostruários a disposição.
Depois de um périplo destes, é quase impossível não estar caindo, principalmente porque não há nenhuma semelhança entre estes produtos artesanais e aqueles obtidos por meio industrial, mais aparentados com o álcool de farmácia.
Depois de um périplo destes, é quase impossível não estar caindo, principalmente porque não há nenhuma semelhança entre estes produtos artesanais e aqueles obtidos por meio industrial, mais aparentados com o álcool de farmácia.
Prometo não demorar, já prendi muito a atenção de todos.
Quem me vê cantar tantas loas às cachaças de Monte Alegre do Sul pensa, de
cara, duas coisas: que eu sou um bêbado e que não existe nenhum problema no
consumo destas bebidas. Nada disso.
Em primeiro lugar, bebo muito pouco e nunca o faço sozinho.
E, logo em seguida, é preciso muito cuidado com o consumo de álcool. Vejo quase
todo dia um mendigo que mora aqui perto de casa, cujo apelido é Bonitão. Claro que não
constitui uma bela figura, mas se trata de um cidadão de paz, que chama quase
todo mundo de bonitão, bonitona e outros elogios que acabaram por lhe conferir
o apelido. É um mendigo clássico, daqueles que passa o dia de obter meia dúzia
de trocados, geralmente utilizados para consumir suas pinguinhas.
Eu já não consigo distinguir quando o nosso amigo está
sóbrio ou embriagado. Há alguns momentos em que ele está mais casmurro, e penso
que são seus poucos instantes de sobriedade. De vez em quando, pago um café com
leite e pão com manteiga para o gajo, não porque queira dar um gostinho de
classe média para o infeliz, mas para que se alimente um pouco.
Bonitão tem andado doente. Parece que está atacado de gota,
ou outra doença que mexa com as articulações. Ele tem o andar claudicante dos
ébrios 100% do tempo, como se os pés estivessem redondos. Isso não é um bom
sinal. Outro dia, quando eu voltava tarde da noite para casa, vi que ele estava
convulsionando. Chamei a ambulância, porque meus conhecimentos médicos são
parcos. Depois disso, ele sumiu bem por uns quinze dias, acho que foi
internado. Quando ressurgiu, já estava bêbado de novo, completamente dominado
pelo seu vício.
Repito: é preciso muito cuidado com o álcool. Ele possui um
defeito que o torna muito grave: reluta-se muito em admiti-lo como droga. E
como possui boa aceitação social, entendo ser o pior vício que encontramos por
nossas ruas nos dias de hoje, pior até mesmo que o crack. Fala-se muito na
liberação da comercialização da maconha, mas, mesmo que isso aconteça, demorará
um bom tempo até que seja uma droga aceita socialmente. Não vai ser do dia para
a noite que dar um tapinha na pantera em um fim de semana vai ser visto como
algo normal. Mas a cerveja, o vinho e a caipirinha o são, principalmente quando
acompanhando um churrasco ou petiscos mil. Não é verdade? Pense em azeitona e
na cervejinha que a acompanha. No queijo e no vinho. Na feijoada e na
caipirinha.
O álcool é uma das drogas que mais alteram a atividade
mental. Tem o duplo efeito de excitar e deprimir, em ato contínuo. E, por
vezes, revelam idiossincrasias das pessoas que não são vistas em momento de
sobriedade. O álcool, nesses casos, parece embebedar o superego em primeiro lugar.
Dá laço frouxo àquela instância psíquica onde são amarradas as mãos ávidas e os
pés ligeiros dos instintos, e com isso fazemos coisas que até Deus duvida, como
fazer strip-tease na mesa do bar, ou cantar músicas inimagináveis no karaokê,
ou tomar valentia para contar verdades recônditas e até mesmo brigar,
pateticamente, com outro bêbado. E há quem se desiniba e filosofe.
Sobre esse último item, há um interessante livro de Daniel
Lins em que se trata a questão de literatos que usavam e abusavam do álcool como
liberadores de criatividade em suas obras. Através do estudo dos livros de
diversos autores “etílicos”, Daniel Lins traça uma teoria alcoólica, em que se
demonstra como a marvada pinga (marvado uísque, marvado vinho) traz influências
delineadoras nas tramas e ousadia das histórias, em como são liberadas
filosofias que ficariam escondidinhas na abstinência. Seu julgamento não é
moral – não defende o alcoolismo. É estético. Prende-se ao que se obtém em uma
obra de arte a partir do consumo de álcool, não de seus efeitos orgânicos e
sociais. Neste sentido, é uma visão inédita e interessante, que vale a pena ser
conhecida.
Aprecie com moderação.Recomendação de leitura:
O tal livro.
LINS, Daniel. O Último
Copo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.
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