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sábado, 27 de julho de 2013

Ser estoico é ser heroico

Olá!

Desculpem todos os que estão lendo estas mal traçadas, mas não resisti à tentação da frasezinha ruim que nomina este texto. Também digo que essas novas regras gramaticais estão deixando o conjunto da frase algo absolutamente feio. Mas isso é bobagem, vamos ao que interessa.
Tenho um colega de trabalho chamado João Roberto (que é um cara legal, mas não tinha dezesseis – quem é dos 80 sabe do que estou falando), um tanto voluntarioso, e que gosta de defender com certo grau de propriedade as suas posições. Bem, esse modo de ser pode valer a pena em certas ocasiões, mas em outras é absolutamente problemático. Vez dessas, disse a ele: “Roberto, você precisa reagir estoicamente. Ser estoico é ser heroico”. Diante da sua cara de espanto e desconfiança, resolvi tratar ligeiramente sobre o assunto.
Uma hora aqui, outra hora ali, escuto alguém utilizando esse termo, com o sentido geral de ser resiliente, de aguentar porrada sem mover músculo, de manter a calma mesmo nas situações mais adversas. Mas ele designa um conjunto relativamente amplo de pensamentos filosóficos, muito maior do que a conotação moderna pode fazer supor. Isso tudo tem origem com um cidadão chamado Zenon, da cidade de Cítio, um lugarejo situado na ilha de Chipre, que naqueles tempos era possessão grega. Sua origem era semítica, o que lhe impedia de adquirir propriedades (e, em consequência, ser considerado cidadão grego). Por conta disso, não pode fundar uma escola na acepção da palavra, como a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles ou o Jardim de Epicuro (este último, contemporâneo seu). Para solucionar este problema, reunia seus alunos em um pórtico coberto. Como a palavra pórtico se diz Stoá em grego, seus seguidores ficaram conhecidos como estoicos, e sua corrente passou a ser denominada de estoicismo.
Ao contrário de outras doutrinas filosóficas, o estoicismo não possui um cânon fechado de princípios. Zenon foi um inaugurador, e não um mentor de pensamento inamovível. Além do mais, os escritos destes pensadores foram quase todos perdidos em sua raiz grega, restando apenas referências indiretas e comentadores, além da vertente definida pelo filósofo Crísipo (parcial, portanto) e pelos estoicos romanos, estes sim com bastantes manuscritos preservados. Desta forma, nunca é confortável estabelecer com rigor todos os fundamentos que nortearam esta escola. Mas vamos tentar.
O estoicismo tem um tripé a sustentar seu edifício, ou melhor dizendo, seu pomar (no dizer dos próprios). A Lógica é o muro que rodeia e dá guarida à plantação. A Cosmologia (Física) pode ser comparada às árvores, que, por sua vez, sustentam e dão possibilidade de existência aos frutos da Ética, seu objetivo último.
Falando sobre a lógica, o estoico entende-a como um crivo para a verdade, e que esta somente pode ser apreendida através dos sentidos, como já haviam proclamado alguns pré-socráticos e seria consagrado mais tarde, através dos empiristas. Há uma novidade, porém. Essa apreensão pressupõe uma aceitação por parte do sujeito que conhece, ela não se dá de maneira passiva. O processo de ver e ouvir pode ou não ser aceito como conhecimento, é preciso que eu esteja convencido do que me dizem os sentidos  para que eu estabeleça sua veracidade. É a lógica que é o critério regulador dos sentidos, porque sabemos o quanto eles podem distorcer a realidade. E o que temos é que, ao admitir algo como verdadeiro, esse balanceamento lógico e essa admissibilidade do objeto colocado defronte a si induz em nós uma representação, que os estoicos chamarão de katálepsis.
Pois bem. Essa forma de conceituar o conhecimento faz duas remissões, bem mais modernas: a do sujeito como participante do processo de conhecimento e a da importância da consciência na formação dos juízos, tão ao gosto da filosofia fenomenológica.  Nossos fragmentados gregos eram antigos, mas não antiquados...
Bom. Poderíamos dizer: “Oh! Que lindo! Sou partícipe de meu próprio saber. As coisas não são nada sem minha representação”. De fato, é muito poético. A lógica assegura a veracidade da representação, mas o que assegura a veracidade da concatenação lógica? Para sabermos, precisamos compreender como funciona a physis estoica, ou seja, quais as engrenagens que giram para manter o universo em funcionamento.
As correntes predominantes do estoicismo veem a Física de uma maneira inédita até então. Para começo, eles eram materialistas. Achavam que o Ser, para ser considerado como tal, deveria ser capaz da ação e do sofrimento. Ora, estas são características dos corpos, portanto o Ser coincide com o corpo, sem transcendê-lo. Isso quer dizer que o estoicismo é monista: não há nada além dos corpos, nem alma, nem espírito, nem nada que não seja imanente.
Neste sentido, podemos imediatamente concluir que os estoicos são ateus, correto? Tsc, tsc, tsc... muito pelo contrário. Vamos ver.
Vamos escalar nosso estagirita Aristóteles para nos ensinar sobre o Ser. Para ele, o Ser se explicava em causas, sendo que duas delas, a eficiente e a final, serviam para explicar o dinamismo das essências, traduzindo a origem e a finalidade do Ser. Mas, para designá-lo com exatidão, era preciso observá-lo estaticamente, verificando sua matéria e sua forma. A matéria explica o Ser em sua constituição física, daquilo que é feito. Já a forma dá razão de existir para a matéria, explica o Ser para além de sua matéria. A união entre matéria e forma era aquilo que Aristóteles chamava de sínolo, e apenas nele o Ser se tornava possível e tangível, já que a matéria isolada é meramente física e a forma isolada é puramente mental. Para que um cavalo seja um cavalo, é preciso que haja sua carne e seus ossos, e que saibamos que esse conjunto de células constitui um equino.
Os estoicos concordam com o sínolo de Aristóteles, mas com uma diferença fundamental. Enquanto para o dono do Liceu a forma é o aspecto do Ser que lhe define e dá expressão à matéria, para Zenon e seus asseclas a forma é um princípio ativo regido pelo Logos divino. Ou seja, Deus está presente em tudo e tudo tem Deus em sua constituição fundamental. Deus é corpo e faz parte dos corpos através da forma. O estoicismo é, pois, panteísta.
Além disso, a teologia estoica é uma ontologia, é o que podemos concluir. Podemos dizer que tudo o que existe é Deus? Sim, ao menos na forma. E o nada (não-ser), existe? Sim também. Deus coincide com todo o universo, mas, como os estoicos são materialistas, onde a matéria não existe, não há nada; nem Ser, nem alma, nem entes, nem Deus. Assim, as descontinuidades cósmicas estão desprovidas de Ser, porque são incorpóreas, principalmente se lembrarmos de que aquilo que define a corporeidade (e consequentemente o Ser) é a sua capacidade de agir e sofrer.


Este universo permeado pelo Logos divino é a expressão máxima da perfeição da divindade, já que ela está presente em tudo, inclusive em todo agir e sofrer. Todas as ocorrências são necessárias e eficazes, ainda que não seja possível perceber isso à primeira vista. As coisas singulares podem parecer defeituosas, mas isso é aparência; no complexo cósmico, cada coisa se justifica, cada ato se explica, cada sofrimento tem seu motivo. Mesmo sendo a matéria corruptível e os corpos destrutíveis, a perfeição permanece. Um belo dia, o cosmos tal qual conhecemos entrará em colapso e será destruído, para logo em seguida ressurgir, tal qual era nos primórdios, e sua nova existência se desenrolará de maneira idêntica à anterior, porque continua a ser a expressão de uma perfeição, e, se há perfeição, ela não pode ser diferente da outra; cada mar, cada ilha, cada casa, cada pessoa, cada inseto, cada história, cada doença, cada decepção, tudo se repetirá, idêntica e indefinidamente, até uma nova destruição e novo renascimento; e isso acontecerá mais uma vez, e outra, e mais outra, infinitamente...
Meus leitores, vocês devem estar pensando: “Ah, mas agora esse louco está falando do Eterno Retorno de Nietszche”. Não, errado! Nietszche é que se reportou aos estoicos ao inseri-lo em sua Filosofia. Só o sentido é diferente. Enquanto o bigodudo utiliza o eterno retorno simbolicamente para expressar os motivos pelos quais a vida deve valer a pena, Zenon e amigos concluem que a vida é fado, é sina, é destino, e é nisso que eles calcam sua famosa doutrina ética: a apatia.
Em primeiro lugar, cumpre fazer algumas observações sobre a palavra em si. Apatia vem da junção dos termos gregos A, que significa Não, e pathos, que significa paixão, catástrofe, sofrimento. Apatia, portanto, significa, não-paixão, não-dor. Perceba que o termo pathos está na raiz de palavras utilizadas tanto para designar o amor ardoroso dos amantes quanto a grandes dores, como é a Paixão de Cristo, por exemplo, ou é utilizado para designar doenças, como na palavra patologia, ou para designar pessoas dignas de pena, os patetas. De uma forma ou de outra, pathos está ligado a sentimentos intensos, exatamente o oposto do que pretende a apatia.
Andemos. Da mesma forma que a Eudaimonia aristotélica e o hedonismo epicureu, a ética estoica se baseia na busca da felicidade. E ser feliz significa viver harmonicamente com a natureza. A natureza humana é calcada na razão, no Logos, e como este é Deus na natureza, o homem tem “mais” Deus que as demais criaturas. Isso o obriga a ter ações moralmente mais aperfeiçoadas. Em nossa visão judaico-cristã, imaginamos que uma boa dose de orações fará com que tenhamos forças para encarar essas dificuldades sob o auxílio de Deus. Mas há uma diferença decisiva para os estoicos: Deus não possui uma ligação afetiva com sua criação. A divindade estoica não é pessoal, não sente misericórdia, não possui a relação paternal dos cristãos. Para resumir de um modo meio tosco: Deus existe, criou tudo e pulou fora, para cuidar do equilíbrio do universo; está se cagando para o homem, que tem de se virar sozinho com suas agruras. O destino já está dado, o fardo será carregado, seja ele qual for, e o sábio estoico sabe que a vida tem mais a ser suportado do que gozado; a verdadeira sabedoria está na apatia, no não sofrer. Isso significa se afastar e resistir a qualquer tipo de paixão ou de sentimentos, que são tidos como desviantes da razão. O caminho para a obtenção da apatia é o autocontrole e o costume em seu uso, o que hoje chamamos pelo pernóstico nome de resiliência.
Era isso. Poderia falar mais (por exemplo, que os estoicos formaram a primeira filosofia libertária, contrária à escravatura, já que, sendo panteísta, não achava digno que se escravizasse alguém que é parte de Deus), mas para explicar o uso contemporâneo do termo já me parece o suficiente.
Recomendação de leitura:
Infelizmente, não sobraram escritos originais dos primeiros estoicos, principalmente de Zenon. O melhor a fazer, nesse caso, é pegar um bom comentador e lê-lo. O livro abaixo é interessante:
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.

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