Desculpem todos os que estão lendo estas mal traçadas, mas
não resisti à tentação da frasezinha ruim que nomina este texto. Também digo
que essas novas regras gramaticais estão deixando o conjunto da frase algo
absolutamente feio. Mas isso é bobagem, vamos ao que interessa.
Tenho um colega de trabalho chamado João Roberto (que é um
cara legal, mas não tinha dezesseis – quem é dos 80 sabe do que estou falando),
um tanto voluntarioso, e que gosta de defender com certo grau de propriedade as
suas posições. Bem, esse modo de ser pode valer a pena em certas ocasiões, mas
em outras é absolutamente problemático. Vez dessas, disse a ele: “Roberto, você
precisa reagir estoicamente. Ser estoico é ser heroico”. Diante da sua cara de
espanto e desconfiança, resolvi tratar ligeiramente sobre o assunto.
Uma hora aqui, outra hora ali, escuto alguém utilizando esse
termo, com o sentido geral de ser resiliente, de aguentar porrada sem mover
músculo, de manter a calma mesmo nas situações mais adversas. Mas ele designa
um conjunto relativamente amplo de pensamentos filosóficos, muito maior do que
a conotação moderna pode fazer supor. Isso tudo tem origem com um cidadão
chamado Zenon, da cidade de Cítio, um lugarejo situado na ilha de Chipre, que naqueles
tempos era possessão grega. Sua origem era semítica, o que lhe impedia de
adquirir propriedades (e, em consequência, ser considerado cidadão grego). Por
conta disso, não pode fundar uma escola na acepção da palavra, como a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles ou o Jardim de Epicuro (este último,
contemporâneo seu). Para solucionar este problema, reunia seus alunos em um
pórtico coberto. Como a palavra pórtico se diz Stoá em grego, seus seguidores ficaram conhecidos como estoicos, e
sua corrente passou a ser denominada de estoicismo.
Ao contrário de outras doutrinas filosóficas, o estoicismo
não possui um cânon fechado de princípios. Zenon foi um inaugurador, e não um
mentor de pensamento inamovível. Além do mais, os escritos destes pensadores foram
quase todos perdidos em sua raiz grega, restando apenas referências indiretas e
comentadores, além da vertente definida pelo filósofo Crísipo (parcial,
portanto) e pelos estoicos romanos, estes sim com bastantes manuscritos
preservados. Desta forma, nunca é confortável estabelecer com rigor todos os
fundamentos que nortearam esta escola. Mas vamos tentar.
O estoicismo tem um tripé a sustentar seu edifício, ou
melhor dizendo, seu pomar (no dizer dos próprios). A Lógica é o muro que rodeia
e dá guarida à plantação. A Cosmologia (Física) pode ser comparada às árvores,
que, por sua vez, sustentam e dão possibilidade de existência aos frutos da
Ética, seu objetivo último.
Falando sobre a lógica, o estoico entende-a como um crivo
para a verdade, e que esta somente pode ser apreendida através dos sentidos,
como já haviam proclamado alguns pré-socráticos e seria consagrado mais tarde,
através dos empiristas. Há uma novidade, porém. Essa apreensão pressupõe uma
aceitação por parte do sujeito que conhece, ela não se dá de maneira passiva. O
processo de ver e ouvir pode ou não ser aceito como conhecimento, é preciso que
eu esteja convencido do que me dizem os sentidos para que eu estabeleça sua veracidade. É a
lógica que é o critério regulador dos sentidos, porque sabemos o quanto eles
podem distorcer a realidade. E o que temos é que, ao admitir algo como
verdadeiro, esse balanceamento lógico e essa admissibilidade do objeto colocado
defronte a si induz em nós uma representação, que os estoicos chamarão de katálepsis.
Pois bem. Essa forma de conceituar o conhecimento faz duas
remissões, bem mais modernas: a do sujeito como participante do processo de
conhecimento e a da importância da consciência na formação dos juízos, tão ao
gosto da filosofia fenomenológica. Nossos
fragmentados gregos eram antigos, mas não antiquados...
Bom. Poderíamos dizer: “Oh! Que lindo! Sou partícipe de meu
próprio saber. As coisas não são nada sem minha representação”. De fato, é
muito poético. A lógica assegura a veracidade da representação, mas o que
assegura a veracidade da concatenação lógica? Para sabermos, precisamos
compreender como funciona a physis estoica, ou seja, quais as engrenagens que
giram para manter o universo em funcionamento.
As correntes predominantes do estoicismo veem a Física de
uma maneira inédita até então. Para começo, eles eram materialistas. Achavam
que o Ser, para ser considerado como tal, deveria ser capaz da ação e do
sofrimento. Ora, estas são características dos corpos, portanto o Ser coincide
com o corpo, sem transcendê-lo. Isso quer dizer que o estoicismo é monista: não
há nada além dos corpos, nem alma, nem espírito, nem nada que não seja
imanente.
Neste sentido, podemos imediatamente concluir que os
estoicos são ateus, correto? Tsc, tsc, tsc... muito pelo contrário. Vamos ver.
Vamos escalar nosso estagirita Aristóteles para nos ensinar
sobre o Ser. Para ele, o Ser se explicava em causas, sendo que duas delas, a
eficiente e a final, serviam para explicar o dinamismo das essências,
traduzindo a origem e a finalidade do Ser. Mas, para designá-lo com exatidão,
era preciso observá-lo estaticamente, verificando sua matéria e sua forma. A
matéria explica o Ser em sua constituição física, daquilo que é feito. Já a
forma dá razão de existir para a matéria, explica o Ser para além de sua
matéria. A união entre matéria e forma era aquilo que Aristóteles chamava de sínolo, e apenas nele o Ser se tornava
possível e tangível, já que a matéria isolada é meramente física e a forma
isolada é puramente mental. Para que um cavalo seja um cavalo, é preciso que
haja sua carne e seus ossos, e que saibamos que esse conjunto de células
constitui um equino.
Os estoicos concordam com o sínolo de Aristóteles, mas com
uma diferença fundamental. Enquanto para o dono do Liceu a forma é o aspecto do
Ser que lhe define e dá expressão à matéria, para Zenon e seus asseclas a forma
é um princípio ativo regido pelo Logos
divino. Ou seja, Deus está presente em tudo e tudo tem Deus em sua constituição
fundamental. Deus é corpo e faz parte dos corpos através da forma. O estoicismo
é, pois, panteísta.
Além disso, a teologia estoica é uma ontologia, é o que
podemos concluir. Podemos dizer que tudo o que existe é Deus? Sim, ao menos na
forma. E o nada (não-ser), existe? Sim também. Deus coincide com todo o
universo, mas, como os estoicos são materialistas, onde a matéria não existe,
não há nada; nem Ser, nem alma, nem entes, nem Deus. Assim, as descontinuidades
cósmicas estão desprovidas de Ser, porque são incorpóreas, principalmente se
lembrarmos de que aquilo que define a corporeidade (e consequentemente o Ser) é
a sua capacidade de agir e sofrer.
Este universo permeado pelo Logos divino é a expressão máxima da perfeição da divindade, já que ela está presente em tudo, inclusive em todo agir e sofrer. Todas as ocorrências são necessárias e eficazes, ainda que não seja possível perceber isso à primeira vista. As coisas singulares podem parecer defeituosas, mas isso é aparência; no complexo cósmico, cada coisa se justifica, cada ato se explica, cada sofrimento tem seu motivo. Mesmo sendo a matéria corruptível e os corpos destrutíveis, a perfeição permanece. Um belo dia, o cosmos tal qual conhecemos entrará em colapso e será destruído, para logo em seguida ressurgir, tal qual era nos primórdios, e sua nova existência se desenrolará de maneira idêntica à anterior, porque continua a ser a expressão de uma perfeição, e, se há perfeição, ela não pode ser diferente da outra; cada mar, cada ilha, cada casa, cada pessoa, cada inseto, cada história, cada doença, cada decepção, tudo se repetirá, idêntica e indefinidamente, até uma nova destruição e novo renascimento; e isso acontecerá mais uma vez, e outra, e mais outra, infinitamente...
Este universo permeado pelo Logos divino é a expressão máxima da perfeição da divindade, já que ela está presente em tudo, inclusive em todo agir e sofrer. Todas as ocorrências são necessárias e eficazes, ainda que não seja possível perceber isso à primeira vista. As coisas singulares podem parecer defeituosas, mas isso é aparência; no complexo cósmico, cada coisa se justifica, cada ato se explica, cada sofrimento tem seu motivo. Mesmo sendo a matéria corruptível e os corpos destrutíveis, a perfeição permanece. Um belo dia, o cosmos tal qual conhecemos entrará em colapso e será destruído, para logo em seguida ressurgir, tal qual era nos primórdios, e sua nova existência se desenrolará de maneira idêntica à anterior, porque continua a ser a expressão de uma perfeição, e, se há perfeição, ela não pode ser diferente da outra; cada mar, cada ilha, cada casa, cada pessoa, cada inseto, cada história, cada doença, cada decepção, tudo se repetirá, idêntica e indefinidamente, até uma nova destruição e novo renascimento; e isso acontecerá mais uma vez, e outra, e mais outra, infinitamente...
Meus leitores, vocês devem estar pensando: “Ah, mas agora
esse louco está falando do Eterno Retorno de Nietszche”. Não, errado! Nietszche
é que se reportou aos estoicos ao inseri-lo em sua Filosofia. Só o sentido é
diferente. Enquanto o bigodudo utiliza o eterno retorno simbolicamente para
expressar os motivos pelos quais a vida deve valer a pena, Zenon e amigos
concluem que a vida é fado, é sina, é destino, e é nisso que eles calcam sua
famosa doutrina ética: a apatia.
Em primeiro lugar, cumpre fazer algumas observações sobre a
palavra em si. Apatia vem da junção dos termos gregos A, que significa Não, e pathos,
que significa paixão, catástrofe, sofrimento. Apatia, portanto, significa,
não-paixão, não-dor. Perceba que o termo pathos
está na raiz de palavras utilizadas tanto para designar o amor ardoroso dos
amantes quanto a grandes dores, como é a Paixão de Cristo, por exemplo, ou é
utilizado para designar doenças, como na palavra patologia, ou para designar pessoas dignas de pena, os patetas. De uma forma ou de outra, pathos está ligado a sentimentos
intensos, exatamente o oposto do que pretende a apatia.
Andemos. Da mesma forma que a Eudaimonia aristotélica e o hedonismo epicureu, a ética estoica se
baseia na busca da felicidade. E ser feliz significa viver harmonicamente com a
natureza. A natureza humana é calcada na razão, no Logos, e como este é Deus na natureza, o homem tem “mais” Deus que
as demais criaturas. Isso o obriga a ter ações moralmente mais aperfeiçoadas.
Em nossa visão judaico-cristã, imaginamos que uma boa dose de orações fará com
que tenhamos forças para encarar essas dificuldades sob o auxílio de Deus. Mas
há uma diferença decisiva para os estoicos: Deus não possui uma ligação afetiva
com sua criação. A divindade estoica não é pessoal, não sente misericórdia, não
possui a relação paternal dos cristãos. Para resumir de um modo meio tosco:
Deus existe, criou tudo e pulou fora, para cuidar do equilíbrio do universo;
está se cagando para o homem, que tem de se virar sozinho com suas agruras. O
destino já está dado, o fardo será carregado, seja ele qual for, e o sábio
estoico sabe que a vida tem mais a ser suportado do que gozado; a verdadeira
sabedoria está na apatia, no não sofrer. Isso significa se afastar e resistir a
qualquer tipo de paixão ou de sentimentos, que são tidos como desviantes da
razão. O caminho para a obtenção da apatia é o autocontrole e o costume em seu
uso, o que hoje chamamos pelo pernóstico nome de resiliência.
Era isso. Poderia falar mais (por exemplo, que os estoicos
formaram a primeira filosofia libertária, contrária à escravatura, já que,
sendo panteísta, não achava digno que se escravizasse alguém que é parte de
Deus), mas para explicar o uso contemporâneo do termo já me parece o
suficiente.
Recomendação de leitura:
Infelizmente, não sobraram escritos originais dos primeiros
estoicos, principalmente de Zenon. O melhor a fazer, nesse caso, é pegar um bom
comentador e lê-lo. O livro abaixo é interessante:
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.
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