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segunda-feira, 26 de junho de 2017

Navegar é preciso viver - 2ª ancoragem: São Francisco Xavier e as incertezas sobre nosso lugar na árvore da vida

Olá!


Após Monteiro Lobato, seguimos viagem na direção de Campos do Jordão pela estrada velha, mais longa e tortuosa que a Rodovia Floriano Rodrigues Pinheiro, mais habitual nos dias de hoje. Para acessar a vetusta rota, é preciso sair da via Dutra em São José dos Campos e atravessar um bom trecho urbano. A primeira cidade que se chega após sair de São José é justamente Monteiro Lobato. Para seguir viagem, a opção à esquerda nos leva de volta à capital do vale, o que nos faz imaginar aqueles municípios em forma de ferradura, como acontece com Santo André. De fato, se pegarmos a linha de trem da Santos-Jundiaí para chegar à Serra do Mar, sairemos de Santo André, passaremos por Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, até chegarmos a Paranapiacaba, igualmente em Santo André.

Passons, diriam os franceses. No caso presente, o retorno a São José dos Campos se dá no distrito de São Francisco Xavier, para onde voltaremos nossa atenção a partir de agora.

São Francisco Xavier é um distrito tão isolado geograficamente dos demais bairros de São José que em tudo se assemelha a um município autônomo. Além da óbvia descontinuidade urbana com a sede, há toda uma estrutura muito similar a tantas e tantas cidades do interior paulista, onde se destacam as igrejas, como a de São Sebastião, de aspecto mais moderno...


... e a do padroeiro, santo que evangelizou o extremo oriente, com arquitetura mais voltada para o barroco das cidades antigas.


Também há uma grande praça com coreto, que abriga a concentração do casario e os restaurantes de comida típica, que aqui, em específico, exploram o uso das trutas, peixe de sabor suave e que recebem o convidativo acompanhamento das cervejas locais.


Mais retirado do núcleo urbano, são encontradas as grandes propriedades de criação das tais trutas, em meio a estradinhas e carreadores. Há também a possibilidade de se atrever as próprias varas, porque há uma série de bons rios para a pesca, como é o caso do Rio do Peixe.


Como não sou chegado a molhar minhoca (o verme, no caso), fui procurar algum lugar legal para tomar um banho, o que me levou à cachoeira Pedro David, homenagem a um antigo entusiasta local, que fica situada em uma espécie de área de proteção ambiental, com acesso gratuito e alguma estrutura (leia-se banheiros).


Tá bom... Nem só de banheiros vive a estrutura mencionada. Há um pequenino estacionamento (do lado de fora) e alguns benefícios como mato roçado e acessos facilitados, além de uma capela de pedras dedicada a Nossa Senhora Aparecida. Religiosidade é algo bem presente nestas sendas rurais, como já pude falar neste texto.


As pontes e escadinhas não estão lá de bobeira. O acesso para a cachoeira é um tanto acidentado mesmo, o que dificultaria a chegada de quem estivesse mal preparado. Há um bocado de pedras, e a laminha das beiras escorrega um montão.


Além disso, como o acesso se dá pela cabeceira da cascata, dá para notar que a água flui com certa força, o que pode ser ainda mais perigoso. Justifica-se o cuidado, por conseguinte.


O trecho intermediário é um tanto vertical, com uns quinze metros de altura, mesmo não sendo tão caudaloso, e fica bem embrenhado na mata. Vale lembrar que há uma bela sequência de quedas d’água.


Mas a parte baixa é bastante bonita, com um remanso que permite chegar à larga queda final. Por estar mais difusa, a água aqui não cai com tanto peso, mas é gelada toda a vida.


Seguindo pelo nosso périplo, eu e a patroa pegamos o rumo da Pedra de São Francisco, mais conhecida como Pedra do Porquinho. É uma rota em aclive crescente, onde pudemos ver MUITOS ciclistas tentando vencer o desafio de contrair e distender tantas vezes os músculos das pernas. Também fiquei surpreso com a quantidade de carcarás na rota. Vejam que belo exemplar.


A tal da Pedra do Porquinho, na verdade, é um mirante que dá para chegar muito perto de carro. Deixando-o em uma área próxima, anda-se algo em torno de cem metros para se chegar ao pico. Lá em cima, há um conjunto de várias rochas, sendo que em duas há o apoio de escadas.


Na imagem abaixo, é possível perceber claramente porque a pedra tem o apelido de “porquinho”.


É um lugar alto prá cacete, e venta muito, como sói acontecer nesses lugares. A vista é trezentos e sessenta graus, o que permite visualizar o mar montanhoso da região.


De cima da pedra mais alta, é possível até mesmo vislumbrar a área urbana do município de São José dos Campos, o que só pode ser feito em dias claros, como o que tínhamos naquele momento.


Mas por que Pedra de São Francisco? Por causa da homenagem feita abaixo do que seria a “bunda” do porquinho. Sob sua sombra, uma estátua do santo e sua célebre oração (dizem que esta atribuição é apócrifa) “Senhor, fazei de mim instrumento de vossa paz”. Sim, não se trata de São Francisco Xavier, mas de São Francisco de Assis, o que achei estranho; nem tanto, dada a popularidade deste último.


Sempre há algo chamando a atenção que não está no mais óbvio. Notei que a cidade utiliza uma iconografia de macaquinhos por todas as partes. Há exemplos no pórtico de entrada do distrito...


... nas identificações e placas oficiais, como no portão da cachoeira e nos escritos explicativos...


... e nos nomes dos negócios locais, como o desta pousada.


Tudo está ligado, como pude pesquisar mais tarde, ao fato de que este é o lugar com maior número de mono-carvoeiros, ou muriquis, que temos na região da Mantiqueira. Extraí a imagem do site EcoAtlantica para dar uma ideia melhor de como é o macaquinho em questão. 



Quem vê assim, pode achar que os muriquis andam soltos pelas ruas. Nada disso. Estima-se que haja pouco mais de 100 deles nas matas locais. São arredios, apesar de pacíficos. É preciso horas e horas de paciência para conseguir visualizar algum deles, e eu não estava munido desse tipo de equipamento. Estão ameaçadíssimos de extinção.

Pois muito bem.  Não tenho como evitar, e nem quero, a abordagem da temática do racismo, uma vez mais. Isso porque, como se bem sabe, o termo macaco, aplicado ao ser humano, tem conotação ofensiva, no mais das vezes. É só pensar em termos de metáfora (vejam este texto): quando chamamos alguém de macaco, podemos alegar que o fulano em questão é ágil, capaz de subir em árvores com uma destreza somente possível a quem tem quatro mãos. Até aí, nada de mais. O problema acontece quando dirigimos o chamamento a uma pessoa negra. Neste caso, a intersecção não está em um aspecto positivo, mas ao macaco visto como ser inferior, como um humano malfeito, incapaz de aprimoramento, só de macaquices.

A coisa sempre foi assim. Era quase natural que a ofensa se desse. Basta que nós, que temos uma faixa de idade acima dos 30, lembremos qual era o tratamento que dávamos aos nossos colegas de escola ou vizinhos de cor. Ocorre que após muito tempo, a comunidade negra resolveu sair do anonimato e a vindicar o direito de não ser ofendida pela sua pele. Isso exacerbou certos ódios, principalmente em locais onde há proteção física aos revides (redes sociais) e onde o comportamento de manada é favorecido, como nos estádios de futebol. Seja porque aumentou em número ou evidência, a quantidade de casos de jogadores negros ofendidos com a pecha de macacos aumentou em muito, a ponto de acontecer um fato triste e curioso: no Campeonato Espanhol de 2014, torcedores do Villarreal arremessaram bananas no lateral brasileiro Daniel Alves, então jogador do Barcelona. A sua reação foi a melhor possível: descascou uma delas e a comeu, demonstrando estar acima da injúria, sem, no entanto, fingir não a perceber.

A cena correu o mundo, e colocou mais bananas na salada de frutas do debate. Até que ponto, nós, humanos que também somos primatas, podemos nos diferenciar dos macacos? Não seremos nós, negros e brancos, índios e orientais, também macacos?

Há duas respostas possíveis, pelo que consegui refletir. Do ponto de vista biológico, não há nem muito o que discutir. Para tanto, vou recomendar a paciente visualização deste vídeo, mas vou fazer um breve resumo para aqueles que não puderem acessá-lo. Para investigar um sem-fim de pressupostos, como as evidências evolutivas e a biogeografia, os biólogos criaram uma área denominada taxonomia, que se encarrega de classificar os seres vivos de acordo com suas semelhanças. Pensamos imediatamente em Carlos Lineu, que criou a nomenclatura baseada no latim, utilizada até hoje. Mas as modernas técnicas de classificação levaram à criação da cladística (do grego Kladós, ramo), que utilizam a ideia subjacente à evolução de que as espécies atuais descendem de ancestrais comuns, o que acontece sucessivas vezes. Desta forma se constitui sua principal ferramenta visual, que é o cladograma, assemelhado a uma árvore que vai derivando seus ramos:


Percebam que cada conjunto de espécies é ligada ao ramo anterior no exato ponto onde há um ancestral comum, ou seja, uma espécie a partir da qual outras duas tenham evoluído. Em suma, é um diagrama que busca reproduzir o que seria uma "árvore da vida". Ao observar o cladograma acima, percebemos que a espécie humana não é nada mais do que um mero ramo de uma longa cadeia filogenética, toda ela composta de macacos, macaquinhos e macacões, incluindo lêmures e tarsos. Não há dúvida – chamamo-nos primatas por um mero eufemismo. O que nós somos mesmo, biologicamente falando, é macacos. É possível aliviar a barra? Talvez. Diamantes e carvões são compostos da mesmíssima matéria – longas cadeias de carbono. O seu arranjo é que faz a diferença. Por assim dizer, acontece com o homem a mesma coisa. O homem é um macaco que deu certo, mas ainda assim um macaco.

Bem, este é o aspecto biológico, que nos iguala, mas há também o ponto que nos diverge, e aí vamos entrar nas sendas filosóficas, partindo dos pressupostos de Jean Jacques Rousseau, festejadíssimo filósofo suíço. A partir daqui, para o bem da concisão, chamarei “animais” todos os animais não humanos.

Partamos do próprio conceito biológico. A designação taxonômica do ser humano é homo sapiens sapiens, homem que sabe que sabe. O que podemos tirar daí? Que o homem é o único ser que tem capacidade de escapar do concreto, chegando a um fenômeno mental que denominamos abstração. Os animais em geral conseguem, em maior ou menor nível de sofisticação, realizar processos mentais, mas de forma a se reportar a objetos e fatos concretos. É bem verdade que alguns estudos recentes têm demonstrado que certas espécies desenvolvem algum tipo de comunicação, mas a distância com que operam no simbólico com relação ao ser humano é abissal. Por isso, a linguagem nos animais é no máximo rudimentar, e conceitos em que o abstrato é essencial, como na obra de arte, simplesmente inexiste. Essa incapacidade, além do mais, impede um cálculo projetivo, que avalia a situação atual para tomar decisões que implicarão para além do momento posterior imediato.

O que Rousseau nos coloca é que, dadas essas diferenças, os animais são livres NA natureza, mas escravizados PELA natureza. Isso significa que, apesar de possuir em si tudo o que necessita para sobreviver, o animal tem uma margem muito pequena para manobrar dentro da programação que a natureza lhe reserva. Por exemplo, uma vez acuado, não há muita opção: ou foge, ou enfrenta a ameaça.

Em condições meramente naturais, o homem enfrenta o mesmíssimo problema, mas possui a faculdade de intervir no fluxo reservado a ele pela natureza. Como é capaz de abstrair, o homem não tem a necessidade de se submeter ao acaso, ou, melhor dizendo, ao mecanismo cíclico natural. Caso se veja acossado pela fera, terá basicamente as mesmas opções de qualquer animal. Mas como pode dar vislumbre às possibilidades que o podem acometer ainda que distante delas, o homem pode simplesmente evitar a situação, construindo artefatos que o coloquem a salvo. Onde o animal é livre para viver, o homem é livre para escolher. Rousseau traz o exemplo da pomba, que morre de fome diante do alimento que a natureza não lhe reserva, e do homem que se entrega a excessos, porque dá asas às suas vontades. Em suma, a natureza move os animais e os homens, mas o último tem o arbítrio para aceitar ou resistir.

Mais ainda. Rousseau fala sobre perfectibilidade, que é a capacidade de aperfeiçoamento humano. Enquanto o animal limita-se a ser sempre o que a natureza faz dele, o homem tem a faculdade de aprender sempre. E é nisso que podemos fazer uma confluência com o nosso tema. Ainda que o homem possa aprender, tem a liberdade de escolha de resistir não só à natureza, mas ao aprendizado que recebe. Já há milhares de anos que os homens têm resistido à hipótese da igualdade entre todos, ainda que a Ciência e a Ética venham demonstrando cada vez mais o absurdo dessa linha de pensamento. A liberdade não pode ser absoluta, já que interfere na liberdade do outro, e devemos internalizar essa ideia pelo simples fato de não sermos entregues unicamente ao instinto. A nossa própria capacidade de raciocinar tem que nos dar a aceitação de que biologicamente somos macacos, como qualquer primata, e que filosoficamente somos únicos, os únicos capazes de se reconhecer como protagonistas no fluxo temporal e espacial ao lado da natureza. É esse o tipo de decisão que se toma ao criar a reserva para os muriquis, que, deixados à própria sorte, rumariam para uma extinção causada pelo próprio homem. Se o ser humano erra, há locais em que percebemos que ele tenta se corrigir. E por isso que gostei de São Francisco Xavier.

Recomendações:

A tese de Rousseau sobre a desigualdade dos homens é maravilhosa, e defendida pelo mesmo com ardor. A diferenciação que estabelece entre animais e seres humanos é acessória, já que o foco do debate consiste em ideias de fundo político e moral, mas é necessária para estabelecer premissas do que é o homem como ser único. Não é preciso concordar com ele, mas tentar compreendê-lo.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Ática, 1989.

Já havia recomendado o Canal do Pirula neste blog, por isso mesmo vou recomendar outro espaço, que, embora pouco atualizado ultimamente, contém boas informações sobre a humanidade vista sobre o prisma científico, inclusive com um dos vídeos versando sobre a mesma aporia tratada aqui.

Yuri Grecco. Canal Eu, Ciência. Disponível em: https://www.youtube.com/user/EuCiencia

O exemplo do cladograma foi extraído do seguinte endereço:

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