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quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 3º episódio: Monte Verde, lugar para entender como um passo é suficiente para sair do sol à tempestade

Olá!


Vamos dar seguimento à nossa intrépida série. Quando fui à Cachoeira dos Pretos, lá pelos altos de Joanópolis, além de toda paisagem circundante, observei uma coisa que me chamou diretamente o interesse. Uma das placas indicativas de direção, daquelas verdes, mostrava a informação de que Monte Verde estava a 37 km de distância. Perto, ora essa! É um lugar que ficou bem famoso de uns tempos para cá. Território de boa fama, com ares europeus, natureza exuberante e belas vistas. Com isso, já estabeleci um programa para o dia seguinte, o que fiz. Bora prá lá.


Na verdade, caí na mesma armadilha que quando fui a São Thomé das Letras, porque burro velho não aprende. Tanto naquela ocasião quanto nesta, consultei tempos no GPS e achei-os desproporcionais à distância. Como assim, 40 Km demoram uma hora e meia? Convencido de que se tratava de um mero erro de cálculo, não coloquei a hipótese de que poderíamos ter novamente uma acidentada estrada de terra à frente. Bem, é o que havia, e lá fui eu colocar o inadequado Bedelho (apelido carinhoso do meu carro) onde não devia. De fato, o trecho inicial era bem complicado para um carro popular, mas a combinação de uma boa resistência veicular com uma imodesta habilidade adquirida por este escriba fez com que chegássemos à estrada principal sem grandes percalços.


Assim como São Francisco Xavier é dependente de São José dos Campos, Monte Verde não é um município autônomo, mas um distrito de Camanducaia, já em Minas Gerais. É bem distante da sede, e, por isso mesmo, dá toda a pinta do contrário, como podemos perceber pelo pórtico de entrada.


Estamos aqui em um ponto bem alto da serra, a mais de 1600 metros de altitude, o que lhe dá um ar meio que distinto do que imaginamos em latitudes tropicais. Por essa razão, o distrito é apelidado de Suíça Brasileira, e a arquitetura de suas casas segue a estrutura típica das regiões alpinas.


Do mesmo modo que em outras cidades da Mantiqueira, a temperatura daqui é bastante amena, mesmo em épocas de verão. Com isso, a decoração de ruas e praças utiliza elementos estranhos a um país do hemisfério sul, como as casas com sótão e os pupazzos de madeira (já que nunca houve neve por aqui).


Entretanto, a variação climática é muito grande. Pudemos perceber isso porque passamos o dia inteiro no lugar, e a friaca do ocaso sucedeu um dia relativamente quente, próximo aos trinta graus. Vou retomar o tema clima daqui a pouco.


Essa condição isolada, como acontece com Campos do Jordão, Santo Antônio do Pinhal ou Maria da Fé, dá uma tipicidade às coisas que importam: comes e bebes. As cervejas são boas, com uma variedade interessante.


Um dos pratos mais comuns da região, além de acepipes tipicamente mineiros, é a truta, um peixe que não é nativo do Brasil e que necessita de temperaturas mais baixas para viver e se reproduzir. Sendo uma oportunidade meio rara, esse foi o almoço eleito.


Como sobremesa, um bom chocolatinho. Na avenida Monte Verde, a principal da cidade, são frequentes as chocolaterias, que ficam lado a lado com choperias, casas de artesanato, guias turísticos, lojas de malhas…


… e cafés, que mesclam a feliz coincidência dos cafés arábicos de altitude com o cuidado na produção dos chocolates. Como estas terras frias usam uma atmosfera de romantismo, há muitos estabelecimentos para se curtir a dois, no momento em que a tarde esfria.


Antes desses momentos, porém, fui atrás das trilhas de Monte Verde, que são bastante famosas e numerosas. A maioria delas leva a lugares ainda mais altos que o trecho urbano do distrito, mas há uma delas que fica exatamente paralela à avenida principal. É a trilha do Pinheiro Velho.


É uma trilha facílima, que entrecruza o Córrego do Cadete e que tem vários ramais, alguns passando sobre troncos, outros em pinguelas improvisadas, cujo principal atrativo é a variedade vegetal.


De fato, com um pouco de sorte, é possível pegar um bocado de plantas tropicais de altitude em plena florada, como estas abaixo.


O nome da trilha presta tributo a uma anciã e enorme árvore para onde convergem as várias picadas: um pinheiro gigantesco, próximo do qual há uma fonte de água potável. Fica entre a avenida e o aeroporto, de onde há um mirante onde é possível ver todo o distrito com as montanhas ao fundo.


Por fim, quero falar das trilhas mais altas e mais longas, que passam por grande extensão de Mata Atlântica até que se avistem os picos. Há um caminho comum que leva para o começo de duas variantes, e que corresponde à parte da área protegida. Uma dessas conduz ao Platô e ao Chapéu do Bispo…


… enquanto a outra leva à Pedra Partida e à Pedra Redonda. São caminhadas mais extensas, que percorrem lajeados, bicas e mirantes, todas na faixa dos 1900 metros de altitude. Daqui por diante, não teremos mais fotografias, pelo simples fato de que chovia por toda a floresta, enquanto todo o restante do distrito estava seco, sem sinais de precipitações.


Percebam na entrada do parque como é possível notar a fronteira das águas. É impressionante como a cessação da chuva é limítrofe à área florestada. Eu e a patroa entramos secos e saímos encharcados. Pena que a dor no bolso e coerência me impediram de sacar a câmera para fora.


Já havia visto algo semelhante em Cunha, na subida da Pedra da Macela. É um fenômeno sobre o qual eu gostaria de ouvir explicações daqueles que dizem que a vegetação não possui qualquer regulação sobre o clima. Nesses tempos sombrios em que vivemos, ouvimos alegações das mais toscas: que o aquecimento global é uma conspiração internacional, que a contenção da expansão agrícola é um fator de retardo no crescimento do país, que ainda há uma fronteira grande a ser explorada sem prejuízos irreversíveis e que bastarão trinta e poucos anos para a regeneração das florestas, se preciso for. O principal problema é que todos estes argumentos se baseiam em apostas, enquanto a prudência mandaria cessar os desmatamentos imediatamente. Sem contar a falta de inteligência de alguns deles: pode até ser verdade que a floresta se recupere rapidamente em caso de cessação da exploração, mas se recuperará com o que ainda existe. O que se extinguiu, já era. Em um texto que elaborei por ocasião de minha viagem a Itamonte, mencionei o alto índice de endemismo de suas espécies. Agora imagine-se estes montes que acabei de trilhar todos devastados. Em trinta anos, o que haverá e o que se perderá? Esse é o limite da visão imediatista da ideologia imperante. São pessoas que vivem para antes das preocupações ecológicas da década de 60, e para quem a estruturação de uma Filosofia Ambiental é coisa de comunistas ou de hippies, que querem nada além de impedir o lucro dos grandes empresários ou fumar maconha.

Talvez os vieses políticos vistos como pacotes fechados nos impeçam de filtrar o que um determinado conjunto de ideias tem de bom. Muitos pensadores nasceram do embate político a partir da metade do século passado, e convergiram para um lado mais libertário ou mais socialista. Quando olhamos para eles, vemos a pecha que carregam, e esquecemos de tudo o mais que produziram. É o que acontece com Félix Guattari*, psicólogo empírico francês, um dos énfants terribles do pós-estruturalismo francês, ao lado de gente como Foucault, Derrida, Deleuze, Althusser, Baudrillard e Barthes, que, por sua posição nítida às questões sociais, foi colocado à esquerda na estante do conhecimento, e é visto com feroz desconfiança nos dias de hoje.

Não deveria. Há muito para discutir em suas ideias, especialmente na sua Ecosofia. Este termo, cuja cunhagem é condividida com Arne Naess, claramente se refere à fusão entre Ecologia e Filosofia, para que se vá além da mera discussão sobre os prejuízos causados pelo homem ao meio ambiente através da atividade industrial, encontrando motivações psicológicas e sociais para tanto.

A tese de Guattari é a seguinte: quando fazemos uma análise do expansionismo típico do Capitalismo, ganhamos a tendência em achar que o problema da ecologia é uma questão objetiva – o meio ambiente é afetado pela produção industrial. Embora isso seja verdade, vislumbra apenas o ponto final da questão. Guattari fala de uma infantilização do meio social, que é propendido a ter um único caminho a ser seguido na vida, uma felicidade baseada no consumo. O curso que se toma é o da padronização dos comportamentos que se mostram bem sucedidos para atingir essas metas. No seu substrato, a lógica capitalista: uma insistente propaganda do “tenha e seja feliz” força as pessoas a consumir a qualquer custo. Para dar competitividade e preços razoáveis que supram essa sanha, a máquina de expansão arrasta as fronteiras dos sistemas naturais a limites cada vez mais compactados. É o que vemos hoje em dia com relação à Amazônia. As divisas agrícolas vão avançando cada vez mais sobre a floresta, sem medir consequências.

Guattari, se vivo estivesse hoje, diria que estamos cometendo um erro. Apesar de o reconhecimento dos danos ao planeta seja positivo, é preciso ir além. O pensamento mecânico da lógica capitalista não se resolve meramente combatendo seus efeitos. A destruição do meio ambiente é um reflexo, que, sim, vai ser causa de muitos problemas para gerações futuras, mas ele mesmo é uma consequência. A Ecosofia de Guattari propõe investigar o papel da subjetividade na relação com o ambiente para chegar à raiz da querela.

O que podemos entender por subjetividade? Sem dúvida, é a maneira pessoal como cada um de nós encara o mundo. Podemos falar de uma subjetividade coletiva porque as condições materiais e culturais de diferentes povos e nichos étnicos moldam o modo como os indivíduos pensam e sentem, de modo a lhes dar uma certa direção. Em uma terra com poucos recursos alimentares, por exemplo, a subjetividade coletiva será guiada pela sobrevivência, enquanto em povos do universo mais desenvolvido estará em temas menos práticos, como a variabilidade do consumo. Em resumo, a subjetividade coletiva é a intersecção das representações individuais que foram guiadas pelos contextos históricos, e que definem as ações daquele povo em específico. Só que o mundo hoje em crise ambiental faz-nos compreender que agimos por anos sem projetar nossa subjetividade sobre os desequilíbrios que seriam causados. É como se o mundo fosse uma reserva inesgotável, e que nunca percebemos que poderia ser atingido um ponto de não-retorno.

Para Guattari, a consciência ecosófica se divide em três níveis: a ecologia ambiental, a social e a mental. Ou seja, a Ecosofia trataria da maneira como as pessoas lidam com o ambiente, entre si e consigo mesmas, em um mecanismo que ele denomina transversalidade, algo que é muito utilizado na Pedagodia moderna – a interação entre diferentes áreas para que se compreenda como o mundo se integra complexamente. Ele é muito duro na constatação de como estes domínios ambientais são tratados, vislumbrando constantes retrocessos no decorrer da história humana. Usa como exemplo o acidente nuclear de Chernobyl e o surgimento do vírus HIV para demonstrar como a Ciência deixada à sorte da tecnocracia se distancia de práticas mais humanas.

O trato com a natureza é questão da ecologia ambiental, mais óbvia de todas. No entanto, da mesma forma que a ação direta causa danos à natureza, também a ecologia social reserva suas quotas de influência na vida do planeta. Se a relação ambiental sofre degradação, o mesmo ocorre com as relações sociais. Da mesma forma que as florestas são cada vez mais pontos isolados nos mapas, também os diferentes grupos se isolam uns dos outros, demarcando mais fortemente as divisões entre eles. O paroxismo deste processo de isolamento se dá na exacerbação do indivíduo colocado nas redes sociais, prescindindo do contato social autêntico. Se por um lado a internet trouxe o benefício do acesso mais democrático ao conhecimento, por outro falsificou as relações públicas em uma arena virtual, onde as couraças de personalidade são ainda mais inflexíveis. Basta que se veja hoje a liberdade que os propagadores de ódio têm de cevar seus vilipêndios, ocultados através de avatares que podem dizer muito sobre sua personalidade, mas nada sobre sua pessoa.

Por fim, há uma ecologia subjetiva que leva a pessoa a se repensar a si própria. Por um lado, há uma massificação que faz com que todos se pareçam iguais. Um corpo “místico”, identificado com a mídia, determina o que é bom e o que é ruim, e dada sua capacidade de disseminação, traduz a uma humanidade que já não se reconhece como dona de suas próprias características um modelo pronto e acabado de desejo. Esse é o nível máximo de subjetividade: a pessoa ser o que ela é, e não o que a uniformidade social manda que ela seja, mas é exatamente aí onde estamos mais atingidos, amarrados e amordaçados.

Essas são as constatações. Quais as soluções? Em primeiro lugar, que se reconheça que as três ecologias se interpenetram. Não há como se cuidar do planeta sem se cuidar das sociedades que o habitam, e não há como constituir sociedades melhores se não nos tornarmos melhor como entes subjetivos, como pessoas. Ainda que a constatação gramsciana de que a cultura afasta o homem da natureza seja correta, o resultado de um pensamento que não envolva a transversalidade preconizada na Ecosofia sempre fará com que algum tipo de ponta esteja solta. Exemplo: é muito bom que usinas nucleares existam, já que produzem energia limpa, de longa duração e supre a ausência de outros meios. No entanto, qual é o tamanho do custo social de um acidente? Sua construção leva em conta as necessidades pessoais ou serve para suprir um explodir de vontades que demandam mais e mais energia? Por que não é possível conviver com limites, se estes não representam malefícios reais?

É bonito pensar isso, mas Guattari atenta para a questão da práxis. A reinvenção constante de todas as relações ecológicas se dá no âmbito da ressingularização, ou seja, uma nova forma de se reconhecer as diferenças entre os modos de ser e de pensar. Cristalizado isso, reconhecer os processos de solidariedade que nasce do indivíduo, perspassa para a sociedade e desemboca em um mundo que tem sua própria essência respeitada.

Que pena que a chuva tenha me obrigado a manter a câmera na mochila, mas que bom que tenha vindo lavar a alma, em um momento de compreensão baixa de nossas individualidades. Monte Verde não é só bonita pelo plasmar europeu, mas pelo que nos ensina sobre coisas que não estão mais na pauta das verdades. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Guattari e associados levantaram uma escrita muito difícil, que limita deveras a compreensão de suas ideias. Seu livreto sobre Ecosofia é bem curto, mas dá um pouco de trabalho para compreender (ele mesmo escreveu muita coisa pior). No entanto, compensa.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2001.

* Cansei de ouvir a galera chamá-lo de Guatarrí. Só que o nome não é de origem francesa, como o filósofo. É italiano mesmo. Portanto, o correto é chamá-lo de Guatári, como se fosse mooquense.

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