No último texto desta intrépida série, refleti um pouco
sobre a Metafísica, uma área da Filosofia que medita sobre os
fundamentos últimos da realidade. Alguns leitores mais atentos, ou que já
tenham alguma vivência no linguajar filosófico, devem ter estranhado o fato de
eu ter omitido a questão do Ser, tão típica dos discursos metafísicos. Isso foi
proposital. É que eu achei por bem ter cuidado em isolá-la da Ontologia, seu upgrade criado após a crise instaurada
por Kant, ao estabelecer a intangibilidade das essências das coisas. Pois bem,
estamos aqui e vamos tratar deste assunto.
A Ontologia, como eu falei, é um desmembramento tardio da
Metafísica que estuda o Ser em si mesmo. Aliás, o termo grego onto significa ser, no mesmo sentido que a palavra latina esse dá sentido ao nosso léxico essência.
Por isso, o nome Ontologia quer dizer, literalmente, o estudo do Ser. Mas que
raio de ser é esse? O ser humano? O ser vivo? O ser bruto? O ser concreto? O
ser abstrato? O ser extraterrestre? O ser transcendente?
A resposta é: todos esses seres. Cada um deles se apresenta
a nós de uma determinada forma, mas também carrega em si uma espécie de substância
que faz ser o que ele é. A palavra “ser” indica a nós quatro conceitos
distintos e interligados:
Existência: quando
dizemos que algo é um ser, definimos que ele existe. Portanto, quando falamos
em “ser humano”, supomos de imediato que há uma espécie tal que tem uma série
de características, o que, de pronto, nos leva ao segundo conceito, o de
Identidade:
quando dizemos que algo é um ser,
afirmamos que ele tem uma identidade própria que a distingue dos demais seres,
que não possuem exatamente as mesmas propriedades, o que nos leva ao terceiro
significado, o de
Predicação: que
nos exprime o que são os termos da identidade mencionada anteriormente. De
fato, ser não é apenas um
substantivo, mas também um verbo, que tem o autopropósito de exprimir o que as
coisas são: o Sol É distante, o
peixe É escorregadio, os ovos SÃO quebradiços e così via. A construção da predicação se dá em função de um sujeito,
ou seja, afirma-se algo a respeito de alguma coisa, o que nos leva ao último
item, o de
Verificabilidade:
que ocorre quando uma determinada predicação pode receber valor de verdade ou
de falsidade. Neste caso, pertence ao Ser aquilo que se diz de real a respeito
dele. Trocando em miúdos, se dizemos que o “Sol é distante”, podemos atribuir
um valor a essa proposição. Se ela for verdadeira, haverá uma correspondência
ao Ser Sol; do contrário, nada se falará sobre o Ser Sol, mas sobre seu
não-ser, aquilo que o Sol não é.
A grande dificuldade na questão do Ser não está propriamente
nos seus significados acima, já que eles parecem bem simples a uma primeira
vista, o que pode fazer a discussão se tornar tola. Mas o buraco fica bem mais
embaixo quando tentamos trazer o foco para nós mesmos: o que é o meu Ser? Qual
é o meu elemento de distinção para o restante do universo? Com isso, percebo
que há quesitos que me tornam único, e há quesitos que me torna um dos itens de
conceitos maiores: ser humano, ser vivente, ser terrestre, ser concreto, ser
imanente.
Quando procuramos o Ser em nós mesmos, tendemos a procurar
um lugar no mundo, uma função que ao mesmo tempo nos caracterize e nos
distinga, que nos agrupe e que nos separe, de forma a entender porque somos o
que somos e fazemos o que fazemos. O negócio é contar uma historinha, para
começar a conversa. Quando eu tinha meus cinco anos, os aperreios da vida me
levaram para uma casa na Vila Ema, bairro operário da pauliceia desvairada,
onde já moravam meu avô e minha madrinha. Havia uma casa de três cômodos no
fundo do terreno dando sopa, e é para lá que eu fui. Na casa da frente, moravam
meus primos, mais velhos que eu. Um deles era o Plinio, nome arcaico para
alguém nem tanto, em época de Marcelos e Alexandres, designativos da moda de
então. Era uma criança entre tantas, mas a cabeça dele era outra. Enquanto o
pessoal curtia John Travolta e seus gestos e trejeitos discotéque, meu primo era dado a músicas mais estranhas,
como o experimentalismo do krautrock
do Can ou das doideiras do Frank Zappa, além de uma boa dose do tripé metálico
(Sabbath, Purple e Zeppelin). Como toda criança, ele gostava de
brinquedos, mas seu interesse maior não estava no manuseio da peça, e sim no
seu funcionamento. Lembro dos carrinhos de fricção, que eram puxados para trás até
dar um estalo, para ser solto e percorrer seu trajeto. Eu nunca me preocupei
com o que fazia a propulsão, mas em dar asas à estorinha bolada na cabeça. Já o
Plínio era o exato oposto. Às favas com a imaginação, ele queria mesmo era
entender como se dava o impulso do carrinho, o que fazia com que ele corresse
sozinho por aqueles poucos metros (uma mola, antes que me perguntem). Enquanto
eu estava mais ligado ao sonho, ele queria compreender a realidade. Eu queria
me desvincular do fato de que o carrinho era um simulacro, para que pudesse me
sentir dentro da historinha; ele queria penetrar no âmago do carrinho, olhá-lo
por dentro, aproximar-se ainda mais do carrinho em si. Eu queria me afastar da
realidade última do carrinho, esquecer que era de mentirinha; ele queria o
contrário, a realidade fundamental do carrinho, o seu Ser. Meu olhar era estético; o dele, ontológico. Deu para sacar?
Não!?
Vamos então pegar o exemplo dos cães, esses animais cada vez
mais presentes em nossos compactos apartamentos. Pensemos no gigantesco
dinamarquês, daqueles que dá para montar a cavalo, no peludo afgani, no
macérrimo galgo, no musculoso rottweiller, no esperto fox terrier, no chato
pequinês, no minúsculo chihuahua, no glamouroso poodle, no mal-encarado boxer
ou nos diferentes pastores – alemão, belga, napolitano, bergamasco. E,
principalmente, pensemos nas inúmeras versões de vira-latas, os mais
privilegiados pela seleção natural.
São animais tão distintos entre si, na forma, no tamanho, na
pelagem, na agressividade, no ambiente geográfico em que habitam, que parecem
espécies diferentes. Mas são todos cães. Batemos o olho neles e falamos sem
errar: são cães.
Mais: se olharmos um feto de cão, um filhote de cão, um cão
jovem, um cão adulto, um cão velho, um cão morto ou a ossada de um cão, lá
estará a nossa consciência afirmando se tratar de um cão, não importando a
linha do tempo. Mais ainda: eu mostro a foto de um cão e pergunto: o que temos
aqui? Você dirá: um cão. O mesmo se aplica a uma estátua, uma garatuja, uma
pintura a óleo, um logotipo, uma estampa, um carimbo. Não importa a
materialidade. São cães.
Desde que uma mutação do miacis,
ancestral de uma série imensa de mamíferos carnívoros, deu origem ao tomarctus, o cão primordial que deu
origem a todo o gênero canis*, há
algo em comum a todos os cães do mundo, sejam reais ou imaginários, sejam vivos
ou mortos, sejam raças antigas ou produzidas por seleção artificial, que os
fazem dignos desse nome, e esse algo em comum é aquilo que nós chamamos de essência. O Ser é traduzido pela
essência, que, em um estudinho rapidíssimo na etimologia, quer dizer aquilo que
tem a propriedade de ser.
Acontece que temos um problema. Onde está essa essência?
Onde está descrito que tal e tal coisa formam a essência de um cão? Há muitas
respostas que foram tentadas, desde que Parmênides enunciou o princípio da
identidade: o Ser é. Isso significa que o mundo das constantes mudanças de
Heráclito (panta rhei) era uma
ilusão. São aparências das quais não extraímos o Ser, mas as manifestações do
Ser (mais tarde chamadas de fenômenos). Dessa forma, o cão de carne e osso que
vemos à nossa frente não é o Ser cachorro em si mesmo, mas uma, e apenas uma,
de suas concreções possíveis. É um ente,
cujo principal atributo é a existência. Através do ente, o Ser existe.
Mas o pensamento de Heráclito é desprovido de valor? Não.
Enquanto Parmênides apostava na permanência do Ser, a proposta heraclitiana
enfatizava a dinâmica das transformações. Para ele, o Ser era aquilo que estava
em constante mudança, era o próprio devir.
Esta palavra significa o movimento que o Ser passa para transitar de um estado
para o outro: do que ele era, para o que ele é e para o que virá a ser. A
essência não é estática.
Platão pende para um ideário semelhante ao de Parmênides e acha que essas essências perfeitas só podiam estar localizadas em um local que vai além
do mundo sensível, dominado pelas aparências e distorções dos sentidos. Era o
Hiperurânio (acima dos céus), lugar onde residiam as ideias puras, atingíveis
unicamente pelo intelecto. Portanto, para Platão o Ser era um ato intelectivo,
que a mente contemplava antes de trazê-la ao corpo.
Já para Aristóteles, o Ser não se encontrava em um mundo à parte, mas na nossa própria Terra. Para ele, tudo o que existe no universo se
dá por uma longa cadeia de causas e efeitos que partem de um Primeiro Motor
Imóvel, a causa originária, e, a partir daí, inicia-se o fluxo incessante de
mudanças no cosmos (para saber mais, leiam este texto), o que o aproxima
da Ontologia de Heráclito. Essas causas eram quatro: formal, material,
eficiente e final. Estas duas últimas são externas ao próprio Ser, e dizem
respeito a quem fez e para que fez. Por exemplo, o pedreiro (causa eficiente)
faz a casa para alguém morar (causa final), mas a casa em si é composta das
causas formal e material – aquilo que é conformado de modo a constituí-la
(causa formal) e as matérias usadas para tanto (causa material). Essas duas
causas são o cerne do Ser, o que Aristóteles dava o nome de substância, ou ousía, como se diz em grego. Desta forma, a substância é
constituída de uma parte concreta (material) e uma parte ideal (forma). De
fato, sem materialidade, a casa é só um sonho na cabeça, e, sem forma, é um
amontoado de pedra, areia e tijolos dispostos aleatoriamente. Da substância,
portanto, emerge a essência.
A partir dessas quatro ideias de Ser, criou-se toda uma
tradição que veio navegando pelos tempos, que não vou detalhar muito, o que me
faria fugir do escopo inicial do projeto. Basta dizer que a discussão sobre o
Ser foi deslocada ao sabor das correntes filosóficas que foram se sucedendo. Na
Filosofia teocêntrica que segue à época helênica, Santo Agostinho identifica o
Hiperurânio platônico com o mundo das ideias divinas, e o Ser se desloca para
Deus. São Tomás de Aquino, por sua vez, adapta as causas aristotélicas à sua
Escolástica e atribui o Primeiro Motor Imóvel a Deus. Na medida em que novas
ideias descolam a Filosofia da Teologia, também o conceito de Ser caminha para
fora, e formulações como a monadologia de Leibniz e da causa sui de Espinoza trazem novidades
que se afastam dos dogmas religiosos.
Até então, estávamos no âmbito da Metafísica, mas David Hume
vem informar que esse papo de essências era uma mera habitualidade mental, que
não existe essa coisa de Ser: apenas aprendemos a classificar os objetos por
proximidade e ficamos procurando algo por trás deles. Nada disso – eles são o
que são, e nada mais. A busca pelo Ser é pelo em ovo, na concepção de Hume.
Kant vem com a questão epistemológica dos fenômenos e derruba de vez a
Metafísica, incluindo seu cerne duro, a Ontologia.
Mas a Ontologia não morre, porque soube ser recriada pela
Filosofia Contemporânea, que deslocou o foco da investigação filosófica do
objeto para o sujeito. Distinguindo-se da Metafísica tradicional e apoiada
pelas então recentes descobertas da Psicologia, a Ontologia passa a enveredar
pelas sendas tortuosas da consciência, o principal sujeito do conhecimento.
Tudo o que se apresenta a nós é apresentado para nossa consciência, e essa
nunca é passiva. Ela introjeta seus conhecimentos, sua cultura, suas
idiossincrasias e seus preconceitos em sua relação com o objeto, o que faz com
que essa dialética não seja uma mera experimentação estática: a consciência do
sujeito doa sentido ao objeto, que, por sua vez, transforma o modo de perceber
à consciência do sujeito.
É nesse condão que a Fenomenologia de Husserl atua,
ao considerar os efeitos da construção da consciência antes do contato com o objeto, o que faz com que a busca pela
essência objetiva seja depurada de seus vieses. Partindo da premissa de que a
consciência é ela mesma um fenômeno, um fenômeno mental, há a contraposição à
materialidade do fenômeno propugnada por Kant. Há uma realidade ideal que vai
além da realidade material; não como querem doutrinas misticistas, mas como
podem provar as abstrações matemáticas, nem sempre concrescíveis, mas sempre
portadoras de uma lógica inexcludente: se a matemática tem a capacidade de
traduzir a natureza, também a tem para ir além dela, atuando abstratamente. É o
eidos em ação.
Outros pensadores, como Heidegger e Sartre,
levados pela novidade fenomenológica, passam a direcionar o foco para o Ser por
excelência, aquele que sabe que é Ser e que se identifica como tal: o ser
humano. Questões como liberdade, responsabilidade e livre-arbítrio ganham a
tônica do discurso ontológico e lhe dão um novo e vasto campo investigativo.
Afinal, não há sentido no mundo sem um Ser que lhe dê esse sentido: novamente o
ser humano. A Ontologia passa a se ocupar daquilo que é a essência do homem
antes do que é observável pela Ciência.
Para arrematar, dá para perceber como a Ontologia, lá no
fundo, é a medula da Filosofia. Mesmo outras áreas basilares se questionam
sobre o Ser. Quando a epistemologia pergunta o que é a verdade, a ética
pergunta o que é o bem e a estética pergunta o que é o belo, fazem perguntas
ontológicas: o que é. Daí a importância dessa área tão aparentemente hermética
e pouco útil.
Recomendação de Leitura:
Mesmo não sendo diretamente um filósofo, é de Shakespeare,
pela boca de seu personagem Hamlet, que temos uma das mais célebres frases ontológicas:
o “ser ou não ser” que é proferido pelo personagem-título em sua angústia
existencialista. Vale a pena ler.
SHAKESPEARE, William. A
tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Hamlet). São Paulo: Martin
Claret, 2010.
* De acordo com a teoria filogenética mais bem aceita nos
presentes dias.
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