Olá!
Continuando nossos relatos de viagem. Após partirmos de
Paraibuna, apontamos a proa de nosso pequeno navio terrestre para a cidade de São
Luiz do Paraitinga, onde pretendíamos pegar pouso por mais alguns dias. Poderíamos
chegar lá por dois caminhos: fazer a mesma passagem de balsa por Natividade da
Serra que havíamos feito anteriormente – caminho mais curto; ou voltar à
Trabalhadores e pegar a Rodovia Osvaldo Cruz em Taubaté – caminho mais rápido.
Optamos pelo segundo, meio que por conta do excesso de poeira na garganta. No
caminho, uma placa indicava o desvio para Redenção da Serra. Por que não?
Da mesma forma que Natividade da Serra, esta cidade foi
condenada, na década de 70 a ser submergida pela represa de Paraibuna. Porém,
ao contrário desta, houve um cantinho de reminiscências: onde se situava a
antiga praça central, restaram alguns imóveis.
O mais significativo dentre eles, é, sem dúvida, a antiga
igreja matriz, denominada Igreja de Santa Cruz. Não foi absolutamente tranquilo
evitar a invasão das águas. Para tanto foi necessário construir um muro de
contenção...
... que, visto pelo lado de dentro, tem lá uns dois metros
de altura, formando uma espécie de bacia. Em tempos atrás, mesmo essa proteção
foi insuficiente, inundando as cercanias de lama.
A igreja, por fora, não está exatamente um brinco, apesar de
ser perfeitamente possível contemplar sua arquitetura. Mas, pelo que pude
conversar com o pessoal da região, é por dentro que as coisas estão feias.
Sendo feita de material delicado (taipa de pilão), a falta de manutenção está
fazendo cair grandes placas de reboco e surgir muitas rachaduras. Triste...
O outro remanescente de outrora é um casarão colonial que
servia de abrigo para a prefeitura local. Fica bem ao lado da igreja e compunha
com ela a peça principal da praça central.
Alguns moradores tem a opinião de que a destruição da cidade
velha foi inútil, porque na maior parte do tempo a represa não chega a atingir
tal área, o que faz com que alguns cadáveres fiquem expostos.
A foto abaixo é da estação de energia da cidade. É evidente
que sua resistência se deu pela estrutura mais robusta. As antigas casas de pau
a pique foram todas “derretendo”, uma a uma, até seu completo sumiço.
Novamente: tal como em Natividade da Serra, a vida da cidade
é fartamente influenciada pela presença da represa, constituindo-se, inclusive,
em seu principal potencial turístico. Os vários braços que interpenetram a
cidade são razoavelmente povoados por pescadores e barcos.
Outra atividade importante é o artesanato, sendo que a
utilização de palha de milho é bastante frequente. Fomos aos bairros, onde as
mulheres colocam a mão na massa para reforçar o orçamento. Estas flores foram
obtidas na casa da Edna, que, além de tudo, é também costureira.
Já esta boneca, mais sofisticada, foi conseguida no café da
Rita, onde pudemos nos confrontar com outros três produtos típicos da região: o
bolinho de chuva assado, a broa de mandioca e a geleia de araçá.
Da mesma forma que sua prima-irmã, a cidade de Redenção da
Serra foi transferida para terras mais altas, e, portanto, não tem aquele
jeitão de cidade de tropeiros, tão típica do Vale do Paraíba. Haja vista, por
exemplo, à nova matriz de Santa Cruz, construída em um estilo totalmente
diferente da original.
Uma cidade com uma história muito pouco conhecida,
infelizmente. A foto abaixo (medíocre, mas é a única que tirei) é da praça de
entrada da cidade, que representa e justifica o nome da cidade: um negro
liberto, aludindo ao fato de que, ainda antes da Lei Áurea, Redenção da Serra (então
Santa Cruz de Paiolinho) já havia abolido a escravidão em seu território.
Até agora, falei em semelhanças entre Redenção da Serra e
Natividade da Serra. Agora, vou falar em uma diferença que percebi
intuitivamente. Redenção da Serra teve seu ego muito mais atingido pela
descaracterização e pela perda da memória do que Natividade da Serra. Pareceu a
mim uma cidade mais cabisbaixa, menos esperançosa de seu futuro. Sua população
reduziu muito: eram cerca de 10000 habitantes antes da represa, para os menos
de 4000 atuais. Quando conversávamos com os nativenses, víamos certo orgulho em
falar sobre sua cidade nova. Já os redencenses quase vão às lágrimas ao lembrar
da cidade velha. Tenho uma tese rápida, mas não confirmatória.
Redenção tem em sua igreja matriz e sua prefeitura uma
lembrança permanente de seu passado. Uma espécie de espinho na carne, um
patrimônio histórico que vai se depreciando na mesma medida em que sua memória
vai se esvaindo. Isso machuca o redencense. Na zona urbana de Natividade, nada
vemos do passado. Para tê-lo à sua frente, o nativense tem que ir aos bairros
afastados. Só que lá não existe uma mera reminiscência quase não funcional do
passado. Há uma vida que pulsa completa, uma existência que, apesar da mudança
forçada de hábitos, não morreu.
E isso tudo me faz lembrar do fluxo da História e das lições
de Filosofia da História, que busca explicar como o mundo varia em sua
temporalidade. O filósofo que me vêm à tona é Walter Benjamin. Mas vou dar um
pequeno volteio para explicar melhor.
A disciplina denominada Filosofia da História é
razoavelmente recente porque, até o Iluminismo, havia uma teoria sobre seu
desenvolvimento quase unívoca: ação divina. Seja de modo determinístico, com o
destino desenhado pela divindade; seja por um conjunto de regras que fazia o
homem, dentro de seu arbítrio, optar pelo ditame divino (sob pena de incorrer
em penalizações gravíssimas), a História era entregue pronta aos homens, e não
fazia grande sentido tentar encontrar uma lógica pelo qual os fatos históricos
se desenrolavam.
Com o progresso da humanidade, em especial com o desenvolvimento
científico e tecnológico, cada vez mais a atribuição divina foi perdendo tanto
sua consistência quanto sua necessidade. Deus passou a ser prescindível aos
homens, e a Filosofia passou a questionar mais e mais se haveria uma linha que conduzia
os acontecimentos além do mero acaso, e mais ainda: se havia a possibilidade de
se dar alguma espécie de unidade entre os diferentes períodos históricos. Alguns
filósofos abordaram meio que lateralmente o tema, até que Hegel dá a atenção
merecida ao tema, enxergando um processo dialético na formação da realidade,
conforme já pude pincelar neste texto, e que, por isso mesmo, vou repassar
muito rapidamente, por amor à coesão deste texto.
Hegel entende que, em tudo o que acontece na vida, os fatos
já carregam em si mesmo a própria contradição. Por exemplo: se eu compreendo o
conceito de bom, automaticamente já
compreendo o sentido de mau, e, entre
a bondade absoluta e a maldade absoluta, temos o meio-termo. Se a tese é o bem,
que vive em harmonia com o mundo, mas que pouco se protege; e o mal é sua
antítese, que é malicioso, mas que se isola da vida em comum, podemos observar
que o bom precisa se aproximar do que sua antítese é, para sobreviver, ou seja,
precisa aumentar seu grau de desconfiança, suas armaduras, etc. Por outro lado,
o mau precisa ser concessivo, estabelecer algumas regras em que sua agressividade
não o destrua a si próprio. Ambos se aproximam em síntese, que é uma terceira
via. Acontece que esta própria síntese já é uma nova instância dialética, que
também contém a contradição de si própria. E daí um novo movimento dialético se
faz, ad infinitum. Para Hegel, o
mecanismo que faz com que a dialética se mova é ideal, o chamado Espírito, mais conhecido como Geist, no original alemão. Quando diz
respeito ao tempo, é o Zeitgeist.
Depois disso, Karl Marx observa as teses de Hegel e concorda
em parte com elas. No entanto, ele não compreende que o processo dialético se
dê de maneira idealista, mas concreta. Para Marx, as coisas acontecem no mundo
e só nele, sem instâncias divinas ou seja lá o que for. É o materialismo histórico dialético, que
já tratei neste texto (desculpem se estou sendo repetitivo, mas preciso
dar um fio condutor para o que estou redigindo agora). E qual é o elemento
deflagrador do processo histórico, se não temos nada metafísico que o dispare?
É a luta de classes. Tudo pode ser explicado pela luta de classes: a ética, a
política, a arte, a religião e tudo o mais. Se um regime endurece, é por conta
da luta de classes; se um artista se destaca ou se obscurece, é por conta da
luta de classes. E assim sucessivamente.
A par disso, temos também a tese positivista, mais linear, e
que se baseia, em suma, no progresso, como já esmiucei aqui. Os
positivistas entendem que, após o término de um estado religioso e dogmático,
já não há mais amarras para a evolução da história, tendo como base seus avanços
científicos. A técnica permite ao homem obter resultados antes inimagináveis, e
que se sabe que evoluirão ainda mais. Mais doenças serão curadas, mais
artefatos de guerra permitirão um novo paradigma na conquista, mais aparelhagem
deixará a quantidade de mistérios e de usos dos recursos do planeta mais
aperfeiçoados. O propulsor da História sempre foi a técnica, mas que se
arrastou lentamente por séculos. A aceleração no progresso será sempre
exponencial.
Tendo tudo isso agora em mente, poderemos analisar o
pensamento de Walter Benjamin, pensador alemão da Escola de Frankfurt. Há,
inclusive, certo desconforto em enquadrá-lo como membro desta escola, haja
vista algumas discrepâncias fundamentais com o marxismo. No entanto, não vamos
discutir esse aspecto neste momento.
Benjamin entende que toda História que chega a ser baixada
em registro é aquela contada pelos vencedores. O historiador é quase que
compelido a se associar ao vencedor por uma questão de empatia: sobre eles,
repousa toda a glória da conquista, com sua visibilidade e quantidade absurda
de fontes. E não é só. Todo o contexto cultural gerado após a conquista trata
de produzir loas ao seu condutor, ainda que sub-repticiamente. Mas não há como
evitar que a História e a cultura tenham dois lados. Os monumentos da cultura
são também monumentos da barbárie. Isso porque retratam um status da cultura
produzida por um determinado projeto: o projeto de quem venceu, e a história
dos vencidos é sempre jogada para baixo do tapete, ficando mofada nas memórias
de quem quer mais é jogar fora o passado. Os próprios vencidos concordam com
esse fio.
Essa História imiscuída faz com que Benjamin discorde
frontalmente da ideia positivista de progresso como impulsionador da História,
porque é uma História parcial. Vejamos o que ele diz a respeito:
“Há um quadro de Klee [N. do A.: Paul Klee, pintor alemão
surrealista] que se chama Angelus Novus.
Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara
fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe
única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos
pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos.
Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força
que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas
cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
Para quem não conhece a obra, peguei uma amostra na
internet, disponível no endereço http://lounge.obviousmag.org/ruinas/2012/09/angelus-novus.html.
Walter Benjamin, pelo que é possível compreender deste
fragmento, vê a História como o produto das catástrofes, produzida pelos
vencedores e suportada pelos vencidos. O progresso, diz ele, é um método que
permite acumular ruínas sem se aperceber delas. O tempo não é um vazio por onde
o progresso percorre e a História não tem uma linearidade – ela é inflexionada
pelas catástrofes. Mais ainda: a História precisa esmiuçar não só as versões
dos vencedores, fartamente disponíveis, mas também os fatos ocultos daqueles a
quem a catástrofe desfavoreceu.
As catástrofes são de fundo meramente natural, como as
enchentes, as tempestades e os terremotos? Evidentemente que não. O próprio
exemplo de Redenção da Serra é um exemplo de catástrofe. A vida de toda uma
comunidade foi transformada a partir da imposição de um governo. Lembremos que
a operacionalização da represa de Paraibuna se deu em um momento de regência da
ditatura militar. Não foi uma escolha, e sim uma imposição. Hoje em dia, ainda
as imposições funcionam, mas sem a mordaça na boca que era imposta em tal
época.
Benjamin escreve em um período semelhante, mas ainda pior.
Era o momento da ascensão do fascismo, com sua variante mais perniciosa: o nazismo,
que lhe atingia mais diretamente, pelo fato de ser judeu. Era justamente no
surgimento desta vertente política que Benjamin produz sua desconstrução mais
radical do conceito de racionalidade do progresso. Se este é o fio condutor da
história, como é possível a existência de um regime baseado na irracionalidade?
É porque mais uma vez a realidade dialética se apresenta: o fascismo é o contraponto
da racionalidade. Está contido nela, na forma de antítese. Se não é inevitável
que o progresso técnico ocorra no fascismo, o mesmo não se pode dizer no plano
político-social. É o regresso da barbárie. Neste sentido, o pensamento de
Benjamin se prova muito humano, ao não esquecer das pequenas histórias dos
vencidos.
Ainda que ninguém tenha morrido fisicamente na invasão das
águas em Redenção da Serra, é fato que muito dos significantes se desmancharam
nas águas, e isso é de uma violência difícil de conceber. As histórias de seus
habitantes foram reescritas de modo a causar necroses em suas almas,
complicadas de curar.
Isso tudo não significa que eu não tenha gostado da cidade.
É um povo muito receptivo, que nos oferece café pelo simples fato de dizer “bom
dia”. E há boa comida, e há muitos peixes, e há como fazer turismo ecológico
nas suas novas margens. Gostaria de rever a igreja matriz reformada, e que esse
fato significasse uma espécie de nova inflexão para a autoestima do lugar.
Recomendação de leitura:
Recomendo o seguinte livro de Walter Benjamin, que, além de
seus pensamentos sobre História, contém muitos outros textos interessantes, que
versam sobre arte, religião e etc.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica. Arte e
Política. São Paulo: Brasiliense, 2012.
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