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quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Para lá da serra que eu vejo na janela – 5º episódio: Pedra Bela e o frio na espinha que nos faz pensar em sociedades de consumo

Olá!


Esqueci de contar. Antes de ir a Vinhedo, nossos anfitriões Pedrão e Lourdes nos ofereceram um belo de um almoço, com coisas do tempo da avó. Arroz, feijão, frango caipira, salada e uma farofa feita com inhame e jiló, que, a despeito dos ingredientes, estava mui saborosa, desmistificando a visão de que não dá para comer bem sem carne bovina.

Ficamos um bom tempo ao redor da mesa, ouvindo e contando histórias, comparando cidade e campo, essas coisas que se costuma fazer quando se trocam experiências. Além disso, aquelas perguntas que se fazem a turistas: já foram lá, já foram aqui, tem isso e aquilo e ademais. Relacionados todos os locais por onde já havíamos passado, a Lourdes perguntou se pretendíamos ir a Pedra Bela. Se não pretendíamos, pretendemos agora. Vamos para lá.


Pedra Bela traz em seu nome dois designativos muito reais de si mesma. É mesmo bela e é uma região acidentada como Brazópolis, formando uma grande sucessão de montes e vales, e constituindo a terceira cidade com a maior altitude média do estado de São Paulo, atrás apenas de Campos do Jordão e Santo Antonio do Pinhal. A área urbana nasceu em um dos pontos mais altos, sendo marcada pela igreja do padroeiro, São Sebastião.


A cidade não é exatamente jovem, e já fez parte do município de Bragança Paulista. Tem algo em torno de 150 anos e se chamava Santa Cruz do Feital. Depois, passou a se chamar Vila da Pedra Grande. Para se chegar lá a partir de Piracaia, entra-se e sai-se várias vezes do estado de Minas Gerais, passando pelos municípios de Toledo e Munhoz. É muito difícil determinar onde você está exatamente enquanto está na estrada.


O nome da cidade, este sim é recente, tendo pouco mais de setenta anos, e se deu para diferenciar com a Pedra Grande que fica em Atibaia, cidade bastante próxima. Há uma boa quantidade de casas típicas de um vilarejo tranquilo.


Vou começar minha visita pelo fim, para dar ênfase ao que eu quero no momento certo. Há, como faz imaginar o nome e em uma terra com tantos desníveis, muitos locais para se embrenhar na zona rural e subir-descer por trilhas. Um desses é a Pedra Maria Antônia, que tem um caminho de terra saindo a partir da estrada que liga àquela em que estávamos. Esta foto foi tirada a partir da Pedra do Santuário, a mais conhecida da cidade.


Se chegarmos a Pedra Bela por Bragança Paulista, rota mais razoável para quem vem de São Paulo, entraremos pelo lado oposto, onde temos o pórtico de entrada da cidade. Bem ao seu lado, começamos a ter uma vista fenomenal de toda a região, com destaque justamente para a tal Pedra do Santuário.


A fama da igrejinha no alto da pedra se dá por uma daquelas deliciosas histórias que o povo conta. Narra-se que um menino órfão, de nome Antônio, vivia abandonado por aquelas montanhas. Um dia, pela caridade de um fazendeiro da região, o garoto foi recolhido e passou a conviver com as pessoas da fazenda. Ele tinha uma série de visões extáticas, onde olhava e ouvia uma mulher muito bonita, toda iluminada e perfumada de rosas, que era identificada com Maria, mãe de Jesus. Em uma das aparições, a santa disse ao pequeno Antônio que gostaria de ter uma pequena ermida no alto da pedra em sua homenagem. Sabido este desejo, a população local tratou de providenciar a construção da capela que hoje nomina o local.


Como vocês verão, a importância deste monte é nuclear para Pedra Bela. Seu nome é meio óbvio. No seu topo, existe uma pequena igreja (vista de longe, parece bem maior) dedicada a Nossa Senhora Aparecida, padroeira da judiada Terra Brasilis. No começo da subida já há uma capelinha, para que os fiéis rezem por suas almas e seus joelhos.


Isso porque a subida não é exatamente brincadeira de crianças. Além de se ter de levar em conta que pedestres já precisaram andar um bom trecho em franco aclive, a partir da capelinha vem uma escada respeitável. Na minha contagem, apesar de ser bem mais modesta que a escadaria do Santo Cruzeiro de Piracaia, esta aqui tem 320 degraus. A vista daqui alivia muito, porque se a concentração for toda nos degraus, é meio puxado.


Isso faz pressupor que a empreita é levada com algumas paradas não somente estéticas, mas também místicas. Suponho que, certamente, o pessoal suba as escadarias rezando terços e outros ritos, estacionando aqui e ali para também respirar, como nesta simulação da gruta de Lourdes.


Todo o caminho é cercado de mata e de propriedades rurais, umas se mesclando com as outras. Por lá, há uma quantidade grande de borboletas e muitos lagartos andando pelas pedras e se enfiando nas fendas todas as vezes que tentamos fotografá-los. Mas a persistência resolve.


Olhando assim, dá a impressão que está tudo novinho em folha, bonecão para subir e descer. É verdade, mas essa não é a escada original, toda segura e bem cercada. Em alguns pequenos trechos, é possível ver a escada original, toda de tijolos.


Quando já se está quase no topo da pedra, fica mais evidente sua formação granítica, especialmente atraente para quem quer aprender a escalar. Para os romeiros, prossegue a escada, e a visão do Cristo Redentor é o sinal de aproximação.


O ponto final é a tal da igrejinha idealizada pelo menino Antônio. Todos os anos, por ocasião da festa de Aparecida, todo o morro fica iluminado em festa pelas procissões dos peregrinos que para lá acorrem.


Apesar de tudo o que eu disse até agora, é no costado do templo que se localiza a principal atração turística do município: a Mega Tirolesa, que tem quase dois quilômetros de comprimento e que percorre essa distância a 100 km/h, em altitudes médias de 250 metros de altura. Uma tirolesa, para quem não sabe, é uma cadeirinha de alpinista que percorre a distância entre dois pontos através de cabos de aço. No nosso caso, estes estão firmemente encravados na pedra, com um calibre que permite carga segura de pessoas com até 150 kg.


O resumo da ópera é que todo o vale entre a Pedra do Santuário e o centro urbano é atravessado pelo contribuinte que se disponha a gastar os cinquenta dinheiros que lhe representa o custo, que inclui o transporte de van e a instalação dos anteparos, que inclui um inútil capacete coquinho. Observando a foto abaixo, dá para se ter uma ideia da plataforma de onde se parte. A seta indica o ponto de chegada.


Trata-se da terceira maior tirolesa do mundo, perdendo apenas para uma nos Emirados Árabes e outra em Porto Rico. Este nome tem razão no fato de que a prática surgiu na Áustria, na região do Tirol, e era utilizada para se deslocar rapidamente entre dois pontos altos, coisa comum em plagas alpinas. No ponto de chegada, você descobre que o pessoal da equipe te filmou de fora a fora e te vende todo o take por mais vinte moedas de valor vigente em Terra de Santa Cruz.


Eu tenho dificuldades até mesmo para subir na banqueta para rosquear uma lâmpada. Portanto, nem fodendo que eu entro numa dessas mal me aproximei das plataformas. Não é o caso da patroa, que é mais valente para essas coisas de altura. Já falei sobre medos compulsivos neste espaço, e talvez eu esteja carregando muito nas cores para melhor ilustrar o debate que quero suscitar agora, mas o fato é que eu vejo essa história toda como uma espetacularização do sofrimento.


Exagero, né? Mais ou menos. Em primeiro lugar, vamos ao desagravo. Uma tirolesa é uma diversão absolutamente legítima para que gosta dessa coisa de adrenalina. Para eu encarar uma dessas, precisaria começar de pouco, em percursos curtos e altitudes for dummies, como o Aerobunda da Lagoa de Jacumã, no RN, e progressivamente radicalizar os trajetos. Mas toda a propaganda nos faz crer em experiências incríveis, daquelas coisas que não podemos morrer sem ter feito, e coisas que o valham.

Novamente. Tirolesa não é um mal em si e não quero desmerecer em absoluto a Mega Tirolesa, como um covarde que se esconde atrás de argumentos para disfarçar seus medos. Mas é que, ao fim, você parece impelido a não ser um ET que não quer sentir as melhores sensações do mundo. Principalmente porque qualquer tipo de propaganda nos dias de hoje é feita de modo muito agressivo e, em especial, psicologicamente envolvente. Senão vejamos.

Há muitas discussões hoje em dia sobre o modo com o qual as redes sociais afetam nossas vidas. Em resumo, temos a tendência em expor apenas o lado bom de nossas vidas, sem nem ao menos perceber que todo mundo faz exatamente a mesma coisa. Para quem é especialmente sensível, a coisa funciona como uma régua: quanto maior o número de coisas legais que meus amigos apresentam em seus perfis, mais vazio eu me sinto de vivências extraordinárias. O que falta à minha percepção é que o fenômeno se repete na mente de cada desses meus amigos, com o mesmo fenômeno de inferioridade – a não ser que estejamos diante de um caso de narcisismo patológico. Como este é um fenômeno dos nossos tempos, em que a técnica nos permitiu sobrepor nossa imagem a qualquer paisagem em uma prosaica selfie, é importante tentar entender de onde surge esse verdadeiro culto.

Não há como desvincular a inflação dos egos da cultura de consumo típica do capitalismo. A sociedade moderna é permanente guiada por dois caminhos: um, o da intensificação de consumo dos supérfluos; outro, o de sofisticação do consumo necessário. Com relação a este último, vou dar um só exemplo, muito direto – papéis higiênicos de folha tripla. Qual é a real necessidade que temos de utilizar esses produtos? Folha dupla já não é um luxo? Mas quem faz as propagandas realça a leveza, a maciez, a contraditória fragrância. E com isso busca trazer um convencimento para o consumo mostrando um mundo perfeito. Pode-se pensar no que se quiser: propagandas de margarina em que todo mundo levanta penteado, propagandas de banco em que as pessoas obtêm sorrindo seus empréstimos a juros exorbitantes, propagandas de roupas em que modelos de corpos perfeitos não apresentam nem uma pinta fora do lugar. Esse mundo é idealizado para ser um objetivo a ser alcançado, mesmo que seja inalcançável.

Mas é óbvio que a construção de uma sociedade de consumo não se faz de maneira tão escancarada. Os diferentes empreendimentos comerciais seguem linhas de tendência que são implantadas por casos de sucesso. Por exemplo, a força da imagem foi descoberta muito posteriormente aos argumentos pretensamente racionais que a antiga propaganda utilizava (como eu já esbocei neste texto). Isso tudo demonstra como o envolvimento emocional é mais eficiente que a lógica para disparar os processos decisórios de aquisição. Mas estes processos podem ser levados a paradigmas que levam à substituição da realidade mundana para outra dimensão, totalmente calcada na fantasia. 

Segundo o sociólogo norte-americano Alan Bryman, o principal motor e modelo bem-acabado dessa substituição do real pelo inexistente é a Walt Disney Company, a famosa empresa de entretenimento que criou personagens inesquecíveis, como Mickey Mouse, Pato Donald e tantos outros. A este processo, deu o nome de disneyzação (disneyization).

A mecânica por trás da disneyzação não está nos seus personagens, filmes, livros ou gibis (apesar de lhes serem subjacentes), mas nos imensos parques temáticos que cada vez mais se espalham pelo mundo. Estes locais são construídos de forma a se produzir uma experiência de imersão tão profunda que é muito comum que as pessoas que lá frequentam muitas vezes percam os ponteiros da realidade. As coisas são como se estivéssemos entrando em um mundo paralelo, como se a Pequena Sereia ou a Cinderela existissem de fato, e esse envolvimento emocional extremo conduz a um autêntico universo de consumo.

Bryman observa algumas características da implantação estrutural da Disney que são replicadas na sociedade de consumo como um todo. Em primeiro lugar, os parques são fortemente tematizados. Nos parques, evidentemente temos a própria aplicação do universo Disney, como castelos de princesas, selvas e outros ambientes. Mas essa tematização se espalha na medida em que a oferta de produtos busca atingir nichos mais ou menos flexíveis. Desta forma, pensando em uma hipótese fora de Orlando, quando você imagina um boteco, deve certamente pensar em bebidas e petiscos. Quando você introduz um tema, como o mote futebolístico, por exemplo, busca atrair não só quem se interessa pelo produto que se vende, mas por um público novo, mais específico e que tem outros interesses. Em um bar com a temática futebolística, há uma decoração que remete a um estádio, os garçons se vestem a caráter, as paredes estão forradas de distintivos e os drinques tem nomes que remetem a times e porções que recordam seleções. Observem que não há qualquer correlação imediata entre consumo de bebidas e futebol, ainda que tendamos a associá-los.

Outro ponto detectado pelo nosso caro ianque é a hibridização do consumo. O que significa isto? É uma maneira de um único negócio abraçar mais de um tipo de consumo, dando variedade na oferta à sua clientela. Na Disney, isso corresponde à incorporação de negócios que, apesar de correlatos, são estranhos ao objeto social, que é o entretenimento, mas que é acompanhado pela venda de alimentos, pela hotelaria, pelo transporte. Continuando com o suposto bar, podemos ver esse tipo de fenômeno quando um estabelecimento, que já por sua própria natureza vende comes e bebes, passa a oferecer ingressos para assistir partidas ao vivo em um telão, com som surround e ar condicionado. Novamente aqui, a interligação entre duas ou mais esferas de negócio não tem uma relação natural de contiguidade, mas a atração que um traz acaba sendo irradiada para o outro.

Alan Bryman também percebeu que os processos comerciais da Disney impulsionam o merchandising. Notem que, ao lado das selfies, os produtos registrados são uma garantia de que efetivamente estivemos em algum lugar ou participamos de um evento qualquer, do tipo “eu fui” ou hashtag qualquer coisa. No mundo Disney há bonecos, há bonés do Pateta, há orelhinhas do Mickey, um monte de souvenirs, todos com suas trademarks. No nosso exemplo botequeiro, há uma infinidade de quinquilharias com a logomarca da baiúca: canecas, taças, adesivos, chaveiros, talvez até mesmo um rótulo de bom vinho.

Por fim, a construção de um ambiente idealizado não funciona se as pessoas envolvidas não se adaptarem a ele. O trabalho é uma autêntica performance, onde todas as partes cumprem um novo papel. Há inúmeros figurantes que se apresentam com aqueles enormes cabeções de plástico e, mesmo pessoal braçal, parece encenar um papel. Vamos para a bodega hipotética e os bartenders dão palpites, os balconistas anotam apostas e os garçons analisam atuações. Nós já não vamos a este bar imbuídos de uma vontade de beber pura e simples, mas vamos vestidos com a camisa de nossos respectivos times. Às vezes não consideramos ir ao estádio para assistir a um jogo, mas sim ao bar. O processo psicológico a que somos submetidos visa apresentar uma atividade prosaica, como tomar um goró, em uma experiência inesquecível, mesmo que totalmente inautêntica. Esse é o grande risco que Bryman vê na disneyzação: uma perda do sentido de limite entre o que é real e o que não é. Ir ao bar para ver o jogo parece ser a realidade, e não ir para a arquibancada. De certa forma, é uma reprodução da lógica de simulação e simulacro pensada por Jean Baudrillard (leiam aqui).

A disneyzação, vista assim, parece que tornará toda a sociedade um grande parque de diversões, com um bando de alienados agindo como crianças. Não é assim a coisa, até mesmo porque as sociedades não são homogêneas. A disneyzação não é um fenômeno em si mesmo, mas uma derivação do modo de pensar capitalista que, se não estivesse plasmado em seus parques, seria visível em outro lugar e de outras formas, mais ou menos intensas. Isso porque o consumo é sempre apresentado como algo bom, provedor de prazer e status, mas esta também é uma associação com boa dose de forçação, porque nem todo consumo se faz com sorriso na boca, medicamentos e empréstimos bancários à frente.

Mas, no fim e por fim, os parques da Disney são usados por Bryman não porque formataram um modelo que é reproduzido globalmente, mas porque reúne em si todas as características que, estudadas isoladamente, ficam mais difíceis de perceber. A tirolesa de Pedra Bela não pode ser comparada com o que vemos nos imensos territórios da Disney, nem que seu pessoal pensa em vender meras ilusões indistinguíveis do mundo tangível. Pelo contrário. Mas lá também podemos notar uma tematização que enfatiza a aventura, a hibridização que combina corrida, filmagem e aluguel de câmera, o merchandising que vende souvenirs e a performatividade dos empreendedores que se vestem como se fossem descer a tirolesa a cada instante, e que apresentam a nós uma filosofia do momento como veículo do prazer. Não estão mentindo. Mas é preciso não esquecer o quanto Pedra Bela é bonita sem que se precise usar o grito da emoção como móbile da própria vida. Não. O consumo é uma alternativa, e não caminho de mão única.

Tô meio chato. Melhor parar por aqui, até mesmo porque prometo me esforçar para vencer meus medos e vencer os dois quilômetros de terror. Será que, no final das contas, não estou apenas tomado de ressentimento? Pode ser. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Livro essencial para compreender como os modelos de sociedade estão fortemente vinculados a atitudes emocionais e como os diferentes conglomerados acabam por deixar menor visíveis as linhas que dividem a realidade da fantasia.

BRYMAN, Alan. A disneyzação da sociedade. São Paulo: Ideias e Letras, 2007.

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