Ontem à noite acabou a luz. Foi uma piscada rápida, coisa de
cinco minutos, no máximo. Como sempre, alguns transtornos: vamos acertar o
relógio do micro-ondas, encher a cuba do filtro do aquário (defeito velho que
nunca lembro de arrumar) e escrever boa parte deste texto novamente, por que só
Cristo salva. Apesar da exiguidade deste lapso, deu tempo de recordar dos
tempos de infância, quando os longos períodos em que faltava força me obrigavam a
estudar sob a luz de velas. Alguns períodos eram realmente longos, como quando
trocaram os postes de madeira da rua por artefatos de concreto. Deve ter levado
uns dois dias para a completa empreita. De uma forma ou de outra, a luz voltava
e, com ela, a normalidade. Pior era com os meus parentes do Paraná. Eles
moravam em uma cidade a meio caminho entre Maringá e Umuarama, e energia
elétrica era artigo de luxo. Não que fossem ricos ou pobres, era uma questão de
cabeamento – simplesmente não existia. Final de campeonato era coisa para se
ver no boteco que funcionava à guisa de rodoviária ou acompanhar pelo radinho
de pilha mesmo. Desta forma, todas as vezes que viajávamos para lá a atração
turística era a noite: o lampião de querosene com seu cheiro forte, competindo
com o café coado na “calcinha da velha” e nada mais, além do papo no alpendre
da casa toda de madeira. Era legal por quatro ou cinco dias, mas o costume
urbano logo começava a cobrar seu preço.
A dependência da tecnologia me faz imaginar o que deve ter
sido o surgimento de objetos como a lâmpada elétrica, ou o maravilhamento que
foi ouvir a voz de um parente a milhas e milhas através de um telefone, ou a
comoção de se andar em uma carroça sem cavalos. A base da tecnologia, a
Ciência, tem a credibilidade dos grandes feitos e explica o mundo sem a
necessidade de misticismos. São átomos, ondas, gravitações e magnetismos,
substituindo os antigos humores de divindades e energias de entidades
esotéricas, tudo bem sintetizado em fórmulas químicas e expressões matemáticas.
No entanto, apesar de carregarem em seus bolsos celulares que contêm milhões de
informações e funcionalidades, as pessoas continuam riscando a cara com
sinais-da-cruz. Jogadores que têm carros com mais tecnologia embarcada do que
um foguete do início da era espacial ajoelham e erguem os braços ao céu a cada
gol marcado, agradecendo a Deus pelo sucesso, e não ao técnico, ao
fisiologista, ao médico. Órgãos transplantados e marca-passos instalados não
são suficientes para que o fiel deixe de consultar sua sina, seus búzios, suas
runas com mais confiança que seu colesterol e triglicérides. Em um mundo
cercado de ciência por todos os lados, ainda há uma maioria da população que
crê no que não vê, no que não se prova, apenas se pressente ou intui. O que
explica o fenômeno religioso? Essa é a tarefa da Filosofia da Religião.
Assim como fiz com Estética
e Filosofia
da Arte, é preciso estabelecer algumas distinções logo de cara, para evitar
confusões. No caso, Filosofia da Religião é distinta da Teologia, porque esta
última já pressupõe uma divindade e lança seu foco sobre ela, enquanto a
primeira prescinde até mesmo de se crer na existência de alguma delas, já que
seu olhar se volta para as estruturas humanas que permitem a existência e o
desenvolvimento das religiões, independentemente da posição do filósofo. Em
resumo, a Filosofia da Religião tem um propósito laico, onde é indiferente a
existência de um deus, mas do fenômeno religioso em si. Ok?
A primeira coisa a pensar é a seguinte: por uma questão
evolutiva, a humanidade possui o máximo interesse em saber o autor dos
fenômenos que ocorrem no planetinha e fora dele. Vejam se não faz todo o
sentido biológico: você e um camarada pré-histórico estão cochilando após o
almoço embaixo de uma mangueira primitiva. Um ruído se ouve a alguns metros e o
companheiro se assusta, se levanta e fica ligado, enquanto você permanece na
modorra. Quando percebe a fera vindo, pega o beco e deixa você virar petisco.
Muy amigo! Mas veja como foi vantajoso para ele ser curioso. E a coisa,
atavicamente, funciona até hoje. Puxe pela memória e você lembrará de alguma
panela que caiu do armário. Seu cônjuge, que não a guardou, achará que foi
displicência sua; você, que o fez com tanto cuidado, pensará ser uma molecagem
do saci. No final das contas, tentou-se achar um culpado, um agente, uma causa,
assim como se achou a onça ancestral no triste episódio dos dois amigos.
Da mesma forma que a mecânica da causação dá lógica a meros
fenômenos gravitacionais, como a queda da panela, também se busca uma causa
para toda e qualquer ocorrência que se passe ao nosso redor. Acontece que hoje
em dia temos conhecimento científico bem consolidado, mas a sua ausência não
nos tira a necessidade ascendente de ter explicações para tudo. Nada há de mais
doloroso do que um buraco no conhecimento, e, para supri-lo, buscamos
justificativas fora de nosso mundo imanente (num processo que origina o Deus
das Lacunas). Esse é um dos nascedouros da Religião.
Para que se explique a necessidade da Religião, é preciso
fazer algum esforço retrospectivo do que seria a humanidade em seus primórdios,
coisa que já fiz neste,
neste
e neste
textos, mas que, para o bem da clareza, retomo por aqui brevemente. Se levarmos
em conta que os sentidos são a porta de entrada daquilo que conhecemos, fica
estranho achar que há algo do “lado de fora”, invisível e imperceptível. Mas o
homem não custou muito a perceber que as coisas não aconteciam ao léu, como se
fosse um mero rolar de dados, e que seus sentidos não conseguiam alcançar tudo.
Os fenômenos se repetiam, uns em período curto de tempo, outros a médio prazo,
outros ainda em grandes intervalos. Essa percepção de uma natureza cíclica da
realidade tirou do homem recém constituído a noção de que tudo acontecia por si
só. Parecia existir algum tipo de inteligência que lhe fugia dos olhos, mas que
se manifestava na perfeição do relógio celeste e, mais ainda, quando algo
estava fora do lugar. Da mesma forma que as coisas fogem da normalidade quando
estamos tristes, raivosos ou eufóricos, também a natureza se revela tempestuosa
em certos momentos. Isso seria a prova de que não só haveria uma inteligência a
reger os ciclos universais, mas que essa mesma entidade estava sujeita a
temperamentos.
A primeira impressão foi a de divinizar os próprios
fenômenos. O Sol, os trovões, as águas, todos eles seriam em si mesmos
divindades, que carregariam uma vontade autônoma. Muitos dos mitos de origem
indígena, por exemplo, nascem deste raciocínio geral. É o chamado animismo, que
dota de espírito seres que, em tese, seriam dele desprovidos. É uma mecânica
que explica bem os desvios do ciclo, mas que dava alguma dificuldade para
responder porque a ordem geral era constituída da forma que é.
Nasce então a percepção de que há uma dimensão transcendente
do mundo, ou seja, há algo fora das coisas que se põe a regê-las, e é nesse
momento em que ocorre o destacamento da divindade do elemento respectivo e se
dá a sua personificação. Os deuses agora são semelhantes a pessoas. No entanto,
possuem atributos exacerbados: imortalidade, influência direta no elemento do
qual é regente, força e resistência multiplicadas. Os deuses são vários e, por
vezes, competem entre si, assim como a água e o fogo se contrabalanceiam. Esse
é o politeísmo.
Na medida em que se percebe que os mecanismos universais são
todos interligados, cresce a noção de que divindades isoladas, e até mesmo
adversárias, não eram suficientes para fechar o sentido universal. Para
solucionar o problema, a princípio é deslocado um dos deuses do panteão para o
alto da hierarquia, de forma que esse Deus era o centro harmônico de princípios
conflitantes. Por outro lado, a regularidade dos ciclos universais e o caminho
de retorno à normalidade que sucede os cataclismas dão a ideia holística de uma
regência unificada. Por um lado, temos a ideia de que essa divindade reinante
do politeísmo é ubíqua, já que se pode perceber ciclos por toda a parte; sua
presença também se encontra assim espraiada. Se é onipresente, também sua
consciência e sua capacidade de agir são universais. Dessa forma, atributos que
eram departamentalizados em várias deidades ficavam concentrados em uma só, e
temos o monoteísmo. Por outro lado, nasce a noção de que a universalidade se dá
não porque há um Deus que impera sobre o cosmos, mas porque o permeia. Deus
está em toda parte não porque tenha visão ampla, sapiência universal e
ademanes, mas porque ele é a própria substância de tudo o que existe. Ele está
em toda parte porque tudo é feito dele e tudo é ele. Esse é o panteísmo.
Bom. Explicar cada uma dessas divindades é tarefa da
Teologia, como eu já disse. Ocorre que todas essas explicações eram boas e
valiosas enquanto o aporte de conhecimento da humanidade era pobre e limitado.
Mas a ascensão da Ciência e a evolução tecnológica trouxe informações muito
mais sólidas sobre o funcionamento cósmico, que dispensa a divindade em muitos
aspectos, e ainda tem as vantagens das previsibilidades e da construção de
hipóteses mais bem fundamentadas. Hoje podemos pensar em teorias que seriam
incompreensíveis a algum tempo atrás, como o multiverso,
a teoria
das cordas e os buracos
de minhoca, que não brotam da intuição de um sacerdote, mas de outras
teorias que se desenvolveram e se consolidaram com base em observação e
experimento. Ou seja, por menos que se queira, a Ciência apresenta dados,
informações, relatórios, descrições, imagens, gráficos, equações e fórmulas,
enquanto a Religião apresenta, no máximo, um livro e testemunhos. No entanto,
ao contrário do que esperaria a lógica, o fenômeno religioso persiste. E sabem
por que? Porque também ele faz sentido, mesmo que não se concorde com ele.
Vejam bem. Se olharmos para o interior do homem, veremos que
existe uma perturbação psicológica permanente: a consciência de finitude. Bem
arrazoado, por ser um destino inevitável, não deveria ser algo tão
aterrorizante. Mas é que temos o diabo de um instinto de sobrevivência que fica
nos prendendo a esta casinha. Um olhar meramente científico sobre a questão só
aumenta a angústia: morreu, punto e
finito. Mas a observação cíclica da natureza, que deu origem ao pensamento
de que há algo “fora”, que governa o funcionamento do cosmos, também oferece a
ideia de que nossas próprias vidas são cíclicas, contínuas e talvez infinitas.
O ciclo se encerra para reiniciar com outra vida, seja um renascimento nesta
mesma dimensão, seja em outro plano, no mais das vezes de acordo com os méritos
pessoais. Esse pensamento é um consolo sem preço para a angústia da vida que se
aproxima diariamente da morte, o salto no abismo schopenhaueriano. Por mais que
subverta evidências, justifica-se que seja tão atraente, até porque não se
aplica somente à morte, mas a outras circunstâncias menos dramáticas. Todos nós
já nos sentimos em situação de desamparo perante o risco, como me sinto quando
cruzo a Sé à noite, por exemplo. Claro que evito os desvãos do metrô e o miolo
da praça, ladeando o permanentemente vigiado frontão do Palácio da Justiça,
mas, se eu tivesse alguém que olhasse por mim por todo o tempo, sentir-me-ia
muito mais seguro.
Mas por que optar por religiões que me ditam regras sobre
cada passo que sigo? O que faço, o que deixo de fazer, o que como, o que bebo,
o que visto e como trepo? Neste caso, é importante tentar entender como as religiões
se institucionalizam. Da mesma forma que a arte, há uma simbiose entre religião
e cultura onde uma espelha a outra. No entanto, essa relação é muito mais
conflituosa, porque a dinâmica de ambas tem velocidades diferentes. As
religiões são barcas que giram muito lentamente, sempre movidas por
transformações na sociedade que lhe são antecipadas. É natural que assim seja,
porque as religiões possuem corpos de regramentos que lhe caracterizam. É por
isso que elas são conservadoras – seus séquitos se formaram pelo que as igrejas
são apresentadas, e modificações de ritos não são como trocar o macarrão pela
feijoada no almoço de domingo. As doutrinas e dogmas são pouco mutáveis por
conta disso: apresentam uma forma de conhecimento pronto, onde pouco há para
ser moldado pela razão e muito pela fé – instâncias inversas às das ciências.
Esta última, sim, muda a toda hora. O ovo é uma pobre vítima dela. Ora é bom,
ora é ruim, já não podem ser crus, já não devem ser fritos. Nos meus quase
cinquenta anos de vida, ouvi de tudo sobre eles. De salvar a interromper vidas,
minha pobre cabecinha hemicentenária não sabe bem o que fazer com o nobre
produto galináceo. Uma religião não pode funcionar assim. Ela apresenta uma
verdade que redunda em regras sobre certo e errado. Se eu seguisse uma religião
que proíbe o consumo de ovos, saberia muito bem o que fazer. Entenderam?
E como uma religião se homologa como elemento cultural?
Fazendo remissão ainda aos conjuntos de regras próprios de cada uma delas,
percebemos que há uma questão de sacralização que representa uma modificação no
propósito original de um lugar, de um objeto ou de uma atitude. De fato, há
casos extremos, como o da cruz, que, pensando laicamente, é um instrumento de
tortura, mas que é sagrado para o Cristianismo. Explica-se: na teologia cristã,
a cruz foi o lugar onde Jesus padeceu para extirpar os pecados humanos. Sem
fazer juízo de valor, o fato de que haja um meio pelo qual a pena eterna do
inferno passe a ser evitada tira a cruz de sua função original, e a vemos
transitando por pescoços e adornando altares como sinal sagrado, apartado de
seu uso e sentido original.
Mas o processo de sacralização não é exclusivo do uso
religioso e é aplicado até mesmo por ateus, segundo nos ensina o filósofo
romeno Mircea Eliade. O objeto ou o local sagrado sempre brota de uma
anterioridade profana, ou seja, de coisas que não se relacionam a uma
divindade. A sacralização ocorre quando um objeto é separado dos demais e
colocado em lugar especial, por lhe ser atribuído um significado simbólico que
o destaca dos demais. Um processo de sacralização laico comum de se ver é um
diploma pendurado na parede, um livro de cabeceira (que não precisa ser
religioso) ou um troféu do seu time de futsal. Vou dar exemplos pessoais aqui.
Nos meus anos de juventude, eu tocava em uma banda de hard rock. Eu trabalhava, é bem verdade,
mas tinha que ajudar no orçamento doméstico e pagar minha própria escola, o que
impossibilitava grandes investimentos na carreira. Como nosso grande barato
eram músicas autorais, vivíamos à caça de festivais para mostrar nosso
trabalho. Acabamos emplacando um, do Colégio Anchieta, levando as estatuetas de
melhor banda e melhor música, Centro da Cidade, um libelo de lamentação quanto
à desnaturação do espaço urbano, onde eu dizia que “não me importa mais
saber/só me resta esquecer/que ainda cai a tarde/no centro da cidade”. Os
pequenos troféus não têm qualquer conotação religiosa, mas estão devidamente
sacralizados, expostos na estante de livros que fica logo na entrada do meu
apê, à vista de todo mundo que adentrar. A menorzinha é ainda mais sagrada,
porque é de uma composição minha que brotou o prêmio, enquanto a outra é do
grupo todo.
Ao lado das estatuetas clássicas com Nice, a deusa grega das
vitórias, há dois pequenos troféus, na estranha forma de lápides. Também
representam glórias caseiras, e simbolizam o bicampeonato da minha filha no
concurso de redação da escolinha em que ela estudava. Ela sempre gostou de
escrever e falar de historinhas, mas ela mesma não punha fé alguma em levar um
dos prêmios, e o fez mais por obrigação do que por vontade. Ela reclama um
bocado do formato da láurea, mas também a tem em local especial.
O outro caso se deu com meu filho mais velho. Em 99, quando
ele tinha apenas sete anos, o Corinthians foi campeão paulista. Acho que foi o
primeiro título que ele acompanhou de verdade. Minha mãe, à época, conhecia um
conselheiro do clube, que a convidou para a festa. Lá, ela comentou sobre o
neto, o quanto ele pulou e gritou. O tal conselheiro, uma pessoa de certa fama,
tirou a faixa de campeão que lhe ornava de transverso e a deu à minha mãe, para
entregá-la ao neto. “Que seja a primeira de muitas”, disse ele. E realmente
foi. Após essa data, o Timão ganhou de tudo. Mundiais, Libertadores, Brasileirões,
Copas do Brasil, Rio-São Paulo e outros tantos estaduais. Não pareceria que o
estadual de 99 receberia um lugar especial, individual, apartado dentre tantas
conquistas mais significativas, mas a faixa está lá, encerrada em uma moldura,
na parede do quarto de dormir, devidamente sacralizado.
O que Eliade nos ensina é que a sacralidade,
independentemente de uma religião institucionalizada, é inerente à espécie
humana. A noção de sagrado vai acima da que a Religião lhe atribui. Em qualquer
cultura, seja qual for o nível de religiosidade que a mesma possua, há um
elemento derivado da consciência de seus indivíduos que realiza essa distinção
entre o sagrado e o profano, como se naturalmente distinguíssemos as coisas que
devem ser separadas das demais. O objeto sacralizado recebe atributos tão
dignos de nota que seu movimento inverso, o da profanação, ganha um aspecto
altamente negativo. É uma qualidade que se perde, e uma qualidade vital, porque
distintiva. É jogar algo que se tinha em alta conta na vala comum. Profanar um
cadáver, por exemplo, nem deveria ter esse nome, mas como a maioria das
culturas veem o corpo como algo sagrado, que já foi capaz de reter uma alma que
o habitou, acabam por outorgar a esse ato um estatuto que suplanta a mera
intervenção sobre um cadáver.
A supressão da angústia e a noção de sacralidade são
sentidos naturais para a religiosidade, ainda que a Religião em si seja
obrigatoriamente cultural. Ainda há outros aspectos que são observados pela
Filosofia da Religião, como a sensação
de pertença a uma unidade universal ou ao sentimento
oceânico freudiano, mas, nestes casos, vou pedir para vocês lerem os textos
dos links, porque este já está ficando muito longo. Bons ventos a todos.
Recomendação de leitura:
Não há como não recomendar a obra de Mircea Eliade, que faz
observações muito sensatas com relação à estrutura das religiões. Recomendo o
livro abaixo, que certamente voltarei a recomendar por aqui.
ELIADE, Mircea. O
Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes,
2010.
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