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domingo, 25 de novembro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 6ª estação: Brazópolis observando o universo e as armadilhas da realidade e do senso comum

Olá!


O dia em que fui para Piranguinho estava muito, mas muito quente, em completa oposição aos demais dias desta até então úmida aventura. É aquela famosa anedota dos extremos: tá reclamando? Vai prá Cuba! Mas eu acho que Cuba é ainda mais quente do que o Sul de Minas, então me dou por satisfeito. Meu carro não tem um ar condicionado dos mais ferozes, embora beba um combustível lascado. Mas, ainda assim, é um ar condicionado, que vence em frialdade o scirocco tupiniquim que vem das meras janelas abertas. Portanto, vamos fechá-las para amplificar o aroma das paçocas e pés-de-moleque e pegar estrada novamente. Para quem está com fome (estamos próximos do meio-dia), é meio torturante, ainda mais sabendo que a quantidade de açúcar que transporto nesses acepipes é suficiente para levar ao coma qualquer diabético de minha nacionalidade, eu incluso. É o meio caminho entre a ironia e a contradição.

O rumo já é conhecido de vocês, caso tenham lido meu texto anterior. Como eu já expliquei em outros textos, mais notadamente naquele que relato minha viagem a Monte Alegre do Sul, eu gosto de bebericar uma branquinha, bem de leve. Nem em sonho eu bebo antes de dirigir, e, para isso, tenho na patroa uma sommelier competente, para depois curtir de boa na lagoa. Estou na rota de Brazópolis, terra de morros e vales que parecem infinitos, terra natal do meu colega João Francisco, que sempre traz um queijinho para nosso deleite. O conceito de “plano” parece inexistir por aqui.


Substituindo o nome anterior do lugarejo, que era São Caetano da Vargem Grande, o topônimo é homenagem ao Coronel Francisco Braz, o mesmo que nomeia a praça da matriz de Piranguinho, pai do presidente Wenceslau, um dos políticos que fez parte da dobradinha café-com-leite, a alternância combinada no poder entre paulistas e mineiros. Bom, acho que estou me repetindo, mas preciso deixar este texto minimamente autônomo. O busto que lhe faz memória está situado na praça da igreja matriz.


Esta última, cujo padroeiro é São Caetano di Thiene, originalmente era uma capela de fazenda, que abarcava a região em que hoje está instalada a praça. Infelizmente, estávamos em pleno dia de Nossa Senhora Aparecida, motivadora do feriado, e as atenções estavam voltadas para outro ponto da cidade, que veremos mais tarde. Por aqui, a matriz encontrava-se fechada, mas a bela feitura de seu exterior faz imaginar que sua parte interna também seja agradável de se ver.


Pude perceber que a cidade tem muitas construções antigas, algumas delas datadas do século XIX. Em um exemplo, há o prédio do Grêmio Operário 1º de Novembro, que congrega algumas atividades sociais, como time de futebol e concursos de misses. Pelo que conseguir levantar a custo, pelo menos até 2013 ainda estava ativo.


Ainda na categoria “edifícios”, o prédio mais curioso de todos é, sem dúvidas, o castelinho em cujo frontispício estão os dizeres Vila Dona Benedita de Faria Pioli. Diz-se que o proprietário desejava morar em um castelo, e resolveu homenagear a senhora sua mãe. Hoje em dia, após muitas considerações sobre espectros e assombrações, o espaço é aproveitado como arquivo municipal.


Em outro ponto da cidade, já quase no caminho do distrito de Luminosa, há os restos mortais do que um dia foram os depósitos da ferrovia da cidade.


Bom... A partir deste ponto, pegamos a estradinha de terra que leva ao nosso objetivo primaz neste périplo a Brazópolis: caçar a boa bebida que provamos em Delfim Moreira. Luminosa é um patrimônio de dois ou três quarteirões, perdido no meio de morros e plantações.


O lugarejo é muito próximo à divisa com o estado de São Paulo. Do lado de lá das montanhas abaixo, está situada a cidade paulista de São Bento do Sapucaí, produtora de mosaicos e azeite à qual já visitei e mencionei em meu blog.


A construção mais notável é a igreja de Nossa Senhora das Candeias, que é o centro espiritual da rota chamada Caminho da Fé, que se inicia em Águas da Prata e desemboca no santuário nacional de Aparecida. Trata-se de uma gigantesca trilha que corta montes e vales para ser feita a pé ou, no máximo, de bicicleta, serpenteando 322 Km em seu eixo principal por altitudes que chegam a mais de 1800 metros.


Na entrada do pequeno núcleo urbano fica o sítio que abriga o alambique Luminosa, onde também é servida comida de fogão a lenha e outras bebidas. Seu acervo de cachaças é vasto, com misturas de todo tipo.


A produção é feita de forma quase que totalmente artesanal, com os destiladores, fornos e tanques expostos para visitação, além de toda a infinidade de garrafas colocadas no próprio armazém, com amostras de degustação de todos os produtos, feita orgulhosamente pelo seu dono, o Guido. Haja fígado.


A grande atração, além das puras, é a cachaça de banana, mas há muita variedade disponível, com algumas um tanto exóticas. Na rosa-sol, por exemplo, vai cravo, canela e mais alguma coisa que eu esqueci. Boa.


De volta para o centro do município, fomos dar um rolê pela região do santuário de Nossa Senhora Aparecida, com o objetivo de descolar uns acepipes nas barracas típicas. É um ponto muito alto e bonito de Brazópolis, onde não pontua apenas o templo, mas os belos e grandes prédios da Escola Técnica.


A igreja, como sói acontecer nessas datas comemorativas, estava plena e absoluta, enfeitada de ponta a ponta e preparada para receber fieis e nem tanto, alguns interessados em render culto, santificar ex-votos, outros para pedir e agradecer, e outros ainda para satisfazer a curiosidade e comer alguma boa pamonha.


A réplica da imagem da santa, que, à moda do santuário nacional, possui uma passagem por detrás do altar, também estava preparada para receber seus visitantes. No momento em que passei por esse lugar, imperava uma certa modorra, dado o imenso calor e o período pós-prandial (hora da siesta, em espanhol rudimentar, com acento aberto no “e”), mas o segundo turno de visitações estava previsto para a fresca do fim de tarde/começo da noite.


A marca principal de Brazópolis, no entanto, está no campo das Ciências, em especial da Astronomia. Aqui fica sediado o Observatório do Pico dos Dias, onde estão instalados os maiores telescópios do território tupiniquim. O precitado pico fica localizado a quase 1900 metros de altitude, e é gerido pelo LNA – Laboratório Nacional de Astrofísica. Para chegar lá, percorre-se uma estrada de terra com 12 km de extensão, que inicia no portal abaixo, no bairro de Bonsucesso.


O caminho para o observatório, por si só, já vale a caminhada. Lá está, por exemplo, a Falésia dos Olhos, um paredão que é ponto de escalada. Para os menos ousados, dá para chegar ao sopé da pedra através de trilhas pela área rural à sua frente ou pela vertente superior.


O lugar também é chamado de Pedra da Cruz por conta do cruzeiro que guarnece o paredão.


Minha intenção era brasileiríssima. Eu sabia que a subida ao Pico dos Dias somente pode ser feita em dias de tempo firme e com agendamento prévio, mas a expectativa de tirar umas boas fotos era tentadora. Achava que, se utilizasse as palavras corretas e me propusesse a vencer os últimos cinco quilômetros a pé, talvez me deixassem chegar até o ponto mais alto, mesmo que nem me aproximasse dos prédios de pesquisa. O problema é que não havia viv’alma para que eu gastasse meu português, e tentar entrar pelo meio do mato era, no meu entender, transgressão demais. Paciência, fica para a próxima.


Só a vista daquela altitude toda, no final das contas, já valeu o ingresso. Daqui, é possível ter uma ideia da extensão do vale que fica aos pés do observatório, e da grande quantidade de bananeiras que o pessoal planta no local.


O que é possível fazer é mirar os laboratórios à distância, com os típicos formatos arredondados de suas cúpulas. Todo mês de setembro, aproveitando o estio, o LNA promove um festival durante uma semana para visitação monitorada, além de alguns dias em que a presença noturna de visitantes é admitida, mediante inscrição e sorteio. Já está na minha agenda.


Quando nos deparamos com tamanha parafernália, é quase inevitável que pensemos naqueles estereótipos dos malucos de jaleco, que parecem viver absortos em seus pensamentos e que não tem outra diversão a não ser procurar minúsculas agulhas nos palheiros celestes. Esse tipo de desconhecimento ajuda a sedimentar a dificuldade que as pessoas têm em compreender o que efetivamente é a Ciência. Já tratei muito do tema por aqui, inclusive combatendo uma certa prepotência que os cientistas têm em se considerar mais possuidores de conhecimento do que outros meios de saber, mas o fato é que, por muitas vezes, essa antipatia nasce justamente a partir do senso comum ou de uma certa “impiedade”. A Ciência lida com problemas muito sérios, coisas que versam sobre vida e morte, e decretar que fosfoetanolamina e pinga-com-banana tem o mesmo efeito sobre as células cancerosas faz com que tentemos, muitas vezes, nos enganar para manter esperanças.

É pena não ter podido subir aos telescópios. Eu já estava escrevendo este texto na cabeça exatamente no momento em que apertava em vão o botão do interfone. Eu sou da área de Filosofia, mas sempre temos em nós um misto de curiosidade e sede de conhecimento que forma uma espécie de espírito científico, que, aliás, é a mola propulsora de metodologias, inclusive. Ainda que pareçam coisas herméticas, restritas a ambientes como este.

O fato é que os métodos científicos sempre foram objetos de difícil consenso. Vou apresentar hoje as teorias do filósofo e literato francês Gaston Bachelard, que discutiu justamente o problema do senso comum diante do conhecimento científico. Mas é preciso puxar o fio da meada. Acompanhem, porque é interessante.

Até o fim da Idade Média, o saber científico estava situado em um patamar inferior aos ditames metafísicos da Religião. Afinal de contas, muita coisa de difícil explicação caía na caixinha fácil dos misteriosos desígnios divinos. A partir de René Descartes e Francis Bacon, no entanto, novas correntes de pensamento mudaram o estatuto da visão que temos sobre a realidade. O primeiro lança a ideia da dúvida metódica, em que nada pode ser assumido como verdadeiro se não passar pelo crivo da evidência, em um processo dirigido pelo próprio raciocínio humano. Já o segundo forma as bases do experimentalismo, de modo a se estabelecer a necessidade de um método que abarque e cerque todas as possibilidades necessárias de serem testadas em um determinado fenômeno. Descartes cria o que chamamos de racionalismo, e Bacon, por sua vez, o empirismo. A partir daí, surge uma longa discussão sobre o primado epistemológico de ambos. Será a razão a principal fonte de conhecimento, ou essa tarefa deve ser atribuída à experiência?

Quem resolve o enigma é Immanuel Kant. Tanto intelecto quanto observação tem seu valor no processo gnosiológico. Do primeiro, temos as estruturas mentais que permitem a absorção do conhecimento; do segundo, obtemos os objetos que formam seu conteúdo. É impossível um viver sem o outro. Desta forma, as filosofias seguintes já tinham uma base bem fixada para desenvolver outros temas. Uma delas, dado o desenvolvimento humano que levou as técnicas e as ciências ao ápice, dava ênfase total ao processo científico como conhecimento válido, de modo que áreas nunca dantes abarcadas pela teia científica passassem a ser incluídas no seu bojo, como o estudo das sociedades e da moral. Era o Positivismo, predominante no século XIX, que, se por um lado tinha a vantagem de seu otimismo com relação aos avanços, por outro reforçou a ênfase no método empírico, o que diminuiu o valor da razão para as Ciências.

O processo empírico das observações tinha como pano de fundo a indução. Tantas vezes um fenômeno ocorre da mesma forma, que supomos que sempre ele se repetirá. Como corolário, a Filosofia da Ciência que brotou do Positivismo adota um princípio de verificação que exclui qualquer valor de verdade de saberes não palpáveis. A coisa funcionava mais ou menos bem até surgirem teorias científicas de altíssima complexidade e abstração. É aí que entra Bachelard.

Nosso caro francês pensava que, estando as coisas dessa maneira, a Teoria da Relatividade de Einstein ou a Física Quântica de Max Planck seriam uma mera filosofia da physis, algo muito semelhante como as elucubrações sobre a arché dos velhos pré-socráticos. Estes cientistas foram criadores de modelos que fugiam da experimentação direta, com altíssimo índice de abstração, e que quebravam fortemente paradigmas anteriormente bastante sólidos. Para se ter um exemplo, as teses einsteinianas modificavam substancialmente as consagradas leis de gravidade de Newton, sem, no entanto, invalidá-las quando pensamos em termos empíricos. De fato, as leis de Newton conseguem corroboração experimental de maneira muito mais simples e intuitiva, mas não conseguem atingir grandes limites, como acontece quando a velocidade da luz é implicada em um cálculo. A física de Einstein resolve estes problemas de forma teórica, sem existirem recursos para desenvolver experimentos com as tecnologias disponíveis. Podemos perceber hoje em dia que suas descobertas vêm sendo progressivamente comprovadas, como é o caso recente das ondas gravitacionais, mas, de fato, para um modelo científico que exija a verificação, não há como considerá-las como tal.

Bachelard combate a vertente positivista e estabelece que a Filosofia da Ciência precisa atuar com um condão histórico, de modo a se atualizar da mesma forma que as próprias Ciências. São inúmeras as vezes que novas descobertas rompem com todo o conhecimento estabelecido até o momento em que ocorrem. Em seu pensamento, a verdade nada mais é do que a retificação de um erro anterior, que, por sua vez, também se tornará um erro que deverá ser corrigido por uma nova verdade, e assim sucessivamente, ad aeternum. A verdade é histórica, assim como a Ciência deve ser e a Filosofia da Ciência também. Isso inclui sua metodologia.

Antecipando-se a Thomas Kuhn, que vislumbrou uma metodologia da crise nas Ciências, Bachelard entende que a Epistemologia deve caminhar dentre rupturas. Sua resistência maior, chamada por ele de obstáculos epistemológicos, vem de uma espécie de continuidade entre o conhecimento científico e o senso comum: queremos que a Ciência nos forneça explicações de maneira tão palpável quanto nossa avó explica a receita de bolinho de chuva (está chovendo hoje). Quais são, portanto, esses obstáculos epistemológicos ao espírito científico?

O primeiro é a própria realidade. Como captamos intuitivamente o universo ao nosso redor, temos tremenda dificuldade em compreender uma explicação que fuja ao alcance dos nossos sentidos. Pensemos nas teorias sobre os átomos, por exemplo. Enquanto acompanhamos a realidade, a explicação de que qualquer material é divisível até o ponto em que isso não seja mais possível é bastante intuitiva. Afinal de contas, o processo de divisão pode chegar a um ponto em que não seja mais perceptível, mas basta dar continuidade na mesma lógica para que tal processo avance mentalmente: um átomo é uma minipartícula absolutamente sólida. Essa é a sensação que nos dá a realidade. Mas a ideia de que o átomo não é sólido, mas formado de subpartículas, algumas concentradas em um núcleo, outras circulando ao seu redor, com a imensa maioria de seu espaço ocupado por vácuo, que possuem diferentes órbitas e níveis, e que mesmo o que poderia ser considerado matéria em seu interior é, hipoteticamente, uma forma de energia, foge completamente à realidade circunstante.

O segundo é o senso comum, traduzido pela noção de que este é uma forma de conhecimento em continuidade com a Ciência, tendo apenas uma diferença de profundidade. Bachelard insiste que não há nenhum tipo de encadeamento entre senso comum e conhecimento científico. O senso comum existe para que vivamos nossa vida, encaremos nossa realidade; a Ciência guiada por ele é imbuída de um monte de penduricalhos que somente lhe atrapalham. Obviamente, esta ideia está relacionada à primeira, de que a realidade nos é dada para ser interpretada. Mas nossas opiniões e preconceitos se imiscuem silenciosamente por todos os aspectos de nossas vidas, de modo até mesmo a turvar nossas pesquisas mais rígidas metodologicamente. O mero empirismo, apesar de jamais poder ser descartado como ferramenta de pesquisa, induz-nos a nos convencer bovinamente e consolidar nosso senso comum, constituindo-se em bela armadilha epistemológica.

A regra de ouro bachelardiana é que o racional deve ter primazia sobre o real. Isso significa que Bachelard é um novo racionalista? Não. Seu objetivo é fixar que o cientista não é um mero receptáculo para dados empíricos, mas um sujeito na relação do conhecimento. A Ciência nunca é definitiva, necessita de constantes correções e é preciso ter consciência de que qualquer nova hipótese é uma tentativa de aproximação, mas que depende da abstração do pesquisador, para que não se crave no imobilismo.

É tentando dar alimento a esse espírito científico que eu subi as montanhas de Brazópolis e lá observei observatórios, não tão perto quanto gostaria, mas não tão longe que se fizesse cessar minha inspiração. Bons ventos a todos.

Recomendação de leitura:

Bachelard não é exatamente um filósofo fácil, mas sua verve contestadora encanta. Vou recomendar seu livro que trata mais diretamente da questão aqui abordada.

BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

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