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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Navegações de cabotagem – O Templo Zu Lai de Cotia: as influências do Budismo na Filosofia Ocidental

Olá!


A natureza propiciou a nós dois períodos do dia bem distintos, um que vai até o sol a pino e outro que segue até escurecer. Já a cultura os chamou de “manhã” e “tarde”, ao menos para nós, descendentes de Camões. Isso nos dá uma clara divisão, cujo ponto de inflexão é o arroz-com-feijão nosso de cada dia, que pode ser utilizada para igualmente dividir nossas tarefas: de manhã, lavo; à tarde, passo. De manhã, escrevo; à tarde, leio. De manhã, bocejo; à tarde, durmo. Assim sucedendo, e estando na municipalidade de Cotia, divido meu dia em dois e vou de manhã ao templo Odsal Ling, do qual já fiz minha narrativa nesta série, e à tarde vou ao templo Zu Lai, após um prato vegetariano para manter o clima de descolamento. São meros quinze minutos de distância, cada qual em uma das bandas da rodovia Raposo Tavares. Vamos até lá.



É o maior santuário budista de toda a América Latina, e é um dos monastérios Fo Guang Shan espalhados pelo mundo, de orientação mahayana. Zu Lai significa, em uma tradução livre, “nem vir, nem ir”. É um tanto estranho, mas isso tem seu significado no desprendimento, um dos principais dogmas budistas – a passagem deve ser de tal modo a deixar o mundo por onde se passou absolutamente intacto.



O templo não é muito velho. Foi fundado em 2003, e nasceu não só para ser um lugar de culto, mas também um centro de educação doutrinário e casa de benemerência social. De acordo com sua fé, todo o ambiente é composto por estética de temática budista. Desde a sua entrada, com o terreno em desnível, o trajeto rumo às salas principais é feito todo em subida.



Próximo às escadas, temos um morro gramado que é conhecido como Jardim dos Dezoito Arhats. Um arhat é um ser que, assim como um buda ou um bodhisattva, atingiu a iluminação, com a diferença de que esta foi alcançada não por si próprio, mas por intermédio de ensinamentos alheios. Conta-se que o Buda Shakyamuni, fundador do Budismo, próximo ao momento de desencarnar, delegou a dezoito de seus discípulos a tarefa de cuidar dos ensinamentos do dharma, como se fossem apóstolos. Cada um deles é retratado no jardim. Este no centro da foto, por exemplo, é Chudapanthaka, o arhat mendicante que agita seu cajado às portas onde batia.



Passando as escadas, há mais uma sequência de estátuas, desta vez de jovens budas em diferentes situações. Não consegui maiores informações sobre seu significado, mas posso supor que são arhats no começo de suas caminhadas.



Entre estes dois jardins, fica situada a escadaria que conduz ao pórtico principal, símbolo do progresso das encarnações e caminho para a sabedoria, representada esta pelo portal. O estilo arquitetônico é aquele tipicamente chinês, principalmente utilizado nos palácios da dinastia Tang, que ocorreu em um período de grande desenvolvimento tecnológico.



Bem no pé da escada, há uma fonte que as pessoas facilmente confundem com uma fonte dos desejos, como a Fontana de Trevi, em que se jogam moedas para a realização das mais recônditas obsessões. Na verdade, a presença da bodhisattva Kwan Yin explica melhor a sua função. Ela é a versão feminina de Avalokiteshvara, bodhisattva da compaixão. As moedas que lá são atiradas não são destinadas a realizar desejos, mas a simbolizar um ato de caridade e misericórdia.



Para cumprir adequadamente o rito, é preciso arremessar uma moeda de forma a bater no sino da fonte. Desse modo, o dinheiro provavelmente cairá dentro do vaso situado à frente da imagem.



Também do alto das escadas, antes de penetrar no pátio, observamos em ambos os lados um elemento decorativo muito interessante, que são as cascatas artificiais que servem de desaguadouro para suas respectivas fontes. No tempo certo, estas cascatas se enchem de flores de lótus, uma das principais metáforas budistas. O lótus brota a partir de regiões pantanosas, e é símbolo da pureza espiritual que emerge do mundo.



Já no interior da área do santuário propriamente dito, temos um pátio de distribuição por onde é possível ter acesso a todos os compartimentos, incluindo restaurante, lojinha e aos salões rituais, que incluem um cinerário e algumas salas de meditação.



Um diferencial com relação ao Odsal Ling e ao templo Kadampa de Cabreúva é que o Zu Lai ENCHE. Muita gente acorre a este espaço como um ponto turístico, embora não o seja na acepção perfeita da palavra. Detesto tacar borrões nos rostos, mas há pessoas que detestam ser retratadas sem autorização. Afinal de contas, é muito grave ser fotografado em um templo, que coisa pecaminosa! Por conta disso, achei por bem passar o dedo nos visitantes. A exceção é a patroa.



Na escadaria que precede o salão principal, temos mais um exemplo das tradições e da arte de cunho budista. Trata-se da imagem esculpida de Shishi, o leão guardião que visa manter o templo protegido de maus espíritos. Os leões não são típicos da região asiática onde se desenvolveu o budismo, mas é uma prática que demonstra um certo sincretismo com outras regiões do mundo. Originalmente, o papel era exercido por imagens de tigres ou cães.



O templo principal é conhecido como “Sala do Grande Herói”, e é lá existe uma magnífica estátua de jade de Buda Gautama. Não é permitido tirar fotografias no interior do templo, o que obedecemos. Do lado de fora, há um grande incensário onde é possível espetar seu artefato no fundo de areia. O odor é bastante forte (o que eu gosto), e quem é alérgico precisa manter distância.



Bem ao lado, há uma árvore semelhante a uma pitangueira em que as pessoas penduram desejos de paz, saúde e etc. Novamente, muita gente faz confusão e esquece (ou nem sabe) a forma como o Budismo lida com a questão do desejo. Vamos falar um pouco mais para a frente.



O fundador deste templo é o Mestre Hsing Yün, um chinês que migrou para o Taiwan durante a guerra civil, no século XX. Fundou mais de 200 templos pelo mundo inteiro, e sua principal característica foi o ecumenismo com que tratou a difusão de sua fé. Deixou a administração deste local ao encargo da monja Jue Cheng, mais conhecida como Mestra Sinceridade.



Como eu disse anteriormente, há um cinerário no templo Zu Lai. Mas o que é isso? É uma sala onde são depositadas as cinzas dos mortos. É uma prática muito comum entre os budistas. É dedicado ao bodhisattva Kshitigarbha, uma espécie de protetor dos moribundos. Também aqui as fotografias são proibidas sem autorização.



Nos fundos do templo, há um pequeno playground para os petizes mais impacientes. Ele é guarnecido por um painel de azulejos que representa a lenda do pombo e da bodhisattva Kuan Yin. Rapidamente: em um jardim, havia uma estátua de pedras preciosas de Kuan Yin. Um pombo que voejava por lá pousou aos seus pés, e uma das pedras caiu sobre ele. Entendendo ser um sinal, pegou a pedra e levou até a casa de uma família necessitada. Assim que voltou, novamente a cena se repetiu. Isso aconteceu até a estátua ficar totalmente desprovida de preciosidade e o pombo morrer. Parece sem sentido, mas representa o destino de um bodhisattva – a resiliência na execução da tarefa, sem esperar nada em troca.



Para dispor todos esses conhecimentos, o templo possui um museu de arte budista, que contém um bom acervo de peças. Novamente, não sendo permitido tirar fotos de seu interior, limitei-me a fazer o que era possível.



Anexo ao santuário, há um parque onde é possível realizar meditações mais próximo à natureza. Digno de nota é seu lago, com muitas carpas e tartarugas, cercado por bosque de Mata Atlântica nativa e com uma ponte em estilo tipicamente oriental.



Quando observamos diretamente os fundos filosóficos das diferentes religiões, vamos concluir que aquelas de origem oriental têm um fundamento bem mais filosófico do que as abraâmicas. Isso porque estas últimas, que são majoritárias na Europa e nas Américas, baseiam-se no princípio de autoridade, primeiramente de um deus onipotente, e depois dos sacerdotes, a quem cabe uma interpretação que costumeiramente não dá margem a grandes discussões. Com isso, a força das concatenações lógicas se torna muito menos necessária para definir, por exemplo, uma regra de conduta moral. Como a matriz oriental, em especial o Budismo, prescinde de uma figura de autoridade, já é muito mais de rigor que as coisas façam um sentido completo. No modelo judaico-cristão-islâmico, basta a palavra da divindade (ou do pretenso portador do magistério); no Budismo, o que impera é a relação de causas e efeitos. É evidente que tudo isso se dá em linhas gerais, e há princípios causais no Cristianismo, assim como há linhas hierárquicas no Budismo, mas essa estrutura subjacente faz a aproximação com o pensar tipicamente filosófico muito mais confortável, dada a ausência de elementos ad hoc ou manifestações de vontade imperscrutáveis.

É óbvio que o fato de vivermos sob cultura ocidental faz com que a Filosofia aqui praticada seja muito influenciada por uma moral de fundo cristão, e isso é inevitável, mas também é fato que muitos pensadores do lado esquerdo do planisfério foram influenciados pelo pensamento budista, tão bem estruturado para fins de especulações filosóficas que é, e é sobre eles que pretendo discorrer neste texto.

O Budismo é tão milenar quanto a própria Filosofia ocidental, mas só foi conhecido com mais profundidade no nosso lado do globo (eu disse globo) a partir do século XVIII. Por este motivo, é somente neste momento que vamos começar a sentir alguns filósofos se aproximando intencionalmente de seu ideário.

Antes disso, tivemos algumas aproximações sem pontos de contato, como a afinidade do Budismo com o Estoicismo no quesito resiliência à dor, ou com o nominalismo na questão dos universais. As influências mais claras vão aparecer com os voluntaristas, a dispersa corrente que aprendeu a olhar a volição como mais significativa que a própria razão em termos de domínio mental. O começo é com Kierkegaard, o dinamarquês que inaugurou o Existencialismo no começo do século XIX, apesar do desenvolvimento da escola ser mais tardio. Embora seja autodeclaradamente um filósofo cristão, que lidou com a questão do indivíduo diante de Deus, é possível observar como muitos dos traços de seu pensamento estão mais aparentados ao Budismo que ao Cristianismo. Por exemplo, ao concluir que a existência do homem é mais importante do que a sua essência, Kierkegaard coloca a nós o mar de possibilidades que decorre do devir. Nesse sentido, o leque de escolhas torna-se uma usina de angústia. Em um animal não-humano, não há esse problema: ele segue seu instinto e pronto. Já o ser humano, dono da liberdade de escolha, percebe que tudo é igualmente possível. Essa angústia é o que ele chama de puro sentimento do possível, e é a principal marca da nossa existência, um sofrimento que nos pauta para sempre. Quando olhamos para o Budismo, vemos que, em seu âmago, ele diz a mesma coisa: por toda a vida de um indivíduo, ele se moverá por conta do sofrimento. A dor é uma inerência ao ser humano, esteja ele no nível de existência em que estiver, um sofrimento cíclico, inesgotável, caracterizado pelas suas inúmeras repetições, cuja saída se dá pelo nirvana, o alcançar da iluminação. Aqui, Kierkegaard trata da questão da saída do fluxo de angústia pela tomada de consciência da individualidade, ao invés de um amargo carregar de repetições do passado, imposto a alguém que não é reconhecido como único e que também não reconhece a si mesmo como tal.

Em seguida, vamos falar de Schopenhauer, o filósofo mais diretamente influenciado pelo Budismo. Estamos de acordo que a pauta da vida humana se dá no sofrimento, sendo a angústia um deles. Mas qual seria o motor para esse sofrimento? Qual é a causa originária que está por trás de cada ato de dor? Para o Budismo e Schopenhauer, é o desejo. Diferem muito pouco quanto a isso. O Budismo diz o seguinte em suas Quatro Nobres Verdades:
  • Não há como fugir do sofrimento;
  • O sofrimento é causado pelo desejo;
  • Há como se fazer cessar o sofrimento pela cessação do desejo;
  • O caminho para isso é a busca do nirvana pela conduta e prática mental.
Schopenhauer chega a uma conclusão muito semelhante. Ao contrário do que imaginavam os filósofos anteriores, a razão não está na guia do sentimento humano, mas a vontade. Não se trata de um mero desejo orgânico, que pode ser satisfeito com a sua realização, mas de um sentimento visceral, violento, inexorável. O corpo quer viver e para isso deseja, sempre mais e mais. No fundo, é o próprio instinto de sobrevivência que faz isso, suplantando qualquer racionalidade possível. Há vontade em toda a realidade, que suplanta a mera representação que cada um de nós temos do mundo. O mundo é guerra de egos, porque cada um constrói sua própria representação da vontade que tem. Aspiramos por aquilo que não temos, seja material como uma pedra preciosa, seja corpóreo como uma bela fêmea, seja abstrato como um sentimento de glória. Sua extinção só chega pela extinção do próprio eu. E aqui temos mais uma interseção entre Budismo e Schopenhauer – como romper esse laço? Fundamentalmente, através da negação do desejo, cuja ferramenta basilar é a ascese, o exercício mental para reconhecer e afastar-se da ação da vontade.

Outro que se sentiu tocado pela filosofia budista foi Nietzsche, o dono do martelo. Não tanto no sentido de alinhar seu pensamento, como fez Schopenhauer, mas o de fazer análises críticas. Devemos nos lembrar de que, para Nietzsche, o verdadeiro caminho para a evolução da humanidade é atingir o übermensch, o além-do-homem, a superação de todos os valores como consequência da libertação do espírito. A atravancar esse caminho, teríamos uma moral de rebanho cuja principal ferramenta é a Religião. No seu entender essa moral era padronizante, castradora e impedimento de valores verdadeiramente significativos, imposta pelos mais fracos como meio de se fazerem iguais aos melhores. Esse processo de melhoria não é algo contrário à benevolência, mas uma necessidade de evolução da própria humanidade. A principal Religião de rebanho é o Cristianismo*, uma autêntica representante da humanidade decaída. Já o Budismo, por se calcar na realidade, é visto com olhos muito menos críticos. Um dos seus principais pontos é a ausência de um deus senhorial que guiaria o rebanho, que ditaria atitudes corretas e qualificando seu desvio como pecado, conceito este inexistente no Budismo. Nietzsche, como sabemos, admite o sofrimento como inerente à vida, mas, ao contrário do Budismo, entende que o mesmo não deve e nem precisa ser evitado. No entanto, acha essa psicologia do desejo muito mais aceitável que a lógica punitiva do Cristianismo, a ponto de entender que os budistas pertencem à última religião admissível antes do além-do-homem (mesmo que, ainda assim, mantenha muitas críticas ao Budismo como religião em si).

Por fim, falemos de Freud. O Budismo talvez seja a religião que melhor trata a questão da mente, não somente pelas suas práticas meditativas, que compartilha com outras práticas religiosas, mas principalmente pela questão do autoconhecimento, do olhar para dentro de si mesmo. O Budismo preconiza isso pela doutrina de que é difícil chegar a um completo conhecimento de si mesmo, em especial de todo o potencial que a mente tem de captar holisticamente o mundo e o papel de cada um nesse todo. Quando Freud fala das instâncias da consciência, podemos perceber claramente também essa limitação de se autoconhecer. O ego, a parte consciente da psique, é apenas uma pequena porção do todo, e fica ensanduichada entre o id instintivo e o superego repressor. Dessa forma, também a psicanálise reconhece a impossibilidade do pleno autoconhecimento.

Existem inúmeras outras influências do Budismo na Filosofia contemporânea, não só no campo da Ética, mas até mesmo na Filosofia da Linguagem. Para o momento, no entanto, está de bom tamanho, porque eu queria apenas demonstrar como temos cada vez mais elementos orientais na Filosofia, advindos de locais onde ela é mais natural do que em nosso habitual quotidiano. Bons ventos a todos!!! E bom ano novo.

Sugestões de leitura:

Dois livrinhos de autoria do fundador do templo Zu Lai para ajudar na compreensão do Budismo:

YÜN, Hsing. O que é Budismo? Cotia: Templo Zu Lai, 2019.
-------------. A essência do Budismo. Cotia: Templo Zu Lai, 2019.

E o livro de Nietzsche onde ele comenta sobre o Budismo e desce o cacete no Cristianismo com mais força. Os demais autores já estão citados nos textos a que remeto através dos links.

NIETZSCHE, Friedrich. O Anti-Cristo. São Paulo: Escala, 2011.

E, claro, recomendo a visita ao templo Zu Lai. Fica na Rua Fernando Nobre, 1461, em Cotia/SP, bem pertinho da Rodovia Raposo Tavares, lá pelo Km 28.

* Devemos ter em mente que Jesus, para Nietzsche, era um espírito livre. O problema não é Cristo, portanto, mas o Cristianismo – "o Evangelho morreu na cruz", é uma de suas frases mais famosas.

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