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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Navegações de cabotagem – O Templo Odsal Ling de Cotia: há contradição entre o desprendimento do mundo e a apreciação estética?

Olá!


Desde o dia em que visitamos o Templo Kadampa nestas navegações de cabotagem (leiam aqui), a patroa e a patroinha ficaram encantadas com o conceito dos templos budistas, seus detalhes e o esmero nas suas nuances. Eu também gostei bastante, e fui procurar outros parecidos que ficassem nas imediações da gloriosa capital da garoa.

Ora, direis, não és tu aquele que habita o centro desta enorme urbe, e o bairro da Liberdade não é seu circunvizinho, freguesia essa prenhe de orientais e de suas consequentes culturas? Não procuras tu para além do horizonte algo que recebe os ventos de suas ventas? Só que responderei que é verdade, mas que esses eu já conheço, pois não? Já resolvido com meu imaginário interlocutor, descubro que na mui próxima cidade de Cotia existem dois deles, e os elejo para conhecer de uma só feita, em dia de superação da preguiça dominical. Mas vou tratar de um por vez, porque assunto não falta. Pela ordem, vou começar falando sobre o templo Odsal Ling.



Seu nome completo é Chagdud Gonpa Odsal Ling, e representa a vertente tibetana do budismo, o vajrayana, da qual falarei um pouco mais. Segue o estilo típico dos templos existentes na cordilheira do Himalaia, que são bastante famosos no mundo todo por conta de seus líderes, como o Dalai Lama.



Há inúmeros elementos estéticos espalhados por toda parte, cada um com seu significado próprio e que carrega uma dose das características da corrente em questão. Não há nada que esteja lá apenas por enfeite. A presença das bandeiras multicolores, por exemplo, representa os diferentes povos e pessoas convivendo em harmonia.



Pelos jardins da parte baixa, há alguns dos elementos típicos da prática budista. É extremamente comum o uso de incensos nestes templos, não só pelo bom cheiro ou pela sensação inebriante de alguns, mas porque traz, para os budistas, o sentido das boas ações e da moralidade adequada, porque aquele que bem age evola seus bons aromas para o ambiente que o rodeia. Sim, amiguinhos, certos rituais vão muito além do que imaginamos. É a mesma coisa que ocorre com o incenso no Cristianismo. Alguém pode achar que seu uso é para tirar a ziquizira da nave, mas ali existe o sentido da oração que sobe aos céus, como faz a fumaça.



No Budismo vajrayana, nós temos a figura do lama, que é uma espécie de mestre do dharma, a lei cósmica que rege todas as criaturas. Não é apenas um sacerdote, mas um guia espiritual que atingiu um nível elevado de conhecimento tântrico, um dos aspectos sui generis da vertente. O lama fundador do Odsal Ling é Chagdud Tulku Rinpoche. Atualmente, a líder do local é a lama Tsering Everest, uma norte-americana que vive por lá desde 1995. Também vi por aqui a VJ Soninha Francine, que foi vereadora em São Paulo.



Mas o que é esse tantra no qual o Budismo vajrayana se baseia? É um conceito mais antigo que a própria escola, e que concilia corpo, mente e ambiente como instrumentos para a iluminação. Como veremos mais adiante, a tradição à qual nos dirigimos agora visa uma saída mais rápida do ciclo de contínuas reencarnações a que nos submetemos por conta do sofrimento. Parte desse ferramental é composto por símbolos, que estão espalhados por toda parte. No adro do templo, por exemplo, estão pintados no chão os assim chamados "oito símbolos auspiciosos". Segundo a tradição tibetana, esses símbolos foram entregues ao Buda Shakyamuni assim que ele atingiu a iluminação. Eu não tirei nenhuma foto competente dessas pinturas, então junto aqui um ex-libris que possui o mesmo conteúdo. Na ordem, os símbolos são o parassol, peixes dourados, vaso precioso, flor de lótus, concha, nó sem fim, bandeira da vitória e roda de dharma.



Já na parte superior, lindeira ao prédio principal do templo, há uma grande imagem de um Buda deitado, em um tablado ornado pelos mesmos símbolos mencionados anteriormente.



Por várias vezes durante o dia, voluntários vinculados ao espaço fazem rápidas tours para explicar alguma coisa para leigos como eu, o que acaba por ensinar que a representação aqui obtida diz respeito à impermanência. Mesmo um ser já iluminado mantém aspectos humanos, e sua contemplação não pode ser confundida com adoração, já que os budas não são deuses, segundo sua crença.



Ao divisar o templo em si, o número de detalhes estéticos é ainda maior. Por um pedido dos orientadores, não se pode tirar fotografias do interior do templo, o que obedeci. Lá, há uma grande série de objetos rituais, incluindo imagens típicas e gongos, além de fileiras de uma espécie de balcões bem baixos, onde se praticam rituais de joelhos ou em lótus, numa profusão explosiva de cores, mais ou menos como acontece com o próprio pórtico de entrada.



Também do lado de fora alguns painéis contam histórias e ritos, onde podemos presenciar iconografias importantes, como o clássico desenho do caminho óctuplo representado em uma roda da vida, símbolo universal dos ciclos.



A tradição vajrayana tem algumas sutilezas que a diferenciam das demais correntes do budismo, justamente pelo fato de sua maior interação com o ambiente que cerca seus ritos. Por este motivo, há alguns objetos peculiares por aqui, como esta roda de oração.



É um lugar onde se entoam mantras enquanto se anda ao passo da roda, em um movimento circular que simula um caminho infinito, porém com o ruído de um sino que se repete a cada volta, para se lembrar do início e o fim de cada ciclo.



Há duas casas de roda no Odsal Ling. A da frente representa o bem, com desenhos de budas e bodhisattvas em situações de alegria; a outra, sugere o medo e o ódio, com desenhos de demônios e espíritos de trevas, para que se lembre de que nunca se está livre das más influências.



Falando novamente do lado de fora, o Pavilhão Lótus é uma construção mais eclética. Segundo os próprios orientadores, é um grande "guarda-chuva" que permite concentrar um número maior de pessoas, e mais propício para palestras e cursos, com a possibilidade de um contato visual com a natureza que é impossível no templo principal.



A parte de baixo do templo, cuja entrada fica ao lado do Pavilhão Lótus, contém a parte menos espiritual da casa. É onde se localiza um restaurante e uma lojinha, além de um salão mais informal.



A informalidade daqui não significa que ela seja mais malcuidada e de que se desvirtue do propósito geral da casa. Na verdade, há ainda muita coisa interessante, em especial essa imagem de parede inteira, representando uma sucessão de Budas.



Fiquei um bom tempo contemplando os detalhes da obra de arte. De fato, as técnicas orientais são de uma delicadeza ímpar.



Muitos artistas foram influenciados por esta forma de preciosismo e cuidado, especialmente destinada a transmitir paz interior e integração com a natureza. Lembremos que todas as correntes budistas se caracterizam por uma atitude contemplativa, que diferem em boa parte da aceleração ocidental.



As figuras de budas e bodhisattvas são naturalmente frequentes, incluindo uma boa quota de personagens femininas. Na entrada da loja há exposta uma bela amostra de arte oriental que nos mostra uma delas.



A grande pergunta que cabe é a seguinte: a principal chave para a saída da roda do samsara (nascimento, maturação, decrepitude e morte que se dá nos diferentes mundos por todos os seres) é o desprendimento de tudo o que faz com que alguém ainda sofra. Mas eu fico pensando comigo mesmo. Na minha casa, eu tenho quadros e esculturas que eu gosto muito. Também tenho fotografias que me trazem boas recordações e músicas que embevecem minh’alma. São coisas das quais eu não quero me desfazer, e sentiria falta se fosse para uma ilha deserta em busca de paz. Mas são distintivos do apego: são coisas transitórias, perecíveis, imperenes, impermanentes, como reza a própria lógica budista, e que tenho medo que se percam, que se estraguem. De uma forma ou de outra, trazem-me sofrimento ainda que nada disso aconteça, pela simples expectativa de que algo de mau lhes aconteça. Se a própria contemplação de tudo o que é belo pode ancorar uma pessoa ao prazer terreno, por que a elaboração do rito se preocupa tanto com aspectos estéticos? Não lhes parece uma contradição, meus nobres? Para tentar responder, vamos ter que dar uma voltinha, passando pelas vertentes mais significativas do Budismo. Como não sou um especialista na questão, já de cara me ofereço a correções, que podem ser feitas aí embaixo, nos comentários.

Os ensinamentos de Sidarta Gautama, o primeiro sistematizador do Budismo, apontavam para uma solução do conflito ético gerado pelo sofrimento. Se por trás dele estava o desejo incessante, era necessário exercitar o desapego. Seguindo estas linhas gerais, os primeiros seguidores destes ideais buscavam adotar uma atitude mais monástica, em que o afastamento do fluxo mundano, grande gerador de desejos, auxiliaria na tarefa do desprendimento. Essa busca pela quebra da lógica do desejo e alcance da iluminação é uma iniciativa que não passa da pessoa que busca esse objetivo – não se pode atribuir os atos e pensamentos a outrem, a não ser a si mesmo. É até injusto que se faça isso – é uma responsabilidade nossa, intransferível, inalienável. Desta forma, a busca pela iluminação inclui uma intensa prática meditativa e uma vida anacorética rigorosa, sendo que nossa visão estereotipada dos monges budistas vem desta corrente, o theravada. É bem pouco comum no ocidente, sendo mais praticado na Tailândia, na Birmânia (Mianmar) e no Ceilão (Sri Lanka). Seus ritos são bastante simples, baseados essencialmente na recitação de mantras, queima de incenso e leitura dos sutras, em especial o tripitaka, a compilação dos ensinamentos tradicionais budistas.

Na Índia da época do primeiro desenvolvimento do Budismo, no entanto, havia um ambiente bastante complexo, com muita concorrência de diversas etnias, e o Hinduísmo também levou influências no meio do cadinho cultural asiático. Desta forma, o Budismo variou para vertentes mais inclusivas, que considerasse o laicato não só como um meio de prover os monges, mas de também ele ter possibilidades de buscar instrução e, consequentemente, o nirvana (saída do ciclo do samsara). A maneira como isso foi feito se dá através de uma lógica de compaixão universal. A coisa é mais ou menos assim: quando alguém entra no caminho da virtude, adquire experiência essencial para sair da roda do samsara. Ao conseguir se livrar por completo da sombra dos desejos e consequentes sofrimentos, atinge a budeidade, ou seja, ele mesmo se transforma em um buda. No entanto, um dos componentes do caminho da iluminação é justamente o meio de vida correto, no qual se entende ser necessário fazer o bem a todos os seres. Com esse propósito, alguns daqueles que conseguiram reunir os elementos necessários para atingir o nirvana compreendem ser objeto de piedade se manter no ciclo de reencarnações para ajudar a conduzir os outros seres sencientes para a luz. Esses iluminados são os bodhisattvas, que literalmente significa “seres iluminados”. Eles compõem o cerne da corrente mahayana, que está situada especialmente na China, na Coreia e no Japão.

Sendo “agenciadores” do caminho ao nirvana, os bodhisattvas funcionam, em uma comparação bem precária, como os santos do Catolicismo, que, por sua própria história ou elementos ligados ao seu sacrifício, dão exemplos de como atingir o modelo salvífico de sua fé. Por exemplo, São Jorge representa o combate contra o mal; São Francisco, a interação com a totalidade das criaturas; Santa Inês, a pureza de intenções e assim sucessivamente. Sua iconografia se encarrega de fazer representar a cada fiel os valores a serem perseguidos para se chegar à vida eterna, no caso. Os bodhisattvas, cada um deles, fazem práticas de perfeição que são representadas para os seguidores através de suas manifestações artísticas. Avalokiteshvara, por exemplo, é representado com símbolos de compaixão, como o seu próprio nome, “aquele que olha para baixo”, no sentido de alguém que está acima de nós, mas que nos volta seu olhar, e também seus múltiplos braços, em atitude orante. Uma versão feminina é Tara, cujo valor apresentado é a ilusão na distinção entre o masculino e o feminino. Assim, através de elementos visuais estéticos, a história e as doutrinas do Budismo são contadas por seus ícones.

Detratores do uso da iconografia diriam que se trata de idolatria, mas não é sobre esse tipo de papo que trataremos aqui. O que podemos pensar filosoficamente é onde as imagens nos afetam. E podemos dizer que nós, pobres bípedes implumes, temos dois defeitos que a iconografia pode nos ajudar a mitigar. O primeiro se dá na questão do exemplo. Como temos, de certa forma, uma mente conservadora, que tem sua origem no instinto de sobrevivência, tendemos a coletar protótipos que deram certo, para que os sigamos com uma possibilidade menor de fracasso. Sendo assim, um exemplo de vida que já funcionou dá indicativos do que devemos fazer. A outra vem na formulação do modelo. Pela lei do menor esforço, é mais fácil para nós utilizar uma norma pronta do que a elaborarmos por nós mesmos. E com isso temos as duas pontas para laçar o nosso nó. Um exemplo e um paradigma facilitam sobejamente nossa linha de conduta, e é exatamente isso o que diz a disciplina mahayana a respeito dos bodhisattvas: estão aí para conduzir a humanidade e o restante do universo vivo para a santidade, e lança-se mão de objetos estéticos para representá-los. Não se trata de adoração, mas de utilização de elementos didáticos.

Isso tudo o que falei até agora pode ser uma boa hipótese para justificar a utilização de imagens, mas o fato é que a estética budista não se limita a isto. Rituais elaborados, com a utilização de inúmeros objetos litúrgicos, com uma forte carga dramática são práticas comuns, em especial no ramo praticado no Tibete e na Mongólia. Essa tendência se chama vajrayana e é uma variação dentro da prática mahayana. A sua principal proposta consiste em abreviar o número de encarnações necessárias para que um ser atinja a sua iluminação, já que o caminho do nirvana pode ser muito longo.

Os adeptos do vajrayana acreditam que a luz, para ser atingida em tempo mais conciso, não pode ser apenas racionalizada, mas sentida, respirada, vivenciada, experimentada. Isso porque, apesar do caráter racional do Budismo, não temos como nos dissociar da nossa via emotiva, e é preciso que justamente ela seja “domesticada” para a budeidade. É nesse contexto que entra o tantra, com a prática da yoga, dos gestuais e das encenações, em que um praticante assume o papel de um buda. Não se fica limitado a uma meditação à frente de uma imagem que represente um determinado objetivo, procura-se encarnar esse próprio objetivo, e, sendo assim, aproximar-se dele. Isso não se faz só com a mente, como quer a meditação, mas com o corpo e com todo o ambiente que está ao nosso redor. Sem eles, não é possível (ou não é fácil) sentir a budeidade.

Os ambientes destes templos são altamente elaborados justamente por causa desse envolvimento emocional exigido pela prática vajrayana. A arte budista é levada ao seu máximo ponto com elementos oriundos do thangka, a principal escola pictórica utilizada, que preenchem tapetes, paredes e bandeiras. Além disso, todas essas obras de arte vieram de uma tradição com objetivo mais político, que é a de educar os peregrinos e mercadores que passavam pelos mosteiros. Muitos deles eram analfabetos, e a utilização das imagens era plenamente didática. Mantendo a comparação com o Cristianismo, este expediente também foi muito utilizado em igrejas medievais, com vitrais e pinturas contando histórias do evangelho ou dos santos padroeiros para soldados e lavradores incultos (e mesmo para nobres).

Tudo isso é muito belo, como pudemos ver no Templo Odsal Ling, e, de certa forma, aponta para o problema inicial, mas a própria liturgia se encarrega de demonstrar o contrário. Um dos rituais mais interessantes é a construção de mandalas de areia, que podem demorar horas. Como na arte thangka, são pintadas na mandala budas e bodhisattvas com fins meditacionais, e são mantidas pelo tempo de duração de uma determinada cerimônia, para depois serem completamente desfeitas. Apesar da beleza, as mandalas são destruídas exatamente para representar a transitoriedade de toda a natureza que nos cerca, o que desmistifica a ideia de que todo o aparato estético possa se destinar a aumentar nosso enclausuramento ao mundo.

Pode até não se destinar, mas acaba acontecendo? Pode ser que sim. Por este motivo que não dá para visitar um templo budista sem ter um mínimo de conhecimento dos seus significados. Um templo desses não é bonito como um bibelô na estante, mas como a preconização de um mundo melhor. A beleza, no caso, deve ser subjacente à sua filosofia religiosa, e não à sua mera objetivação artística.

Em resumo, foi muito bom vir aqui. Em breve eu volto à temática budista, porque no mesmo dia fui com a galera para outro templo, a uns quinze minutos de distância. Até lá e bons ventos a todos!!!

Recomendações:

Obviamente, começamos pelo próprio templo:

Templo Odsal Ling – Rua dos Agrimensores, 1461 – Cotia/SP, a 30 Km da Capital.

Estando por lá, adquiri um livro composto pelo próprio lama fundador, que é bastante esclarecedor sobre as sutilezas da tradição vajrayana e do próprio Budismo em si:

RINPOCHE, Chagdud Tulku. Os portões da prática budista. Porto Alegre: Rigdzin, 2000.

Por fim, já que mencionei o bodhisattva Avalokiteshvara, tenho um livro em forma de tabuinhas contendo alguns sutras (ensinamento em forma de oração) que a tradição lhe imputa a autoria. Para ler em momentos de calmaria.

YÜN, Hsing (Venerável Mestre). Sutra Coração da Prajña Paramita. Sutra Lótus – Capítulo Habilidade Universal do Bodhisattva Avalokiteshvara. Cotia: Zu Lai, s. d.

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