Olá!
#ContinueUsandoMascara
Como sempre venho dizendo nesses últimos meses, vim me
defendendo como podia de sair de casa nestes tenebrosos tempos de pandemia. O
trabalho não foi problema: o home office
ficou consagrado e comprovado como meio bem eficaz de manter a vida sendo
tocada (se bem medido e bem pesado, ficou até melhor). As compras foram
resolvidas na base do aplicativo e as idas ao banco ficaram desnecessárias
neste mundo virtual. Cancelei uma viagem que faria a Cascavel para visitar meu
menino mais velho e deixei meu cabelo crescer à vontade, sendo que neste
momento ostento um rabo de cavalo que oscila entre o extravagante e o ridículo.
O problema é que há idosos na família, notadamente o sogro e a sogra. E idosos
volta e meia ficam doentes. Há um ponto na dobradiça dos custos e benefícios em
que é preciso assumir riscos, e isso acabou acontecendo. Hospital cheio, horas
e horas de fila e gente pouco consciente com os cuidados necessários fizeram eu
me reduzir à minha insignificância, ao desabrigo e à vulnerabilidade, a ponto
de quase retomar minha fé para poder invocar alguns santos protetores. Depois
de voltar para casa, tomei banhos com tal intensidade que parecia querer tirar
uma ziquizira de cima do cadáver, complementado por esfregaços alcoólicos e
alguns dias de somatizações,
desconfiando de qualquer dorzinha de cabeça. Passado esse tempo de apreensão,
não manifestei nada do coronavírus
e refleti que não seria tão imprudente ir até Atibaia novamente, já que a
prefeitura local estava desesperada por fazer um concurso público na área do
saneamento que a filha mais nova precisava prestar, como tantas vezes já
especifiquei neste espaço.
O caso é que foi um daqueles concursos feitos em duas
etapas, uma pela manhã e outra à tarde, o que me colocou meio que contra a
parede. Ficar enfiado dentro do carro não é boa opção, e sair desvairadamente
por aí é uma maneira de renegar todo o esforço feito durante nove meses. Perscrutei
a cidade em busca de afazeres com um problema adicional: muitos lugares
fechados. Na beira da Rodovia Dom Pedro, entretanto, encontrei um lugar muito
bonito, bastante semelhante a um parque e que me permitia ficar em agradável e
anacorético isolamento. É o Santuário de Schöenstatt.
Essa capelinha, ainda lá em Schöenstatt, era dedicada a São Miguel Arcanjo, uma espécie de protetor da igreja, e que ganhou uma imagem logo no caminho de entrada. Aqui, as abelhas jataí formaram uma pequena colmeia bem aos seus pés. Como não têm ferrão, foram deixadas lá impunemente.
Todos os santuários espalhados pelo mundo têm exatamente essa mesma capela, cujas características principais são o pequeno campanário puxado a corda e o frontão recoberto de trepadeiras. A própria silhueta da igrejinha é um dos símbolos mais consagrados desta congregação.
Apesar de sua simplicidade exterior, possui um altar-mor bastante rebuscado, em madeira trabalhada, onde é possível ler, em latim, uma das principais divisas do movimento. Já devidamente traduzido, as palavras ao redor da santa significam “os servos de Maria nunca perecerão”.
A devoção pela imagem da Santa fez com que os diversos santuários de Schöenstatt espalhados por Pindorama se tornassem centros de peregrinação, que, nos dias mais festivos, costumam encher muito. A pequena capelinha não dá conta de tanta gente e, para esses momentos, há uma quadra que tem uma capacidade bem maior.
Além disso, existe um serviço de apoio aos peregrinos, chamado de Casa São José, que vende pequenos artigos, alimentos e lembranças, e pelo que entendi, agencia repouso para pessoal que vem de longe.
Entre os alimentos, há pães, bolachas e doces feitos no próprio convento pelas irmãs da caridade.
Uma nova tradição que vai se formando é o Mattertone, cuja embalagem se transforma em um presépio quando desmontado. Eu achei que havia alguma coisa de diferente no produto em si, mas se trata de um panetone comum, daqueles de frutas cristalizadas e passas.
Além dos campos e arvoredo, há vários espaços de devoção espalhados pelo parque. Um dos mais buscados é o velário em forma de capela. Dá para comprar suas velas ali mesmo.
Outra peça artística é uma imagem estilizada de Nossa Senhora das Dores, a Maria que chora aos pés da cruz pelo seu filho recém-morto.
Existe uma cerimônia central para o Catolicismo que é chamada de Vigília Pascal, uma espécie de memorial de espera pela ressurreição. Nesta celebração, existe um rito denominado Benção do Fogo, de onde é extraída a chama que acende o Círio Pascal, uma grande vela que se renova anualmente, e que representa a luz do Cristo renascido. É um ritual riquíssimo, pleno de simbologias que explicam muito da lógica litúrgica cristã. Essa pira em forma de globo certamente é utilizada para essa ocasião. Não sei dizer se tem algum outro uso, mas é uma peça que nunca vi semelhante.
O padre Josef reaparece na forma de memorial, com um incensário igual à pira mencionada anteriormente.
Por fim, como já estávamos próximos ao Natal, havia um singelo presépio montado entre a capela e a Casa São José, uma criação artística atribuída a São Francisco de Assis.
As irmãs bolaram um esquema diferente para que o pessoal pudesse interagir com a decoração do presépio. A cada compra ou contribuição feita no bazar, o adquirente ganhava uma estrela onde podia ser escrita uma mensagem, um pedido, um agradecimento ou coisa que o valha, para depois amarrá-la à cerca de bambu ao redor da cena. Para não ficar de fora, tacamos uma frase que não é propriamente cristã, mas que também não é de todo profana: "gracias a la vida, que me ha dado tanto".
A pergunta sobre a natureza de Deus perfez toda a Idade Média,
que muitas vezes é chamada de Idade das Trevas por conta da cessação dos
avanços científicos e da monotemática filosófica, colocando a divindade no
centro de suas especulações. Se é verdade que o teocentrismo desestimulou o
olhar ao cosmos como ele é em si mesmo e de fato refreou o humanismo e o
interesse científico, é preciso ter em mente duas coisas que contradizem essa
informação: em primeiro lugar, a visão especulativa não era meramente
teológica, com
muitos outros temas sendo tratados no período, ainda que ligados
secundária ou tributariamente à questão Deus. E depois, mesmo quando o
assunto era ainda de domínio da Teologia,
a engenhosidade que certos pensadores o trataram é digna de causar admiração
mesmo em apóstatas, como eu.
Um desses foi o alemão radicado na Itália Nicolau de Cusa,
que foi um dos intelectuais que apagaram a luz do pensamento medieval na virada
para o renascimento. Certo: ele ainda trouxe a temática teocêntrica, o que não
o retira do medievo. Mas é certo também que ele começou a juntar alguns fragmentos
que viriam desembocar nas visões de Roger
Bacon e de Baruch
de Espinoza, como veremos.
Tente imaginar o infinito. Pense na vastidão do espaço
sideral, visto com o mais poderoso telescópio espacial jamais criado. Aquilo
que de mais longínquo for enxergado, mesmo que esteja a bilhões de anos-luz,
será redutível a nada no âmbito do infinito. Ou, como propôs
Nicolau de Cusa, imagine a si mesmo no interior de um círculo de dimensões
infinitas. Em uma área finita pequena, será possível perceber uma curvatura.
Entretanto, a cada vez que se aumentar o diâmetro deste círculo, menor será a
percepção desta curvatura, de modo em que haverá um momento em que
não será possível detectá-la a olho nu, sendo necessário o uso de instrumentos
para fazê-lo, até o ponto em que mesmo o mais fino deles não será capaz
de diferenciá-lo de uma reta. Em um círculo infinito, é como reta que os seus
limites se apresentarão, seja qual for a posição da qual se observe. Esse
exercício mental pode ser aplicado a qualquer figura geométrica: quadrados,
triângulos, pentágonos e così via. E
dessa forma torna-se a nós impossível compreender o infinito. O fato é: não
temos equipamento cognitivo capaz de entender dimensões infinitas, pelo simples
fato de que nossa mente tem uma espécie de estrutura lógica que opera com
comparações que, no limite, vêm do mundo finito em que vivemos. Basta que se
raciocine no seguinte: quando dizemos que uma pessoa é baixinha, pensamos que
ela é pequena em relação às outras pessoas. Quando dizemos que um dia é seco,
pensamos que ele é seco em relação aos outros dias. Quando dizemos que uma
cidade é longe, pensamos que ela é distante com relação a outras cidades. Qual
é a régua com a qual mensuramos o infinito? Com o que podemos medir algo cujo
tamanho escapa da nossa capacidade de comparação? Podemos usar a matemática,
mas o mesmo fenômeno ocorre: a matemática prevê o infinito, mas não dá
ferramentas para que possamos materializá-lo.
Nicolau de Cusa explica que a natureza de Deus é exatamente
a mesma do infinito, e que, portanto, é incabível buscá-lo por critérios cognitivos
humanos. Deus coincide com o infinito, tanto na ausência de limites, quando na
incapacidade humana de ser compreendido. A assunção dessa incapacidade é o que
ele vai chamar de douta ignorância, titulo
de sua magnum opus, da qual falaremos
daqui a pouco. De Cusa adota uma teologia negativa, ou seja, não se descreve
Deus pelo que ele é, mas pelo que ele não é. É o que existe ao alcance do
intelecto humano.
Nicolau era um neoplatônico, ou seja, regressava em parte ao
pensamento
agostiniano, em contraposição ao aristotelismo adotado por São
Tomás de Aquino. Dois eram os pontos dessa retomada de Platão: existe um
modelo de perfeição do qual todas as coisas existentes se espelham e que todas
essas cópias nunca alcançam a perfeição do próprio modelo. Nicolau pensava que
esse modelo de perfeição advinha do próprio Deus, sendo que todo tipo de modelo
era estabelecido nele próprio. Assim, absolutamente tudo do universo partia de
Deus em si mesmo, e não de um mundo das ideias apartado do universo sensível,
como diria Platão. Entretanto, aqui retomamos o problema do infinito. Está
estabelecido que Deus tem a mesma natureza do infinito, e o conhecimento humano
só consegue racionalizar coisas finitas. Temos aí um desvão na possibilidade de
conhecer, sendo que Nicolau especula algo que somente a moderna ciência viria a
sistematizar: o conhecimento nunca é absoluto, e se dá por aproximação. A cada
vez que descobrimos e aprendemos algo novo, não significa que temos a
totalidade do conhecimento possível, mas que nos tornamos mais próximos daquilo
que consiste a essência daquilo que buscamos. Estamos mais próximos da
curvatura do círculo infinito, embora nunca cheguemos a ele, porque não temos
como apreender a perfeição. Isso nos traz outra consequência: Deus não é
cognoscível através da razão, como adorariam aqueles que querem provar a sua
existência, mas também não é através da emoção, o que não faria sentido. Deus é
percebido através do próprio cosmos, imperfeito como ele é em suas partes, porque
em cada parte do cosmos Deus está plasmado. É como dizer que em cada homem está
contida a humanidade inteira, porque, por menor que ele seja, carrega consigo a
essência do ser humano. É assim com o universo: em cada pequena parte, há a
essência de Deus.
E é nisso que consiste a douta ignorância. Não se trata de
uma posição passiva, que reconhece sua impossibilidade de conhecer e resigna-se
à suspensão dos juízos, como fazem os céticos.
É em parte como o reconhecimento socrático, que não se imiscui da busca pelo
saber, mas que sabe de suas próprias limitações. O intelecto tem sede de saber
por sua própria natureza, assim como o pulmão tem necessidade de ar e o coração
existe pelo seu sangue. Assim, mesmo sabendo que jamais poderá alcançar Deus,
ao se buscar mais conhecimento por qualquer coisa no mundo, é do próprio Deus
que o douto ignorante se aproxima.
Não é legal tudo isso? Mesmo que não se concorde com
qualquer uma dessas assertivas, há que se reconhecer que são ideias geniais e
muito bem construídas. Isso é a marca principal da Filosofia. Bons ventos a
todos e cuidem-se com carinho.
Recomendações:
De Cusa não é leitura fácil, mas não me eximirei de indicar
sua obra principal.
CUSA, Nicolau de. A
douta ignorância. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
O Santuário de Schöenstatt é muito bonito e plenamente
visitável, mesmo nestes tempos pandêmicos, com um pessoal de atendimento muito
atencioso. Segue o endereço do templo.
Santuário
de Schöenstatt – Tabor da Permanente Presença do Pai
Rodovia Dom Pedro I, Km 78
Jardim Brogotá
Atibaia/SP
Aproximadamente
70 Km a partir do centro de São Paulo
* Os palotinos são padres que seguem a ordem de São Vicente
Palotti, oficialmente denominada de União do Apostolado Católico.
** CELAM é o Conselho Episcopal Latino-Americano, cujos
maiores eventos são as Conferências Gerais, realizadas de tempos em tempos,
onde são produzidos os documentos que guiarão a conduta dos bispos de
toda a região. A conferência de Medellin teve um forte conteúdo social,
aproximando o episcopado de um viés político que desagradava muito os setores
mais conservadores. Foi de uma destas conferências, por exemplo, que houve a
sistematização das Comunidades Eclesiais de Base, das quais já dei um bom
exemplo de funcionamento neste
texto.
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