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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Navegações de cabotagem – o Santuário de Schöenstatt em Atibaia e o conhecimento diante do infinito

Olá!

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Como sempre venho dizendo nesses últimos meses, vim me defendendo como podia de sair de casa nestes tenebrosos tempos de pandemia. O trabalho não foi problema: o home office ficou consagrado e comprovado como meio bem eficaz de manter a vida sendo tocada (se bem medido e bem pesado, ficou até melhor). As compras foram resolvidas na base do aplicativo e as idas ao banco ficaram desnecessárias neste mundo virtual. Cancelei uma viagem que faria a Cascavel para visitar meu menino mais velho e deixei meu cabelo crescer à vontade, sendo que neste momento ostento um rabo de cavalo que oscila entre o extravagante e o ridículo. O problema é que há idosos na família, notadamente o sogro e a sogra. E idosos volta e meia ficam doentes. Há um ponto na dobradiça dos custos e benefícios em que é preciso assumir riscos, e isso acabou acontecendo. Hospital cheio, horas e horas de fila e gente pouco consciente com os cuidados necessários fizeram eu me reduzir à minha insignificância, ao desabrigo e à vulnerabilidade, a ponto de quase retomar minha fé para poder invocar alguns santos protetores. Depois de voltar para casa, tomei banhos com tal intensidade que parecia querer tirar uma ziquizira de cima do cadáver, complementado por esfregaços alcoólicos e alguns dias de somatizações, desconfiando de qualquer dorzinha de cabeça. Passado esse tempo de apreensão, não manifestei nada do coronavírus e refleti que não seria tão imprudente ir até Atibaia novamente, já que a prefeitura local estava desesperada por fazer um concurso público na área do saneamento que a filha mais nova precisava prestar, como tantas vezes já especifiquei neste espaço.

O caso é que foi um daqueles concursos feitos em duas etapas, uma pela manhã e outra à tarde, o que me colocou meio que contra a parede. Ficar enfiado dentro do carro não é boa opção, e sair desvairadamente por aí é uma maneira de renegar todo o esforço feito durante nove meses. Perscrutei a cidade em busca de afazeres com um problema adicional: muitos lugares fechados. Na beira da Rodovia Dom Pedro, entretanto, encontrei um lugar muito bonito, bastante semelhante a um parque e que me permitia ficar em agradável e anacorético isolamento. É o Santuário de Schöenstatt.


Vamos dar as explicações necessárias. Este espaço é mantido pelo Movimento Apostólico de Schöenstatt, da Igreja Católica, que se originou na Alemanha, por obra do padre Josef Kentenich,  em um vilarejo de mesmo nome, da cidade de Valendar. Ele se juntou a alguns seminaristas da ordem Palotina* no ano de 1914, início da Primeira Guerra Mundial, para formar uma aliança de fundo fortemente mariano.


Quem entra no santuário logo percebe o quanto ele é dedicado a Santa Maria, tida como a mãe de Jesus Cristo. Aqui, ela é chamada de Mãe Três Vezes Admirável, e o símbolo colocado à sua entrada é o mesmo que foi adotado por esta comunidade. Mesmo quando ainda era católico, eu já achava o culto a Maria meio exagerado, quase como se fosse ela mesma uma divindade. Mas o fato é que os papas e bispos têm lá suas explicações e não vou discutir o tema aqui.


Aqui no Brasil, o culto e seu movimento brotaram com mais força em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Um devoto de nome João Luiz Pozzobon adquiriu o hábito de peregrinar com uma imagem que simbolizava uma Maria junta de seu filho Jesus em uma moldura em forma de igreja. Esta imagem trafegou por um bocado de lugares e ajudou a sedimentar a fama do movimento.


Como eu já disse, o santuário parece um parque, cheio de referências cristãs, obviamente, com casa para retiros, via sacra, mesas de piquenique, sanitários, estacionamento, barracas de alimentação e muito espaço ajardinado. É administrado pelo Instituto Secular das Irmãs de Maria de Schöenstatt, que possui um convento compartilhando o local.


Apesar do amplo espaço para caminhar e contemplar, o centro do santuário é uma capelinha muito pequena, que reproduz o mesmo edifício que foi utilizado inicialmente na Alemanha. Quando o padre Josef fundou o movimento, ele obteve licença para usar essa capela que se encontrava abandonada, sendo usada como uma espécie de depósito.



Essa capelinha, ainda lá em Schöenstatt, era dedicada a São Miguel Arcanjo, uma espécie de protetor da igreja, e que ganhou uma imagem logo no caminho de entrada. Aqui, as abelhas jataí formaram uma pequena colmeia bem aos seus pés. Como não têm ferrão, foram deixadas lá impunemente.



Todos os santuários espalhados pelo mundo têm exatamente essa mesma capela, cujas características principais são o pequeno campanário puxado a corda e o frontão recoberto de trepadeiras. A própria silhueta da igrejinha é um dos símbolos mais consagrados desta congregação.



Apesar de sua simplicidade exterior, possui um altar-mor bastante rebuscado, em madeira trabalhada, onde é possível ler, em latim, uma das principais divisas do movimento. Já devidamente traduzido, as palavras ao redor da santa significam “os servos de Maria nunca perecerão”.



A devoção pela imagem da Santa fez com que os diversos santuários de Schöenstatt espalhados por Pindorama se tornassem centros de peregrinação, que, nos dias mais festivos, costumam encher muito. A pequena capelinha não dá conta de tanta gente e, para esses momentos,  há uma quadra que tem uma capacidade bem maior.



Além disso, existe um serviço de apoio aos peregrinos, chamado de Casa São José,  que vende pequenos artigos, alimentos e lembranças, e pelo que entendi, agencia repouso para pessoal que vem de longe.



Entre os alimentos, há pães,  bolachas e doces feitos no próprio convento pelas irmãs da caridade.



Uma nova tradição que vai se formando é o Mattertone, cuja embalagem se transforma em um presépio quando desmontado. Eu achei que havia alguma coisa de diferente no produto em si, mas se trata de um panetone comum, daqueles de frutas cristalizadas e passas.



Além dos campos e arvoredo, há vários espaços de devoção espalhados pelo parque. Um dos mais buscados é o velário em forma de capela. Dá para comprar suas velas ali mesmo.



Outra peça artística é uma imagem estilizada de Nossa Senhora das Dores, a Maria que chora aos pés da cruz pelo seu filho recém-morto.



Existe uma cerimônia central para o Catolicismo que é chamada de Vigília Pascal, uma espécie de memorial de espera pela ressurreição. Nesta celebração,  existe um rito denominado Benção do Fogo,  de onde é extraída a chama que acende o Círio Pascal, uma grande vela que se renova anualmente, e que representa a luz do Cristo renascido. É um ritual riquíssimo, pleno de simbologias que explicam muito da lógica litúrgica cristã. Essa pira em forma de globo certamente é utilizada para essa ocasião.  Não sei dizer se tem algum outro uso, mas é uma peça que nunca vi semelhante. 



O padre Josef reaparece na forma de memorial, com um incensário igual à pira mencionada anteriormente.



Por fim, como já estávamos próximos ao Natal, havia um singelo presépio montado entre a capela e a Casa São José, uma criação artística atribuída a São Francisco de Assis.



As irmãs bolaram um esquema diferente para que o pessoal pudesse interagir com a decoração do presépio. A cada compra ou contribuição feita no bazar, o adquirente ganhava uma estrela onde podia ser escrita uma mensagem, um pedido, um agradecimento ou coisa que o valha, para depois amarrá-la à cerca de bambu ao redor da cena. Para não ficar de fora, tacamos uma frase que não é propriamente cristã, mas que também não é de todo profana: "gracias a la vida, que me ha dado tanto".


É o começo de uma música de Violeta Parra, que ficou eternizada na voz de Mercedes Sosa, e que serve de fato de agradecimento por tudo o que eu tenho andado e visto de belo, inclusive este santuário. Os mais ortodoxos talvez fiquem um pouco irritados pelo uso de um versinho que ficou aderido aos movimentos de esquerda da América Latina, mas com certeza os padres da Celam** de Medellin não achariam ruim nem um pouco. Afinal de contas, pode parecer blasfemo agradecer à vida ao invés de agradecer a Deus, mas de que forma podemos dissociar um do outro? Não existirá algum ponto onde ambos se confundem, se mesclam, se imiscuem?

A pergunta sobre a natureza de Deus perfez toda a Idade Média, que muitas vezes é  chamada de Idade das Trevas por conta da cessação dos avanços científicos e da monotemática filosófica, colocando a divindade no centro de suas especulações. Se é verdade que o teocentrismo desestimulou o olhar ao cosmos como ele é em si mesmo e de fato refreou o humanismo e o interesse científico, é preciso ter em mente duas coisas que contradizem essa informação: em primeiro lugar, a visão especulativa não era meramente teológica,  com muitos outros temas sendo tratados no período,  ainda que ligados secundária  ou tributariamente à questão Deus. E depois, mesmo quando o assunto era ainda de domínio da Teologia, a engenhosidade que certos pensadores o trataram é digna de causar admiração mesmo em apóstatas,  como eu.

Um desses foi o alemão radicado na Itália Nicolau de Cusa, que foi um dos intelectuais que apagaram a luz do pensamento medieval na virada para o renascimento. Certo: ele ainda trouxe a temática teocêntrica, o que não o retira do medievo. Mas é certo também que ele começou a juntar alguns fragmentos que viriam desembocar nas visões de Roger Bacon e de Baruch de Espinoza, como veremos.

Tente imaginar o infinito. Pense na vastidão do espaço sideral, visto com o mais poderoso telescópio espacial jamais criado. Aquilo que de mais longínquo for enxergado, mesmo que esteja a bilhões de anos-luz, será  redutível a nada no âmbito do infinito. Ou, como propôs  Nicolau de Cusa, imagine a si mesmo no interior de um círculo de dimensões infinitas. Em uma área finita pequena, será possível perceber uma curvatura. Entretanto, a cada vez que se aumentar o diâmetro deste círculo, menor será a percepção desta curvatura, de modo em que haverá  um momento  em que não será possível detectá-la a olho nu, sendo necessário o uso de instrumentos para fazê-lo, até  o ponto em que mesmo o mais fino deles não será capaz de diferenciá-lo de uma reta. Em um círculo infinito, é como reta que os seus limites se apresentarão, seja qual for a posição da qual se observe. Esse exercício mental pode ser aplicado a qualquer figura geométrica: quadrados, triângulos, pentágonos e così via. E dessa forma torna-se a nós impossível compreender o infinito. O fato é: não temos equipamento cognitivo capaz de entender dimensões infinitas, pelo simples fato de que nossa mente tem uma espécie de estrutura lógica que opera com comparações que, no limite, vêm do mundo finito em que vivemos. Basta que se raciocine no seguinte: quando dizemos que uma pessoa é baixinha, pensamos que ela é pequena em relação às outras pessoas. Quando dizemos que um dia é seco, pensamos que ele é seco em relação aos outros dias. Quando dizemos que uma cidade é longe, pensamos que ela é distante com relação a outras cidades. Qual é a régua com a qual mensuramos o infinito? Com o que podemos medir algo cujo tamanho escapa da nossa capacidade de comparação? Podemos usar a matemática, mas o mesmo fenômeno ocorre: a matemática prevê o infinito, mas não dá ferramentas para que possamos materializá-lo.

Nicolau de Cusa explica que a natureza de Deus é exatamente a mesma do infinito, e que, portanto, é incabível buscá-lo por critérios cognitivos humanos. Deus coincide com o infinito, tanto na ausência de limites, quando na incapacidade humana de ser compreendido. A assunção dessa incapacidade é o que ele vai chamar de douta ignorância, titulo de sua magnum opus, da qual falaremos daqui a pouco. De Cusa adota uma teologia negativa, ou seja, não se descreve Deus pelo que ele é, mas pelo que ele não é. É o que existe ao alcance do intelecto humano.

Nicolau era um neoplatônico, ou seja, regressava em parte ao pensamento agostiniano, em contraposição ao aristotelismo adotado por São Tomás de Aquino. Dois eram os pontos dessa retomada de Platão: existe um modelo de perfeição do qual todas as coisas existentes se espelham e que todas essas cópias nunca alcançam a perfeição do próprio modelo. Nicolau pensava que esse modelo de perfeição advinha do próprio Deus, sendo que todo tipo de modelo era estabelecido nele próprio. Assim, absolutamente tudo do universo partia de Deus em si mesmo, e não de um mundo das ideias apartado do universo sensível, como diria Platão. Entretanto, aqui retomamos o problema do infinito. Está estabelecido que Deus tem a mesma natureza do infinito, e o conhecimento humano só consegue racionalizar coisas finitas. Temos aí um desvão na possibilidade de conhecer, sendo que Nicolau especula algo que somente a moderna ciência viria a sistematizar: o conhecimento nunca é absoluto, e se dá por aproximação. A cada vez que descobrimos e aprendemos algo novo, não significa que temos a totalidade do conhecimento possível, mas que nos tornamos mais próximos daquilo que consiste a essência daquilo que buscamos. Estamos mais próximos da curvatura do círculo infinito, embora nunca cheguemos a ele, porque não temos como apreender a perfeição. Isso nos traz outra consequência: Deus não é cognoscível através da razão, como adorariam aqueles que querem provar a sua existência, mas também não é através da emoção, o que não faria sentido. Deus é percebido através do próprio cosmos, imperfeito como ele é em suas partes, porque em cada parte do cosmos Deus está plasmado. É como dizer que em cada homem está contida a humanidade inteira, porque, por menor que ele seja, carrega consigo a essência do ser humano. É assim com o universo: em cada pequena parte, há a essência de Deus.

E é nisso que consiste a douta ignorância. Não se trata de uma posição passiva, que reconhece sua impossibilidade de conhecer e resigna-se à suspensão dos juízos, como fazem os céticos. É em parte como o reconhecimento socrático, que não se imiscui da busca pelo saber, mas que sabe de suas próprias limitações. O intelecto tem sede de saber por sua própria natureza, assim como o pulmão tem necessidade de ar e o coração existe pelo seu sangue. Assim, mesmo sabendo que jamais poderá alcançar Deus, ao se buscar mais conhecimento por qualquer coisa no mundo, é do próprio Deus que o douto ignorante se aproxima.

Não é legal tudo isso? Mesmo que não se concorde com qualquer uma dessas assertivas, há que se reconhecer que são ideias geniais e muito bem construídas. Isso é a marca principal da Filosofia. Bons ventos a todos e cuidem-se com carinho.

Recomendações:

De Cusa não é leitura fácil, mas não me eximirei de indicar sua obra principal.

CUSA, Nicolau de. A douta ignorância. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.

O Santuário de Schöenstatt é muito bonito e plenamente visitável, mesmo nestes tempos pandêmicos, com um pessoal de atendimento muito atencioso. Segue o endereço do templo.

Santuário de Schöenstatt – Tabor da Permanente Presença do Pai
Rodovia Dom Pedro I, Km 78
Jardim Brogotá
Atibaia/SP

Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo

* Os palotinos são padres que seguem a ordem de São Vicente Palotti, oficialmente denominada de União do Apostolado Católico.

** CELAM é o Conselho Episcopal Latino-Americano, cujos maiores eventos são as Conferências Gerais, realizadas de tempos em tempos, onde são  produzidos os documentos que guiarão a conduta dos bispos de toda a região. A conferência de Medellin teve um forte conteúdo social, aproximando o episcopado de um viés político que desagradava muito os setores mais conservadores. Foi de uma destas conferências, por exemplo, que houve a sistematização das Comunidades Eclesiais de Base, das quais já dei um bom exemplo de funcionamento neste texto.

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