Olá!
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Com maior ou menor intensidade, eu convivo com a área de
informática desde o começo da década de 1980, quando ingressei no curso de
processamento de dados do falecido Colégio Anchieta, como contei neste
post. Foi também mais ou menos por essa época que juntei uns cobres pra
comprar meu primeiro computador, um TK85 da Microdigital. A intenção era obter
apoio nos estudos (juro), mas a maquininha servia mais para brincar do que para
aprender. A área de telemática* já existia, internet inclusa, mas era coisa
para os meios acadêmicos. O máximo de coleta de dados remotos que eu conseguia
nessa época se dava no videotexto da biblioteca Mário de Andrade, o que já dava
uma sensação incrível: ao invés de se vasculhar os fichários e as prateleiras
de livros, era possível pesquisar temas diversos para serem lidos na telinha
preta de letras verdes do computador, sem a necessidade de sequer se levantar a
bunda da cadeira. Tinha fila? Tinha fila, e nem sempre compensava no final, mas
valeu muito como iniciação.
Nesses quase quarenta anos de vivência nessa esfera, já vi
de tudo, coisas sensacionais mesmo, como os produtos da área de robótica, do
reconhecimento facial e biométrico, da computação gráfica, das redes de alta
velocidade e dos volumes inacreditáveis de informação, transformando as
antigas Barsas** em almanaques de paróquia. Uma espécie de fusão entre
Alexandria e Babel, com o mundo do conhecimento disponível em todas as línguas.
Só que é aí que está. Na mesma proporção em que os meios
digitais foram ficando disponíveis para mais e mais pessoas, saindo do ambiente
acadêmico, militar e empresarial, a seriedade dos dados começou a escorregar
ladeira abaixo. No começo, eram as pequenas redes de bate-papo, do tipo ICQ,
que espalhavam fofocas
pelo então incipiente ciberespaço; depois, os e-mails reencaminhados começaram
a disseminar bobagens de caminhão, para enfim chegarem às redes sociais e
comunicadores instantâneos, agora sim com um mar de estultícia que preenche os
quatro cantos deste superaquecido planetinha azul. As historinhas que se contam
nesses meios são totalmente desvinculadas dos fatos, mas são tidas como dignas
de crédito por uma camada imensa dos seus consumidores. É a pós-verdade posta
em prática, como já falei neste meu
texto.
Eu penso que deveria deixar de lado essa batalha já perdida,
e não me incomodar com novas úlceras no solo lunar de meu estômago. Mas eu
teimo em adotar uma obrigação professoral e não consigo engolir argumentos que
saem de orifícios impróprios, e acabo mesmo por me lembrar que pratico
desmentidos argumentativos neste espaço já há um bom tempo, haja vista os mais
de 50 capítulos do pequeno
guia das grandes falácias. Então não vou conseguir ficar quieto no meu
canto enquanto se utilizam conceitos absolutamente errôneos, algumas vezes
maliciosamente, mas na maioria das vezes por puro desconhecimento. Vamos adotar
a máxima do debatedor que combate o bom combate: quer reclamar, reclama
direito. E vamos pisar em terreno minado.
Hoje eu quero falar sobre o comunismo. Isso porque há uma
grita generalizada contra movimentos tidos como de esquerda, que são colocados em
nomenclatura genérica, a quem se procura dar um estatuto de xingamento.
Acontece que a imensa maioria das vezes em que se faz esse tipo de relato, ele
está errado. A pessoa que o profere o faz por uma espécie de embalo, do tipo
"me disseram que o comunismo é ruim, então deve ser ruim mesmo". Ok,
camarada, o comunismo de fato pode ser ruim, mas ao menos saiba o porquê.
Vamos lá. Comunismo é um sistema político pensado
primordialmente por Karl Marx e Friedrich Engels, caracterizado pela
propriedade pública dos meios de produção. Isso significa que terras, meios
minerais, indústrias, maquinário e equipamentos pesados não pertencem a
indivíduos, mas ao Estado. Ao despersonalizar os proprietários dos meios de
produção, o comunismo visa eliminar aquilo que é chamado de luta de classes,
uma condição em que a camada mais pobre da população fica permanentemente
submetida aos donos do capital, criando uma tensão permanente entre ambos. Normalmente
esses polos opostos são chamados de proletariado e burguesia.
Pelo que foi preconizado por Marx e Engels, o comunismo seria
o ponto final de uma via evolutiva das sociedades humanas. Recém-saídos do
absolutismo que foi combatido pela Revolução Francesa, viam o capitalismo como
um avanço da humanidade, uma vez que já se tratava de uma maneira de sermos
livres de uma concentração de poder e riqueza das mãos de um único monarca.
Este poder transitou para um grupo de pessoas, a tal burguesia, o que já dava
um nível maior de justiça, porque não estamos mais falando de obtenção de poder
por direito divino ou descendência nobre, mas por agentes do trabalho, que
conseguiram amealhar riqueza pela sua própria atividade. Entretanto, este era
ainda um grupo extremamente privilegiado e reduzido, que adquiria a baixo custo
o trabalho dos mais pobres. Dada a manutenção do status quo ser um desejo da burguesia agora no poder (assim como o
foi nos antigos monarcas), somente seria possível instaurar uma república nos
moldes populares através da revolução, como sempre se deu nas transições de
poder. Tomado este, teríamos um sistema de transição chamado pelos autores
citados de socialismo, cuja gerência seria feita por um grupo escolhido pelos
trabalhadores de modo permanente, em um fenômeno que foi chamado de
ditadura do proletariado. O estágio seguinte (nunca atingido) seria a supressão
de qualquer forma de Estado, e esse sim seria o comunismo plenamente realizado:
a anarquia*** comunista. Eliminadas as classes sociais, com cada um tendo
conforme sua necessidade e dando conforme sua capacidade, não fazia mais
sentido a existência de um Estado em uma sociedade que já estaria se autorregulando.
Existiam anarquistas nesse mesmo momento histórico, com a diferença fundamental
de que estes entendiam não ser necessária a fase de transição da ditadura do proletariado.
Bom… comunismo é isso. Agora vamos começar a responder
perguntas.
Comunismo é sinônimo
de marxismo?
Não, comunismo é só uma parte do pensamento marxista. Karl
Marx, independentemente de sua concordância, possui um sistema filosófico
complexo descrito em uma obra vasta, que compreende observações políticas,
econômicas, sociais, históricas, culturais e religiosas, não podendo ser
meramente limitado ao comunismo. Essa diversidade de espectro permite
perfeitamente a qualquer um concordar com parte de seu pensamento e discordar
de outro. É EVIDENTE que existem marxistas doentes, que veem os apontamentos de
Marx como dogmas religiosos, mas qualquer pessoa de bom senso pode achar que,
mesmo sendo o comunismo como previsto algo irrealizável, sua Filosofia da
História, o materialismo
histórico-dialético, seja consistente, apenas para dar um exemplo. O mesmo
acontece com qualquer outro sistema filosófico. Aristóteles, para citar, é um
gênio incontestável, mas achava que a Terra estava no centro do universo e que
o Sol girava em torno dela.
Comunismo e socialismo
são a mesma coisa?
Prima facie, não,
como já mencionei logo aí atrás: o socialismo seria uma espécie de etapa
anterior ao comunismo. Mas não é um pecado tão grande considerá-los sinônimos,
e é possível fazer uma certa concessão. Só que tem uma outra coisa, mais
importante. Nem todo socialismo vem das ideias marxistas. Todo sistema que se
propõe mais enviesado para o social que para o econômico pode receber o nome de
socialismo. A Comuna
de Paris, por exemplo, tinha características de socialismo antes mesmo da
guerra civil russa. Muitos consideram os regimes de bem-estar social, tão
comum nos países escandinavos, as formas mais viáveis de socialismo.
Toda esquerda é
comunista?
Não. Embora eu tenha imensas restrições a estas disposições
cinestésicas, reducionistas ao extremo, o fato é que a moda de enquadrar
tudo em esquerda e direita pegou e tenho que lidar com isso. Diferença
fundamental entre direita e esquerda, sem juízos de valor: a primeira
privilegia liberdade, enquanto a outra enfatiza igualdade. Até mesmo por isso,
a direita vê mais importância em fatores econômicos, enquanto a esquerda pugna
por questões sociais. Ponto. Esse é o motivo pelo qual causas identitárias
costumam ser encampadas pela esquerda: antirracismo, indigenismo, feminismo e
etc. Essas causas todas não têm a ver com comunismo, em instância alguma. Nada,
absolutamente nada obsta que pessoas posicionadas à direita sejam aderentes a
essas causas, mas aí vamos cair naquele campo minado dos pacotes de ideologia
comprados prontinhos nos armazéns ideológicos da vida.
O Brasil esteve
próximo do comunismo?
Nunca, a verdade é essa. Talvez o movimento mais sério de
fundo comunista que tenhamos tido foi a Intentona
Comunista, uma quartelada que não durou uma semana e que não chegou a tomar
o poder nem das próprias casernas. Outro momento histórico onde se falou muito
em risco de comunismo foi no governo João Goulart, por conta de seu programa de
reformas de base. O fato é que vivíamos tempos de Guerra Fria, e jogou-se
muito com o medo de implantação de regimes comunistas através do mundo. No
nosso quintal latino-americano, a coisa chegou às raias da paranoia depois que
Cuba implantou sua revolução. Com isso, as reformas de base de Jango foram o
estopim para a aplicação do golpe de estado. Essas reformas não tinham nada de
mais. É bem verdade que previa a reforma agrária, seu aspecto mais socializante
(e que veio mais tarde ser implantada por governos liberais como o de FHC), mas
também falava em reforma bancária, com a criação do Banco Central e do Conselho
Monetário Nacional, que foram mesmo criados pelo governo militar, e da lei de
remessa de lucros ao exterior, para manter os capitais dentro do território
brasileiro, algo que não me parece muito comunista.
E o PT?
O PT, embora tenha emporcalhado sua história com corrupção e
hoje seja um espantalho geral do que representou um dia, nunca foi comunista.
E, se foi, era de uma incompetência ímpar, porque foram TREZE anos à frente do
poder nacional sem nunca ameaçar a lucratividade dos bancos, sem estatizar
companhias privadas, sem criar impostos sobre grandes fortunas, sem implantar
comunismo. Quer chamá-lo de esquerda, de socialismo, vá lá, mas não de
comunistas.
Todo comunista é ateu?
Marx apregoou o ateísmo, com uma crítica à religião como um
misto de lenitivo e de alienação. Mais ainda: na implantação de regimes
comunistas na União Soviética, no Camboja e em outros países, houve momentos de
forte perseguição religiosa e de expropriação de bens das igrejas. Entretanto, estes
foram aspectos inerentes a cada um dos casos e não é obrigatório que um
comunista seja ateu. Fosse assim, o próprio comunismo agiria como uma religião****,
não lhes parece? Além disso, a correlação é absolutamente falsa. Há ateus aos
montes que também são liberais, monarquistas, anarquistas e tudo o mais.
Todo comunista é
abortista?
Não, que bobagem. Uma coisa nada tem a ver com a outra.
Aliás, ser favorável ao aborto, eu já disse neste
texto, parece uma coisa mais de quem preza liberdades individuais do que
igualdades coletivas. Portanto, quando alguém defender o direito de aborto, não
o coloque automaticamente na conta de comunistas. A Venezuela, tão na moda, não
permite aborto (a não ser no caso de risco de vida à mãe, como no Brasil); já
os paladinos da liberdade, os Estados Unidos, permitem.
Comunistas comem
criancinhas?
Bem, essa é uma antiga afirmação que era bem comum na época
da Guerra Fria, e que coloquei aqui só para que vocês saibam que não é de hoje
esse tipo de jogada do medo. Hoje em dia, mesmo os mais arraigados
anticomunistas deixaram-na de lado, mas é sempre bom resgatá-la, para que não
volte à baila, porque deriva de uma tragédia humana. Esse tipo de criação
existiu porque os países comunistas enfrentaram períodos de grande fome, não só
por conta dos problemas da economia planificada, mas também pelas condições
meteorológicas extremas enfrentadas por eles. Propagava-se no ocidente que a
prática de canibalismo era um dos recursos extremos nos países comunistas, com
os pais matando os filhos para usá-los de alimento. Eu já ouvi muito se falar
de pais que dão a vida pelos filhos, e não o contrário. Por isso mesmo, vou me
limitar a trazer esse tópico somente como curiosidade histórica.
Comunistas não admitem
propriedade privada?
A admissibilidade de propriedade privada vai variar de país
para país, de projeto para projeto, mas, em linhas gerais, os comunistas
permitem a propriedade de casas para moradia, de pequenos negócios para
sustento próprio e da família, de objetos pessoais, de automóveis e
motocicletas e assim por diante. A propriedade que deve ser coletiva não é
nenhuma dessas, e sim tudo aquilo que se produz.
A terra produz alimentos, as fábricas produzem artefatos, e são esses os bens
que não podem ser privados, no entender dos comunistas, já que é aí que reside
a exploração de classes. Dessa forma, nem sua casa será invadida para dividi-la
com sem-tetos, nem a padaria do seo
Joaquim será dominada por um tecnocrata estatal.
Por que comunistas
usam iPhone?
Porque eles não têm nada contra a tecnologia e não assumem compromisso
de serem miseráveis. Para o primeiro ponto, pensem que o iPhone não
representaria mais do que uma raquete para jogar ping-pong se não fosse uma
criação soviética: o satélite. Já para o segundo, se algum cidadão é comunista,
mas tem meios materiais para adquirir um produto qualquer, por que não pode
fazê-lo? Eu sei que já é manjado, mas quem manda que se dividam os bens com os
irmãos é Jesus*****, e não Marx.
O comunismo é sempre
ditatorial?
No formato proposto por Marx, sim. Como eu já disse, há uma
fase em que forçosamente o povo trabalhador assumiria o poder, através de
representantes eleitos para tanto. Na prática, entretanto, o que nós sempre
tivemos foram ditaduras de partido único. Os atuais partidos comunistas tem
proposto assumir os governos de maneira realmente democrática, com seus
representantes eleitos pelo total da população através do convencimento cívico
das massas. A ver.
Você é comunista?
Não. Já fui um idealista na juventude, e isso me causou
transtornos em sala
de aula e no trabalho.
Mas chega um momento em que é preciso por os pés no chão. O comunismo não tem
como dar certo, na minha opinião, mesmo que aplicado com outros critérios em
uma eventual nova tentativa. O sistema em si é sedutor, parece que tudo se
encaixa bonitinho, mas há um componente humano solidário que nós não temos como
espécie, infelizmente. O que teremos com regimes comunistas é tudo o que
tivemos até hoje: uma elite ditatorial que controla pesadamente os aspectos da
vida dos seus cidadãos, que podem enriquecer o país, mas não o povo. Nossa
melhor opção é humanizar cada vez mais o capitalismo reinante, especialmente na
distribuição de oportunidades. Talvez por aí, a longo prazo, cheguemos em algo
parecido com uma sociedade onde as classes não estejam tão distantes entre si.
É lícito pensar assim. E isso se faz com educação, conhecimento e espírito crítico,
o exato inverso do que temos visto hoje em dia.
Espero ter sido útil para enriquecer um pouco o debate sobre
essas questões e tirar um tanto do susto da “nova ameaça comunista” ao nosso já
combalido país. Se alguém quiser que eu toque em mais algum ponto, fica
franqueado o espaço dos comentários logo abaixo, com a gentileza que se faz
necessária neste momento crítico. Bons ventos a todos!!!
Recomendação de leitura:
É claro que a minha vontade seria de abrir o presente texto
com a frase mágica: quer conhecer Marx, leia Marx. Mas isso é contraprodutivo,
embora mantenha a recomendação. As duas indicações mais óbvias seriam o Manifesto do Partido Comunista e o Capital. Entretanto, o primeiro é uma
peça panfletária, já com gritos de guerra e slogans prontos, e não é o ideal
para uma leitura mais racionalizada. Já o segundo é muito, muito, muito
complexo, voltado para o aspecto econômico, uma obra para leitura longa e
calma, o que não é o espírito de um texto que busca esclarecer dúvidas
pontuais. Por isso, vou recomendar a leitura abaixo, mais simples e mais
voltada para o tema do comunismo como sistema político.
MARX, Karl. Crítica do
Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
* Telemática é a fusão de telecomunicações e
informática, sendo esta área que cuida das transmissões de dados através
de computadores.
** Barsa era uma imensa enciclopédia que custava os olhos da
cara, mas que era a fonte de pesquisa mais diversificada que se podia ter em
uma casa.
*** Anarquia não deve ser confundida com bagunça. Anarquia
significa ausência de governantes, como já descrevi mais acuradamente neste
texto.
**** Sim, eu sei que certos cidadãos exacerbados agem
exatamente como se Marx, Engels, Lenin, Stalin, Mao e outras personalidades do
universo comunista fossem divindades, mas é exatamente contra esse tipo de
visão distorcida da realidade que eu estou empunhando a arma da minha pena.
***** Criador da religião que embasa a civilização cristã
ocidental. Paradoxo é isso aí.
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