Olá!
Sabem o que eu encontrei na praça da Sé na semana passada?
Ciganas! Quer dizer... Ciganas naquelas, né? Vestidas com aquelas fantasias da Ladeira
Porto Geral, formando uma espécie de corredor polonês móvel bem ao lado das
escadarias da catedral, e querendo agarrar sua mão à força, berrando
impropérios e imprecações caso você faça alguma observação malcriada a elas,
xingando mais que torcedor da Portuguesa. Passo batido com elasticidade
surpreendente para alguém da minha faixa etária e conformação física. É bom ter
cuidado – dizem que praga de cigana pega.
Mas eu poderia ficar tranquilo. Ciganos de verdade não se
vestem mais assim, não percorrem a urbe em carroças e não compram roupas na
ladeira. Descem um pouco mais, até a 25 de Março, e compram lá, como você e eu.
Ou, os mais remediados, vão ao Shopping. Se ricos, vão a Miami e outras terras
encantadas. Nada de diferente. Ciganos se vestem de ciganos apenas em algumas
festas e olhe lá! Como, de resto, fazem italianos, húngaros, portugueses, africanos,
japoneses e outras etnias componentes de nossa cultura. Não há motivos
significativos para se manter uma indumentária tradicional no dia-a-dia. Deem
um pulo no Brás, por exemplo. Vocês verão algumas mulheres que utilizam shador, calças e sapatos. Ok, temos o
distintivo muçulmano, mas não temos a impressão de estar andando pelos desertos
arábicos. Idem com qualquer grupo étnico. Dificilmente será possível encontrar
ciganos autênticos que se comuniquem em romani,
sua língua de origem; vão falar em português, mesmo.
Não tenho absolutamente nada contra os ciganos. É uma etnia
entre outras, afinal de contas. Tenho até mesmo dois quadros de bordado em
ponto cruz que herdei da minha madrinha (na verdade, tunguei dos despojos de
mudança da minha comadre, sua filha) que representam uma cigana oriental e uma
dançarina espanhola. O dançar girante, a roupa colorida e o gestual profuso não
são meras coincidências: uma dá origem à outra, ou, no mínimo, exerce
influência direta. De repente, sou descendente de ciganos e nem sei disso.
Mas não posso crer na autenticidade das ciganas centrais.
Parecem a mim pessoas que querem meramente arrumar uma forma de obter alguns
trocados. Nomadismo na cidade grande não cabe. Não encaixa em um modo de vida
em que os seres se apertam em apartamentos de 20 m², onde não há praticamente
espaços abertos para instalar caravanas. Se ainda há ciganos nômades no Brasil,
certamente não é em São Paulo; menos ainda na Praça da Sé, já devidamente
ocupada por outra “etnia” mais identificada ao modelo urbanoide: os mendigos.
Ao que parece, os ciganos eram povos do aqui-e-agora, pouco
se importando em manter tradições rígidas e moldando-se às culturas locais,
fazendo o perfeito oposto do que pensávamos, não é mesmo? Algumas coisas, como
a estrutura patriarcal, o nomadismo e as reservas matrimonias se mantém, mas
isso não nos permite pensar que eles não largam o hábito de andar a cavalo, colocar
argolas nas orelhas, ou andar de vestidos multicores em qualquer lugar no qual
estejam, ‘inda mais na Sé.
E o que esperam as gitanas contrafeitas? Bem, há atrativos
próprios que explicam o fato. A atmosfera mística dos ciganos se dá por causa
do mistério das origens deste povo, que, a exemplo dos índios brasileiros e dos
esquimós, são ágrafos, ou seja, não desenvolveram um método de escrita e
registro, restando a tradição oral para manter algum tipo de informação. Para
traçar minimamente um histórico dos ciganos, é preciso coligir o que deles
disseram outros povos, entornando vigorosamente o caldo da tarefa. Isso porque
cada um destes povos viam aqueles estranhos peregrinos de maneira peculiar, enviesados
pela própria cultura. Turcos veem ciganos de uma forma, russos de outra,
espanhóis também – sobre alemães, melhor nem pensar, para não ter que explicar
agora que os ciganos sofreram tanto quanto os judeus no período nazista. Com
isso, sabemos muito pouco de sua visão própria, e nosso conhecimento sobre os
ciganos se torna eivado de lacunas. Isso favorece o pensamento de que os ciganos
possuam formulações desconhecidas para nós, herméticas, cuidadosamente retidas
entre seus próprios membros, tais como a previsão do futuro.
Utilizando destes pequenos enganos do senso comum, nossas
“ciganas” do centro ludibriam os incautos que ainda colocam fé na suposta
capacidade de predição. No caso específico dos ciganos, essas técnicas são
várias, como é o caso da interpretação das cartas do seu baralho típico, o
tarô. É a cartomancia. Mas a mais típica de suas artes divinatórias é conhecida
como quiromancia, a leitura de mãos. Por que será que as pessoas ainda creem
nesse tipo de coisa? Vamos tentar entender.
Teoricamente, um quiromante consegue ler o futuro observando
os traços do “M” das mãos. Não conheço a regra, mas sei que tem a linha da
cabeça, a linha do coração e a linha da vida, e, através delas, a vidente chega
a conclusões como duração etária, pontos de inflexão financeira, destinos
emocionais e outros secos e molhados.
O convencimento do consulente se dá por uma técnica
relativamente ardilosa. As mãos de uma pessoa não dizem nada sobre o que a
pessoa será, mas dizem MUITO sobre o que a pessoa É. Não falam sobre o futuro,
mas sobre o presente e o passado. E, para tanto, basta que o vidente saiba
interpretar os sinais contidos nas mãos. Por exemplo: mãos grossas, com marcas
estriadas, fazem supor trabalho duro, contato com madeira, enxadas, pás e
picaretas. Sujeiras irremovíveis na base das unhas podem representar trabalho
na terra, em minas, em oficinas, conforme o depósito existente; pontas dos
dedos médios salpicadas de perfurações denunciam trabalhos de costura; calos
nas pontas dos dedos em uma mão com sua ausência na outra já ensinam que a
pessoa toca algum instrumento de corda – pessoa romântica e galante; unhas
amareladas pelo uso constante de esmalte outrora indicavam vida pérfida. Calos
na parte externa do dedo médio significam uso intenso da escrita. Cicatrizes,
manchas, coloração, grossura das juntas, estado das unhas... Como esses, muitos
outros exemplos existem, e permitem ao quiromante obter importantes informações
sobre o modus vivendi de quem o
consulta, sem a necessidade de fazer perguntas.
E esse é o pulo do gato: não há adivinhações, mas deduções.
Ao conseguir acertar uma característica vivencial do consulente, a vidente já
ganha sua confiança. Encaixando a segunda, a empatia aumenta. Fechando a
terceira, o fenômeno acontece: não é mais a vidente, mas o próprio consulente
que vai começar a contar, ele mesmo, os fatos e histórias sobre sua vida,
enchendo o adivinho de informações preciosas. Já se está convencido da precisão
que virá, inexoravelmente. O adivinho simplesmente remodela o que o próprio
consulente lhe diz e devolve ao mesmo na forma de profecia. E, sim, acreditamos
nisso.
Pois muito bem. Isso é o que conhecemos como leitura fria
(ou leitura a frio, dependendo da fonte). Este é um termo importado da língua
inglesa que representa uma série de macetes para captar informações acerca de
uma determinada pessoa sem que ela se aperceba disto. Esse nome nasce em
oposição a “hot reading”, outra técnica de engodo e persuasão menos
sofisticada. Neste caso, o pilantra profeta obtém informações ANTES de a
vítima pessoa ter seu futuro desvendado. De posse dessas informações
“quentes”, é estabelecido o processo de confiança.
A leitura fria, como se pode perceber, é mais ousada, já que
trabalha sem a preexistência de dados. A técnica do tato dos quiromantes é
apenas uma entre muitas. Algumas outras artes divinatórias, como a leitura da
borra de café, por vezes utilizam o seguinte chamariz: no fundo de um
recipiente, a borra toma algum formato, e o leitor questiona ao consulente o
que aquela forma lhe lembra. Se a lembrança for uma casa, ou um objeto de
estimação, ou algum animal da infância, por aí já se puxa o papo. Adquire-se a
confiança na interpretação do passado e fornece-se confiança para a predição no
futuro. Se o ofício não inclui um objeto ritual, como são os oráculos, então a
leitura fria é feita puramente através da linguagem. Há técnicas que permitem
seduzir plateias inteiras (ou assembleias, ou cultos), e não há muito mistério.
Em um auditório mediano, com umas 100 pessoas, sempre haverá alguém com
problemas financeiros, sempre haverá alguém com doentes na família, sempre
haverá alguém à beira do divórcio, sempre haverá alguém que não progride no
trabalho, sempre haverá alguém que se julga vítima de perseguição, tudo junto
ou separado. Eu já vi de tudo – os resultados são impressionantes, mas, uma vez
desvendado o modus operandi, chega a
perder a graça, e dá até vontade de brincar, fazendo o mesmo. E acredite: às
vezes, fazê-mo-lo sem perceber (você chega em casa e as crianças estão com a
cara assustada. Você diz: “qual dos dois aprontou arte?”. Um olha para o outro,
que se encolhe, apesar do silêncio mantido. Pronto – o culpado você já achou.
Aí você fala: “Não disse para não mexer em nada?”. Resposta: “foi sem querer”.
Mais uma informação valiosa – algo foi quebrado, e é coisa importante. Mais uma
pergunta: “Por que você ainda não arrumou a bagunça que fez?”. Se a resposta é
sim, era coisa de pouca monta, como um vaso; se não, é algo maior, como um pé
de cama quebrado. Se você continuar nesse jogo, vai obter uma confissão
completa sem a necessidade de observar diretamente o estrago. As crianças
passam a ter a sensação de que você é mágico, tem olhos de raio X, ou coisa que
o valha).
Perceba que, para conseguir pinçar informações valiosas, a
leitura fria sempre caminha do geral para o específico. Quando um suposto
adivinho manda uma afirmação genérica, do tipo “vejo que há alguém com muita
inveja de você”, espera receber uma informação mais precisa. Tem gente que se
entrega de bate-pronto, dizendo que é a sirigaita da vizinha, mas há quem
resista e ofereça apenas leves indicativos. Vem a segunda assertiva: “é alguém
do seu convívio diário”. Chamamos isso de fishing
– isso mesmo, pescaria. Se à afirmação anterior você devolve algo como “é do
trabalho, da escola, da academia ou da igreja?”, você mordeu a isca com gosto,
contando TUDO o que o nosso salafrário de plantão precisa: elementos da rotina
diária, hábitos, disponibilidade de tempo, ocupações de lazer, presença de
espiritualidade... E ainda vai se admirar com a capacidade preditiva do
sacripanta.
Claro que não é tão simples, e, falando desse jeito, dá a
impressão que é fácil demais ser tolo, e que jamais conseguiríamos ser ludibriados
por técnicas tão rudimentares. Mas não é tão fácil assim se manter a salvo.
Isso tudo porque:
- Nem todos são iguais;
- Nem sempre a leitura fria
é maliciosa (ou mesmo consciente);
- Podemos nos achar
espertões, mas não somos;
- A aura mística também
apresenta suas armas.
Vamos pensar no exemplo mais bem acabado do que o senso
comum considera como pilantra: o político. Vamos considerar que, ao visitar a
câmara de vereadores da sua cidade, você encontre um vereador qualquer e lhe
faça algumas cobranças. Uma das perguntas mais naturais que o edil poderá lhe
fazer é saber o nome do bairro onde você mora. Você consegue atinar a
quantidade de informações que você dá com uma única palavra? É de se supor que
um vereador conheça bem a cidade e saiba de seus problemas (se ele atua bem ou
não são another five hundred). Digo
que sou da Sé e ele já sabe dos meus problemas – lixo, furtos, lixo,
engarrafamentos, lixo, semáforos quebrados, lixo, calçadas esburacadas, lixo,
lixo e lixo. Não dá para reclamar de transporte público: tem ônibus, metrô,
trem e o insólito fura-fila, com corredores e terminais. Houve alguma malícia
do vereador até aqui? Não. É o mínimo do mínimo que ele precisa saber. Mas,
sabendo disso, a esperteza pode entrar em cena. Antes de ouvir minha reclamação,
ele já tasca: “Que bom! Pois eu tenho um projeto na sua região! Implantaremos
um sistema de limpeza pública que blá-blá-blá” – leitura fria, ora pois. Se eu
não confio no sujeito, direi: “Que belo mentiroso”. Se confio: “É um
visionário”.
Com relação ao misticismo, devemos lembrar que nem sempre as
coisas caminham como queremos em nossas vidas. Tentamos encontrar uma lógica
nas causas de nossos percalços e nem sempre conseguimos. É a hora que bate o
desespero, e, nesses casos, procuramos avidamente respostas em outras fontes,
cujo mecanismo de funcionamento prescinde de relações mais rígidas. Desta
forma, se um médico nos diz que devemos utilizar um remédio pelo resto da vida,
tendemos a não nos conformar, a procurar conspirações ao nosso redor, e a válvula
de escape pode ser uma fuga pelo sobrenatural. Às vezes estamos tão imbuídos em
achar uma solução mágica que esquecemos nossa razão, e ficamos abertos a
qualquer tipo de engodo que nos prometa conforto ou alívio.
Deu para entender? Temos diferentes percepções dos
argumentos que nos são apresentados, e fazer suposições não é um erro em si.
Fazemos isso diariamente, corriqueiramente. O problema é achar que tais
suposições são a expressão da verdade, dando guia e guarida à nossa vida.
E por que nossa mente não consegue se defender das peças que
nos são pregadas? Logo de cara, já informo que não é possível ser racional 100%
do tempo. Mas, como a Filosofia não capta uma causa única, mas várias, vou
iniciar uma pequena série de textos que tratam de como pequenos defeitos de
nosso raciocínio (se é que podem ser chamados assim) causam influência em nosso
sistema de crenças: como a interatividade entre as pessoas faz com que elas
estabeleçam laços, como as âncoras de nossas convicções podem ser frágeis, como
qualquer coisa que se aproxima de nossas crenças são mais consideradas do que
aquelas que se opõe e como nosso cérebro é uma usina de enganações a nós mesmos
(que, de resto, já tratei um pouco aqui, aqui, aqui e aqui).
Recomendações de leitura:
Acho que a peça literária mais conhecida que aborda ciganos é aquela que
retrata as agruras da cigana Esmeralda e do corcunda Quasímodo, história que
sabemos quase de cor:
HUGO, Victor. O Corcunda
de Notre-Dame. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
Mas também gostaria de indicar esta obra transposta para os
quadrinhos, em uma coleção que vem sendo editada agora, que retrata nesta mídia
uma série de obras clássicas. É uma abordagem interessante e que facilita um
pouco sua interpretação pelos mais jovens.
CARRÉ, Claude. O
Corcunda de Notre-Dame. Adaptação da obra de Victor Hugo. Desenhos de
Jean-Marie Michaud. Tradução de Caroline Chang. Osasco: Del Prado, 2015. Col. Grande Clássicos da Literatura em Quadrinhos.
Vol. 6.
Finalmente, uma boa fonte para entender o surgimento e a
disseminação dos povos ciganos pelo mundo é aquele que indico abaixo, fruto de
uma ampla pesquisa por parte do autor:
MOONEN, Frans. Anticiganismo.
Os ciganos na Europa e no Brasil. 3ª edição digital. Recife: 2011. Disponível
em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmanticiganismo2011.pdf>
Agradeço à Deb por emprestar seu olho azul (ainda mais azul) na foto que ilustra este texto.
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