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segunda-feira, 16 de março de 2020

Em trezentos textos, a sutil história da transformação do pensamento e da fé

Olá!

Trezentos, que não são de Esparta. Este é o número deste texto que você, herói da resistência deste humilde espaço, que ainda insiste em aqui comparecer, lê agora. A você, só resta o meu sincero agradecimento.

Conforme eu estipulei em uma dessas efemérides, números redondos e aniversários serão destinados à Metafilosofia, evidentemente no meu âmbito particular. O problema, no caso, é: o quê? Com tanta coisa para escrever, dá uma tentaçãozinha de passar batido e vamos-que-vamos, mas eu sou queixo-duro, e achei por bem manter minha palavra.


Estando as coisas nesse status, comecei a "folhear" o blog em busca de um tema. E comecei a perceber melhor as transformações que foram ocorrendo na maneira com a qual o compunha. A mudança mais notável foi no tamanho dos posts. Como minha proposta inicial era soltar reflexões rápidas para discussão em classe, eu escrevia coisas absolutamente concisas, havendo algumas coisas de meia lauda*, o que, convenhamos, é bem curtinho. O passar do tempo foi atiçando meu perfeccionismo e os textos se alongaram muito, de forma quase viciosa. Sim, textos longos nestes tempos de despachos presidenciais em 140 caracteres viraram uma incômoda caceteação, mas o fato é que quando eu deixo a pena correr solta, ela não para mais, gerando jamantas de até doze laudas.

Para dar uma dimensão do tamanho das escritas deste escriba, vou colocar um quadro anual da minha produção. Como eu fiz isso? Para quem não sabe (acho que ninguém), tenho agremiado toda a minha produção em um único volume, como se fosse um livro de crônicas. Separando os tomos por anos, teremos o seguinte resultado:

Ano
Total de posts
Total de páginas
Média de páginas
2011
36
74
2,1
2012
28
88
3,1
2013
19
78
4,1
2014
28
133
4,8
2015
40
207
5,2
2016
28
150
5,4
2017
37
311
8,4
2018
37
212
5,7
2019
35
258
7,4
2020
11
119
10,8

Isso demonstra a curva ascendente com relação aos primórdios, com um pico em 2017, e que estou em grande forma, com uma média quase inaceitável atualmente. Com isso, tenho claramente uma mudança de propósito, mas espero estar atingindo ainda o mesmo público, enquanto angario outros interessados. Nenhum dos meus textos tem intenção acadêmica, o que eu queria mesmo é acender a chama de meus leitores por temas relacionados à área de humanas em geral, já que há muito eu desencostei meramente da Filosofia.

Eu achei bom também dar uma olhada nas visualizações mais bem cotadas, para tentar entender o que interessa mais à galera. Só que há uma armadilha aqui. Textos mais antigos tendem a ter mais visualizações pelo simples fato de existirem a mais tempo, então o ideal seria calcular a média diária de visualizações, fazendo uma continha simples: total de visualizações dividido pelo número de dias da publicação. Mas aí temos outra cilada, Bino. Imagine que eu tenha publicado algum texto ontem, e ele tenha tido dez visualizações. Sua média será, ora pois, de dez visualizações ao dia, o que distorcerá a métrica. Para sanar a questão, adotei um critério simples: somente levar em conta postagens com mais de cem visualizações, o que garante uma certa pulverização temporal. O hit parade demonstra uma certa correspondência entre números absolutos e médios, com poucas exceções. As vinte melhores médias são as que seguem:

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20

A destacar que o post mais visitado é o único com média de visualizações superior a uma por dia, o que é pouco, muito pouco**. Não estabeleci um ranking na parte de baixo da tabela, mas os dois últimos, este e este, são textos que eu gosto muito e não entendi porque não decolaram. A temática triste não se explica, já que há alguns outros muito dramáticos que mandaram bem, e vamos combinar que não dá para rejeitar um artigo apenas pelo título. Bom… dá, sim. Entretanto, não é possível acertar sempre.

Mas eu falava em transformações, e passados esses dados mais administrativos, percebi que um determinado pano de fundo de fato pode ser notado no transcorrer da obra deste escriba: a minha relação com a Religião. Quem ler, vá lá, meus primeiros trinta textos, entenderá que eu sou uma pessoa com boa quota de religiosidades; quem ler os trinta últimos, ter-me-á como um ateu não declarado. E é isso mesmo.

Aqui, é preciso discorrer calmamente. Eu nasci em uma família cuja prática religiosa não era uma regra acentuada. Todos os sacramentos eram aplicados e comemorados, como batizados e casamentos, e as crianças eram enviadas à igreja para fazer a primeira comunhão. Meu avô por parte de mãe era ateu, mas daqueles que discutiam política com o padre tomando cerveja, e, de fato, nunca deixou de ir à igreja em uma celebração qualquer só para fazer birrinha, ou recusou um convite para ser padrinho de alguém. Tem valor religioso? Creio que não, mas o que interessava para o velho era fazer o compadrio feliz e, mais uma vez, discutir política ao redor de uma garrafa de cerveja. Deu para entender a situação, né?

Isso tudo para dizer que, se eu não era alijado da vida cristã, também não era um dos frequentadores mais assíduos. Isso somente foi acontecer na década de 90, quando minha beatitude chegou ao máximo. Era uma época em que eu me importava de verdade com preceitos católicos, e, mesmo continuando a não ser chegado a uma reza, guardava jejuns quaresmais, levava a sério o recolhimento da Sexta-feira Santa e assim sucessivamente. Aprendi muito sobre a vida dos santos e li a Bíblia de cabo a rabo, mais de uma vez. Foi também a primeira vez que tive um encontro com Santo Agostinho e outros escritores da mesma estirpe, donos de uma Filosofia ligada ao funcionamento do universo sob a batuta de Deus.

Quando chegaram os anos 2000, deixei o espiritual um pouco de lado e parti para a ação. Trabalhei com catequese, toquei e cantei nas missas e, principalmente, aprendi tudo de liturgia para instruir coroinhas, e essa foi de longe minha principal função por mais de dez anos.

Entretanto, foi exatamente nessa época que o fenômeno começou a acontecer. Aos poucos, bem aos poucos, porém ininterruptamente, a fé foi minguando. O processo foi lento, durou pelo menos vinte anos, e dos paradoxos foram surgindo as dúvidas, das dúvidas foi surgindo o esmorecimento, e do esmorecimento foi surgindo o mecanismo de autoengano que me segurou ainda por tempos vinculado à igreja. Daí, somente a posição de conforto e da companhia de meus confrades ainda me segurava. Aqueles meninos e meninas tinham em mim uma espécie de paizão, um cara com quem eles tinham até mesmo uma relação de confiança, e me contavam coisas que não tinham coragem de contar a seus pais. Eles cresceram e continuavam comigo pelo simples prazer de estarmos juntos, e por isso eu ainda me mantive por tanto tempo ainda com algum laço à comunidade. Quando eu encerrei as atividades do grupo, os mais velhos foram aos poucos se dispersando, e não havia mais crianças novas para renovar os claros deixados e reciclar a turma. Nesse ponto da minha vida, eu já não tinha fé alguma, e continuei tocando nas missas apenas por uma questão de gratidão à pessoa física do padre. Ouvir um culto passou a ser um suplício, uma série de malabarismo para explicar coisas inexplicáveis, com uma imobilidade de pensamento que já não coadunava com meu momento. Quando o padre em questão se mandou para o Amazonas, por ordem de sua ordem, decretei a mim mesmo que era hora de parar. E isso foi bem recentemente, acreditem.

Como se pode perceber, o processo é muito longo, e, especialmente, involuntário. Eu nunca acordei belo dia e disse a mim mesmo que não cria mais em um deus, embora vários insights fossem colaborando na guinada. E por isso eu não posso fazer nada. Não tenho medo do inferno porque, se não acredito em Deus, não acredito também no diabo, ora pois. Também entendo perfeitamente que ser ateu significa única e exclusivamente não acreditar em uma divindade, punto e finito. Não significa ser mau, não significa ser imoral, não significa ser depressivo. Ser mau é prerrogativa humana, grupo natural dos quais fazem parte os sacerdotes da Inquisição ou os stalinistas ateus, acreditem se quiser. A moral não necessita de uma divindade para proclamá-la, bastando a força do contrato social e do elo humano para estabelecer o que se pode e o que não se pode. E a perspectiva do post mortem pode até mesmo ser mais angustiante para o religioso, dependendo do peso que seus pecados carregam em seu inconsciente. Para o ateu, a morte é uma extinção, sem prêmios, mas também sem punições. Se há angústia, paciência, as coisas são assim e é melhor não pensar muito nisso.

É só depois que as coisas acontecem que você consegue entendê-las melhor, incluindo aí a perda da motivação religiosa. De um modo geral, a coisa vai em uma linha descendente em que as couraças que retém sua fé vão sendo removidas. A primeira é o confronto com a realidade. Uma das maiores bobagens em um religioso é tentar encontrar provas: da existência de Deus, da separação entre corpo e alma, da eficácia das orações e assim por diante. Deus é infalseável - é muito comum os religiosos inverterem o ônus da prova, pedindo provas de que Deus não exista. Eu mesmo fiz isso muitas vezes, o que me ajudou a reconfortar. Mas você consegue demonstrar quantos fenômenos atribuídos a uma divindade na verdade são eventos naturais, e também como são irreprodutíveis tantas histórias contadas nos livros sagrados. Curas, que são o principal item do cardápio de quem quer demonstrar a bondade de Deus são, à vera, um argumento contrário, porque em toda e qualquer igreja há quem morra de câncer, do coração, jovem, de acidente e assim por diante, em mesma proporção do que ocorre na sociedade como um todo. E Deus parece injusto, restando apenas o argumento do mistério. Comparada com a realidade, a Religião perde sempre. Se tudo o que não encontra espelho no mundo que nos cerca, como supostas travessias no Mar Vermelho, arcas de Noé ou homens feitos de barro, for jogado no plano simbólico, temos diante de nós uma inutilidade; se continuarmos acreditando concretamente, temos um problema de fanatismo.

A partir daí, pergunta-se quais são os elementos de força para a manutenção da fé, e teremos provavelmente a experiência pessoal, seja lá qual for. Um transe místico, um sonho vivaz, um fato aparentemente extraordinário, uma demanda que se julgue atendida... Tudo isso são experiências que eu nunca tive. Exceção feita ao sentimento oceânico (aqui), que é uma sensação de espiritualidade, e não uma manifestação espiritual em si, nunca tive um sentido forte de comunicação com a transcendência, nem de que eu tinha alguma entidade ao meu lado. Nunca foi falta de experimentação - templos, terreiros, igrejas das mais variadas categorias já foram visitados por mim. Sem esse sentimento de conexão, eu sempre fiquei boiando nas incorporações dos cavalos, nos êxtases dos médiuns, nas glossolalias do Espírito Santo, e mesmo nas meditações orientais.

Restava a vivência comunitária, o último sustentáculo para você manter uma fé, se não na crença pura e simples, pelo menos no convívio de seus circunstantes. Deus parecia a cola que unia as pessoas de uma comunidade, aqueles que ficam nos bastidores preparando as celebrações, fazendo suas tarefas por amor ao seu deus e ao seu próximo. Tudo rui como um castelo de areia quando você passa a vivenciar os fundos do altar. Aquele trabalho que parece de intensa união é uma mera ilusão, com a mesma guerra de poder que existe onde qualquer humano se mete, independentemente da disponibilidade de recursos. Sem dúvida os maiores ódios que eu tenho na minha vida estão vinculados à igreja, de alguma forma. Coisas que influenciaram minha vida pessoal mesmo. Achei que seria um fenômeno localizado, mas mudar de ares somente demonstrou que se há universalidade é nesse aspecto triste. Nos meus últimos dias de igreja, já não lutava por nada, apenas tocava as músicas que me eram pedidas. Sem a dimensão da realidade, sem misticismo pessoal e sem o acolhimento comunitário, a Religião perdeu todo e qualquer sentido para mim.

Hoje, não posso afirmar que sou um ateu convicto. Melhor seria me qualificar como agnóstico, o assim chamado ateu cagão. Quando somos levados a certos limites, fica realmente difícil para nosso pobre telencéfalo extremamente desenvolvido admitir processos meramente naturais que justifiquem o universo e a vida. Embora não aposte na hipótese, eu conseguiria admitir um tipo de divindade mais difusa, que atuasse discretamente nas leis da Física. Agora, um deus como o abraâmico, com tantas incongruências e contradições, as chances de sua existência são irrisórias no meu entender. Para esse modelo, sim, sou ateu.

Será que chegará um ponto em que acontecerá com todo mundo aquilo que tem acontecido comigo? Não sei dizer. A patroa já veio comigo, em processo muito semelhante, no qual estranhamente não nos confessávamos, como se fosse vergonhoso. A secularização é um processo inevitável, mas tão lento quanto a minha "conversão". Em outros tempos, o sagrado ocupava um lugar de relevo porque ele oferecia boas respostas, mas ele fracassou em dois sentidos: explicar o mundo e fazer uma sociedade melhor. Com isso, ela perdeu a melhor forma de ser assumida com portadora da verdade: a sua credibilidade. Os papéis mais altos do estatuto social tendem a conservar a Religião em seu posto por um motivo muito simples - a coisa está boa para eles, e mexidas não são bem-vindas para essa trupe, mas à medida que a fragmentação da sociedade se dá, e a ordem social passa a ser contestada, as garantias de validade do organismo social precisam sair do velho ordenamento. Mesmo em sociedades cuja religiosidade ainda é muito presente, como no Brasil, é possível ver esse fenômeno. Nada explica melhor a proliferação de novas denominações pentecostais do que uma vontade implícita em se desestruturar uma hierarquia tão sedimentada quanto a que tínhamos até bem pouco tempo atrás. Só que a resposta que elas trarão é igualmente transitória e frágil, pelo simples fato de que antibióticos continuarão sendo mais eficientes do que orações.

Todas as impressões do parágrafo anterior eu extraí, com as devidas adaptações, do sociólogo britânico Bryan Wilson. Ele dedicou grande parte de sua obra ao estudo da Religião e como os novos movimentos religiosos se fundeiam em uma prática divergente dos métodos tradicionais, justamente para tentar renovar uma forma de atratividade, baseada especialmente na utopia do escape do mundo.

Fundamentalmente, era isso o que eu queria mostrar para vocês: o que mais veio influenciando a mudança no meu traço, embora eu continue respeitando a Religião como fonte de conhecimento e modo de ver o mundo. Eu sei que essa minha “saída do armário” pode me trazer problemas, sendo um assunto que eu não trato abertamente nem entre meus familiares, mas o fato é que não dá para segurar para sempre um assunto desses, principalmente quando eu vejo tanta gente, em nome de um suposto deus, metendo os pés pelas mãos na defesa da verdade e da vida, algo que deveria ser tão caro a todo mundo. E, principalmente, justificando nossa miséria em nome de um destino traçado por uma entidade que insistem em chamar de misericordiosa. Bons ventos a todos e até os 400!!!

Recomendação de leitura:

Wilson não foi um cara que se popularizou muito no Brasil, mas tem argumentos interessantes. Segue uma recomendação em língua espanhola.

WILSON, Bryan. Sociología de las sectas religiosas. Madrid: Guadarrama, 1970.

Extraí a imagem do cadeado do seguinte endereço:

Já a foto da parede de tijolos é minha mesmo.

* Para quem não sabe, a lauda é uma medida informal de tamanho de artigos que representa uma página completamente preenchida. Pelo padrão da ABNT, os textos acadêmicos devem ser confeccionados em papel A4. Para facilitar, imagine um lado de uma folha de papel sulfite.

** Mas foda-se

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